quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A lógica da economia do eucalipto: Entrevista especial com Dirce Suertegaray


Fugir das leis ambientais rígidas dos países desenvolvidos e a possibilidade de adquirir terra produtiva e barata fazem do Brasil um dos países em que o mercado da celulose mais se expande. Um estudo recente apontou que, em menos de dez anos, o Brasil reservou 720 hectares por dia para plantações de eucalipto e a maior parte dessas terras pertence a empresas estrangeiras. “Além disso, o Brasil tem custo de mão de obra mais barato e a desregulação ambiental e social ou a possibilidade de violação das leis”, alerta a professora Dirce Suertegaray durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone.

Dirce Suertegaray é graduada em Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria e realizou, na mesma área, o mestrado e o doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente, leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O Brasil ganhou, nos últimos anos, 720 hectares por dia de plantações de eucalipto e parte das novas áreas pertence a empresas estrangeiras. O que isso significa?
Dirce Suertegaray – Há um projeto, no campo das empresas internacionais, ambicioso da produção de eucalipto para celulose e direcionado aos chamados “países da periferia do sistema capitalista”. Alguns países são selecionados a partir de suas características naturais e sociais. Isso é um projeto do mundo globalizado para ampliar a produção de celulose em função da alta demanda mundial por papel, e, consequentemente, por celulose.

Os países são escolhidos por conta do menor controle ambiental, menor regulação social e por demanda de terras com preço reduzido. Isso do ponto de vista econômico. Mas gera também grandes problemas sociais. Diferente do que apresentam as empresas de celulose, o trabalho é muito restrito à monocultura do eucalipto, ele é temporário, é de baixa renda e é produtor de miséria nas cidades que acolhem esta população que vai plantar o eucalipto porque todo o processo, inclusive de corte, tem sido mais mecanizado.

IHU On-Line – Essas empresas se instalam no Brasil para fugir de leis ambientais mais rígidas dos países desenvolvidos. Quais são as principais diferenças entre a legislação do Brasil e dos países de origem dessas empresas?
Dirce Suertegaray – De um lado, essas empresas vêm para fugir das leis ambientais mais rígidas. O Brasil tem leis ambientais importantes, mas os interesses econômicos rompem com facilidade o campo da política, o que não ocorre nos países centrais. Por isso, nos tornamos alvos fáceis no que diz respeito à violação de uma lei ou uma regulação federal ou estadual ambiental. A demanda da monocultura do eucalipto também está associada ao preço da terra mais barato no país. Além disso, o Brasil tem custo de mão de obra mais barato e a desregulação ambiental e social ou a possibilidade de violação das leis.

Uma das razões que também estimula o plantio de eucalipto no Brasil, entre outros países da América Latina, é a espécie que é desenvolvida e a rapidez de crescimento. Nos países centrais, as plantas de produção de celulose têm algumas exigências do ponto de vista tecnológico, o que encarece muito a produção.

IHU On-Line – No país, quais são os principais estados “escolhidos” por estas empresas e por que elas escolhem estas regiões?
Dirce Suertegaray – A grande expansão da silvicultura no Brasil começa no Espírito Santo, que é um estado cuja discussão no país é marcante. Isso acontece desde os anos 1970 e foi um projeto do período da Ditadura Militar. Além do ES, a silvicultura tem se expandido pelo sul da Bahia e norte de Minas Gerais. Nós temos também problemas de silvicultura ou áreas com ocupação de eucalipto, inclusive com conflitos sérios, em São Paulo, no Mato Grosso, no centro do país e na Amazônia.

O Rio Grande do Sul vem sendo preparado para isso desde os anos 1970, quando se colocou a discussão ambiental e se apresentou o eucalipto como a única saída. Para agravar a situação, o atual governo estadual tem estimulado o desenvolvimento da silvicultura na metade sul e usa um discurso no sentido de que é para melhorar as condições econômicas da região, que é a mais pobre do RS.

Agora, o que significa, do ponto de vista da geopolítica em termos econômicos, é que, de um lado, há uma demanda das corporações internacionais vinculadas à silvicultura de expandir a monocultura de eucalipto nos países periféricos, de outro lado eles escolhem áreas estratégicas. Esta área estratégica ultrapassa o estado; ela pega a metade sul Rio Grande do Sul, que se associa ao Uruguai e, por sua vez, se associa à Argentina. Se observarmos essa territorialização da monocultura do eucalipto, veremos que ela se expande para um território muito mais amplo na América Latina, o que é estratégico do ponto de vista da circulação. Ela está localizada às margens do rio Uruguai com uma saída pelo Mar Del Plata.

