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sexta-feira, 13 de abril de 2012

DO RITO AO FETICHISMO, À IDOLATRIA E À MERITOCRACIA: A morte da coletividade e do sentido de pertencimento.




Amo os ritos. Uma das razões que me faz amá-los é sua beleza estética. O rito exige dança corporal, criatividade, gosto estético, comunicabilidade e, sobretudo, a atenção das pessoas envolvidas nele.  A maior preciosidade que o rito nos coloca é o sentido de pertencimento. Praticar certos ritos faz com que temos consciência de que não estamos sozinhos no mundo, mas que coexistimos com outras pessoas, com outros seres vivos e com a natureza. Grosseiramente definindo, o rito é todo ato que, repetido, liga a consciência individual ao sentimento de coletivo. Há ritos nas menores coisas que fazemos na vida: desde o levantar-se e arrumar a cama, escovar os dentes, tomar banho, até a participação de eventos que exigem fazermos tal o tal gesto ou dizermos tais ou tais palavras. A comunicação verbal e corporal é ritualística: desde a roupa que vestimos para cada ocasião da vida, até o bom dia dado a um amigo ou a um estranho causa-nos esse sentimento de pertencer.
        
As religiões são carregadas de ritos, conhecidas também como atos litúrgicos. A fé resulta do ritual que opera os status hierárquicos, bem como a relação que o indivíduo estabelece com o transcendente. É nesse contexto de fé que a palavra latina bendizere dá ao discurso o poder ritualístico. Desse modo o status presente na religião, entendido por meio do rito, é menos um mérito do que uma responsabilidade. No Candomblé, por exemplo, um Babalorixá tem a responsabilidade de orientar e passar a seus abiã e yàwõ por meio da oralidade o que recebeu de seus ancestrais. Em diversas comunidades indígenas, o pajé tem, além da responsabilidade espiritual sobre a comunidade, o cuidado com a saúde, com a alimentação e com as demais organizações ritualísticas, inclusive de guerra. Há uma semelhança desse compromisso geral na cultura judaica: o sacerdote responde não apenas pelo espiritual, mas por toda organização política, de modo que sua responsabilidade é determinada pelo seu status. Nessa cultura, o sacerdote é o canal de comunicação dos homens para Yavéh, enquanto que o profeta é o canal de comunicação inversa, isto é, de Yavéh para os homens.
            A ciência, instituída nas escolas e universidades, também se organiza por ritos semelhantes aos da religião. O professor ocupa esse lugar de responsabilidade e seu status nada mais é do que o meio pelo qual a responsabilidade lhe recai. A titularidade é a marca do caminho percorrido pelo indivíduo de modo que lhe permite assumir a responsabilidade para orientar aqueles que vêm depois dele. Todas as organizações sociais compõem-se de elementos formais que permitem o acesso do indivíduo ao coletivo. A ancestralidade é o modo pelo qual o rito conjuga o tempo no espaço para permitir a orientação desse pertencimento individual. Deem o nome que quiserem: no contexto religioso, líder, pastor, padre, babalorixá ou, no contexto laico, diretor, presidente, chefe, guia, orientador, etc. – a estrutura é a mesma nos dois casos: conjugação do tempo com o espaço no corpo coletivo que coloca a responsabilidade nos ombros dos mais velhos para guiar os mais novos.
            O empobrecimento do rito é a sua transformação em fetichismo. Uma das definições dada por Kant do que seja o fetiche é quando a prática desses ritos torna-se apenas um meio de buscar satisfação pessoal. Marx define como fetiche a ilusão que naturaliza um ambiente social específico, tornando em aparência de igualdade à medida que oculta suas desigualdades. Ao tratar o fetiche como elemento fundamental da manutenção do modo de produção capitalista, ele o opõe a ideia de “valor de uso”. Se este se refere estritamente à utilidade do produto, o fetiche transforma o objeto em fantasia desejada, marcando simbolicamente o objeto para projetar nele uma determinada relação social. Em outras palavras, quando o objeto adquirido – o sapato por exemplo – extrapola seu valor de uso, isto é, sua posse não se deve apenas à utilidade e a forma estética, mas ao modo como estabelece uma relação de status social, o rito torna-se fetiche. Quando pagamos mais pela marca do que pela qualidade e forma estética, transformamos o rito em fetiche.
