quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Direitos das comunidades tradicionais postos em cheque: ofensivas legais e constitucionais



O julgamento da “Raposa Serra do Sol”, apreciando os direitos indígenas, a partir da Constituição de 1988, ensejou, de um lado, a expectativa de melhores perspectivas constitucionais para outras comunidades tradicionais, em especial quilombolas, e, de outro lado, uma forte ofensiva, tanto legal quanto constitucional, por parte dos setores que se consideraram prejudicados, em especial a chamada “bancada ruralista” e os representantes do agronegócio.Este embate jurídico tem ficado evidente em diversas iniciativas realizadas desde o histórico julgamento. Enumerem-se algumas.

Primeiro: A edição de um código florestal estadual em Santa Catarina foi o “balão de ensaio” para a discussão em relação à modificação do Código Florestal, tido como muito prejudicial, tanto às grandes obras previstas no PAC, quanto aos setores “produtivos” da economia. A discussão do meio ambiente equilibrado como forma de entrave ao “desenvolvimento”, que- aqui se argumenta- seria sustentável. Vide, ainda, a discussão das PCH- pequenas centrais hidrelétricas- como “sustentáveis”, pelo reduzido impacto – que seria local- passando-se ao largo de estudos de impactos ambientais de toda a bacia hidrográfica.

Segundo: Ao anúncio de modificação dos índices de produtividade para fins de reforma agrária, baseados em censo de 1975 ( teoricamente, pois, não condizente com a “moderna” agricultura), seguiu-se a tentativa de uma CPI para investigar o MST e a divulgação de uma pesquisa do IBOPE ( instituto, pois, de pesquisa), concluindo pela “favelização” dos acampamentos ( com discutível amostragem). Ficou ocultada a divulgação, no dia anterior, do Censo Agropecuário- levantamento, portanto, realizado pelo IBGE ( estatístico e não de opinião), dando conta do aumento da concentração de terras, da produção da moderna agricultura para fins de exportação e do fornecimento de alimentos, para o mercado interno, pela agricultura familiar. Dois modelos, sem dúvida, compatíveis, mas com lógicas diversas. Mas, no fundo, a discussão sobre a necessidade de manutenção ou não de sistema de reforma agrária ( não se pôe em discussão os valores para o agronegócio ou os sucessivos parcelamentos das dívidas).

Terceiro: O Estatuto da Igualdade Racial previa uma regulamentação do art. 68 do ADCT- que não diferia muito da existente no Decreto nº 4.887/2003- mas que servia, em parte, como forma de amenizar o “imbróglio” jurídico pendente de julgamento. A “bancada ruralista” sustentou a posição do revogado Decreto nº 3912/2001, prevendo a necessidade de comprovação de posse por cem anos. O que equivaleria, em realidade, a ser mais vantajoso para a comunidade alegar usucapião: não se concebe que um direito constitucionalmente assegurado seja obtido mais facilmente por via legal já existente. De toda forma, a previsão foi excluída, deixando as comunidades quilombolas à mercê da apreciação da ADI e da constitucionalidade/supralegalidade da Convenção nº 169/OIT.

Quarto: A Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária- CNA- entra com pedido de súmula vinculante, junto ao STF, para que seja explicitado que “o disposto nos incisos I e XI do art. 20 da Constituição não alcançam terras que só em tempos imemoriais foram ocupadas por comunidades indígenas”, ou seja, não abrange “aldeamentos antigos” extintos antes de outubro de 1988. Ao mesmo tempo, revigorou-se a proposta do deputado federal Aldo Rebelo, depois do julgamento do STF, para que as demarcações indígenas sejam submetidas ao Senado Federal e que haja indenização aos ocupantes de terras indígenas.

O que está em jogo com esta ofensiva legal e constitucional?