A partir dessas duas definições – de Kant e de Marx – podemos perceber pelo menos dois modos de empobrecimento do rito. Na perspectiva kantiana, o rito se empobrece quando sua prática não é motivada pelo deslocamento do indivíduo ao coletivo em busca de sentir-se pertencer, mas somente por uma busca individualista e, portanto, egoísta, na qual o indivíduo busca unicamente seu prazer pessoal. Nesse sentido, a busca da titularidade no espaço religioso ou laico deixa de ser ritualístico e torna-se fetichismo, quando seu motivo deve-se a necessidade individual de realização para constituir um status de poder traduzido em bens materiais ou simbólicos pelo indivíduo em guerra com o coletivo. O motivo já não é mais a necessidade de pertencimento, a manutenção da tradição e a vontade de conhecimento. Torna-se meramente uma sede angustiante de se mostrar melhor que os outros membros de sua comunidade. A prática ritualística perde seu sentido e torna-se pura idolatria.
Na perspectiva marxista, o empobrecimento do rito resulta de uma necessidade de meritocracia, isto é, estabelecer poder a partir do mérito. Querer tornar-se líder religioso ou laico não pela responsabilidade demandada por essestatus, mas pela necessidade de tornar-se melhor e, portanto, merecedor de privilégios. A meritocracia torna-se a motivação única e exclusiva nessa busca de status. É meritocrático porque o indivíduo busca nisso privilégios em relação aos demais. A crueldade nessa lógica fetichista é a desigualdade entre o eu e o outro para que esse eu possa exercer controle e domínio sobre o outro. Desde a posse de um bem pelo seu valor simbólico e não mais de uso até a necessidade da titularidade orienta-se não mais para o sentido de pertencimento, mas de opressão meritocrática.
 Em ambas as perspectivas, opera-se um rompimento entre indivíduo e o coletivo. Já não há mais responsabilidade com sua comunidade ao adquirir umstatus social. A lógica inclusiva do rito torna-se, como fetiche, prática de exclusão e opressão à medida que o status só tem valor quando apenas alguns o alcançam. O rito passa a ser conjugado pela lógica da idolatria e da meritocracia: os poucos que lideram, definindo quais gestos, quais palavras e quais comportamentos corporais se devem ter, estabelecem uma relação de dominação sobre os demais por meio da meritocracia. O líder – religioso ou laico – empoderado pela fé da maioria no divino ou no conhecimento, define os aspectos morais que seus fiéis podem ou não ter para acessar as divindades. Obviamente, as regras morais dificilmente são seguidas pela liderança, somente aquelas que lhes são favoráveis, criando uma dissimetria entre eles e a comunidade. Em contrapartida, os liderados seguem essas regras como prática de idolatria, isto é, por meio de uma fé cega, pratica esses ritos unicamente em busca de realizações individuais, sem os quais acreditam não poder alcançar e, portanto, se realizar. Não há questionamento, não há reflexão e, certamente, não há criatividade.
Os efeitos disso são perversos, pois impõem relações de privilégio que a liderança passa a ter em detrimento dos direitos dos liderados, cuja prática é legitimada por ambos. Na sociedade capitalista em que valores como mérito, honra, poder, título, glória, tornam-se combustíveis necessários, as pessoas buscam desesperadamente tais valores como forma não mais de pertencimento, mas de existência, entendo esta como tornar-se melhor que os demais. Tais buscas matam o sentido de coletividade, fazendo com que as pessoas existam como exércitos de indivíduos isolados e afundados em suas angústias e frustrações. Com isso, poder prazer saber conjugam-se como armas de guerra em que o outro deixou de ser irmão e tornou-se inimigo.  Há alianças, há tréguas, há coletividade, mas apenas quando os interesses individuais tornam-se comuns.  Contudo, há sempre guerra e morte. Enquanto produção sanguinária, o rito perdeu seu lado criativo e inclusivo para tornar-se de um lado idolatria individualista e de outro meritocracia como lógica de dominação.
Fonte: http://discursosperifericos.blogspot.com.br/