Primeiro: as terras indígenas, por serem propriedade da União com usufruto das comunidades, e as terras quilombolas, pela previsão de inalienabilidade ( o que poderia, eventualmente, ser reconhecida para outras “comunidades tradicionais”) são terras “extra comercio”, e, pois, insuscetíveis de compra, venda, apropriação e também- não se pode esquecer- grilagem. Alfredo Wagner, da UFAM, estima que elas correspondam a 25% das terras disponíveis, ou seja, um “estoque” razoável de terras para a agricultura e a pecuária, na visão dos setores “ruralistas”. Uma contraposição sutil de “moderno” ( agronegócio) e “arcaico” (índios, quilombolas, comunidades tradicionais), como se as temporalidades não fossem simultâneas e estes últimos estivessem num estágio “atrasado” de cultura. E a discussão do “direito à territorialidade”, como forma distinta do mero direito à propriedade da terra.

Segundo: nas terras das comunidades tradicionais, estima-se que esteja 75% da biodiversidade do país. Ou seja, elas somente são “verdes” hoje, porque têm sido “vermelhas” ou “negras” até então. É o reconhecimento de que não há biodiversidade sem sociodiversidade. São estas, também, as áreas com melhor potencial de aproveitamento hídrico e isto implica a demanda por ”flexibilização” da legislação ambiental.

O que implica também a discussão para o reconhecimento de um direito humano à água ( a Constituição do Equador, aliás, expressamente diz que a natureza- pacha mama- tem direitos).

Terceiro: a contraposição “agricultura familiar” e “agricultura moderna”, outro “avatar” da mesma dicotomia, oculta a discussão da soberania alimentar. A crise econômica mundial fez esquecer a crise alimentar que até então se vivia: as super safras colhidas não têm servido para saciar a fome da maior parte da população, tanto brasileira, quanto mundial, o mesmo ocorrendo com a utilização da transgenia.

A diversidade de cultivares e, portanto, de variedades ( inclusive do mesmo produto) é ocultada pela produção de sucessivas monoculturas, uma reprodução pós-colonial das mesmas formas de produção econômica que vinham da colônia, com ciclos que foram do pau-brasil, cana e borracha para novos de cana, soja, milho e celulose, agora reconhecidos como “commodities” e sujeitos a variações de mercado.

É o esquecimento de que há outras formas de produção que devem ser incentivadas, além daquelas do mercado. A discussão, portanto, também de um direito à alimentação adequada.

Quarto: o próprio estatuto jurídico das comunidades. As condicionantes foram, em boa parte, uma meia conquista das comunidades indígenas, ao lado do não-reconhecimento de estatuto jurídico da Declaração da ONU dos Povos Indígenas, inobstante o art. 42 desta e a jurisprudência internacional em sentido diverso ao posicionamento do STF.

Para as comunidades indígenas e tradicionais também foi um passo importante, mas insuficiente para o reconhecimento de que os indígenas também têm direitos humanos. A ocultação de que os direitos destas comunidades são também direitos humanos em pé de igualdade e não “direitos específicos” é o ponto nevrálgico da questão.

Quais as possibilidades de um posicionamento contrahegemônico?

Tendo em vista que a discussão, de fundo político, tende a se transformar em novos embates jurídicos junto ao STF, enumerem-se algumas possibilidades.

Primeiro: a insistência no caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, salientando que as questões tratadas são questões de direitos humanos e não meramente discussões “específicas”. Ou, pontualmente, no caráter “supralegal”.

Segundo: a visibilização dos direitos constitucionais postos em discussão em cada uma das hipóteses, com a pressão para que sejam utilizados, judicialmente, critérios de ponderação, como forma de justificativa das escolhas a serem tomadas.

Terceiro: a insistência na diversidade constitucionalmente assegurada, no plano político, mas também ambiental, agrícola, social, étnico-cultural, como princípio fulcral das disposições constitucionais.

Quarto: a visibilização dos racismos existentes nas discussões, seja eles anti-índio ou anti-negro, uma conduta que deve ser rechaçada tanto interna quanto externa, em conformidade com os compromissos e princípios constantes da Constituição.

O período pós-colonial manteve a apropriação de terras e o racismo que caracterizaram o período anterior à independência. As lutas destas comunidades têm mostrado que um constitucionalismo intercultural e pós-colonial é um caminho ainda muito árduo, mas cada dia mais necessário.

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