O que se observa, principalmente no sul, é a apropriação de uma terra barata, sem grande densidade populacional e que aparentemente não tem conflitos sociais. Então, este conjunto constitui uma territorialidade para a expansão deste setor da economia, que é estratégico do ponto de vista da expansão da economia mundial neste setor.

IHU On-Line – Qual a dimensão política em que o avanço da produção de eucalipto está inserido?

Dirce Suertegaray – Do ponto de vista econômico, a perspectiva é sobre a possibilidade de produção de matéria prima e exportação. No caso da celulose, não mais a tora, mas a própria importação da planta para o Brasil agrega mais valor. Então, isso faz com que, economicamente, as políticas brasileiras observem a expansão do mercado da celulose como uma possibilidade de crescimento da economia a partir de um produto com significativa exportação e demanda no mercado internacional. Essa é a questão fundamental.

Do ponto de vista político, as estratégias são mais vinculadas às corporações internacionais, de domínio de espaços para além das fronteiras originais, das regiões centrais do mundo, que apresentam recursos naturais a serem explorados. Na realidade, eles não estão explorando um recurso exclusivo do bioma pampa, mas sim uma terra que é encarada pelas autoridades como um recurso pouco produtivo e, desta forma, promove a entrada de uma nova matriz econômica nesta área.

IHU On-Line – De que forma as plantações de eucalipto podem influenciar o processo de arenização de cidades como Alegrete e São Borja, no RS?
Dirce Suertegaray – Tenho acompanhado isto e o que eu tenho observado, até fazendo relação com a biografia internacional, é que o eucalipto traz prejuízos do ponto de vista ambiental como um todo. Para o Pampa ele traz consequências dramáticas porque o eucalipto vai modificar os ciclos local e regional da água. Essa árvore é uma grande consumidora de água e os técnicos das empresas dizem o contrário. Só isso já demonstra que haverá uma transformação no ciclo hidrológico regional. Existem trabalhos internacionais que mostram como as monoculturas de eucalipto, até faixas de precipitação em torno de 1250/1300 milímetros, promovem desertificação do solo e escassez de água.

Nós já temos várias evidências empíricas dos proprietários rurais que estão vivendo próximos a grandes monoculturas de que efetivamente a água está se extinguindo. Este debate já está posto no Uruguai, pois as cabeceiras fluviais das fontes do país vizinho já estão se extinguindo e os uruguaios já estão promovendo este debate por conta da expansão da monocultura.

Também tem a questão da diversidade biológica. Isso porque bosques de eucaliptos diminuem a diversidade biológica. Os animais que vivem no bosque normalmente não têm o alimento nesta região. Por isso, eles vão procurar alimento em outros lugares como as lavouras e pomares próximos. Há, portanto, uma série de consequências de ordem ambiental que vão modificar realmente as características do Pampa e gerar problemas sociais sérios.

Além disso, o eucalipto não vai impedir o processo de arenização, porque este processo tem início com um tipo de escoamento bem específico que é a formação de ravinas e mossorocas. Por isso, dependendo da área onde ocorre esse plantio, o eucalipto não impede esse problema. Trabalhos internacionais mostram que o eucalipto não pode ser desenvolvido sobre solos arenosos, porque traz prejuízo ambiental significativo, como desgaste e erosão.

Os solos da região de arenização são arenosos, por isso são frágeis para este tipo de atividade econômica. O que está sendo colocado lá de adubo, fertilizantes e de todo o pacote tecnológico para desenvolvimento do eucalipto é significativo. E tudo isso vai contaminar o solo e a água. Hoje, já somos capazes de produzir e plantar árvores no deserto, mas as implicações disto são grandes e muitas vezes nós ainda não temos os elementos para avaliar essas consequências. Mas a contaminação da água do solo, a diminuição da diversidade, da diminuição da circulação de água no campo regional, o esgotamento de fontes, de nascentes fluviais isso tudo são evidências internacionais e nacionais.

IHU On-Line – Qual sua opinião sobre o documento de zoneamento ambiental da silvicultura do RS?
Dirce Suertegaray – Esse documento foi produzido pela FEPAM por necessidade da regulação ambiental para o desenvolvimento da silvicultura, ou seja, há uma exigência legal para a constituição de um zoneamento ambiental para a silvicultura. Este documento foi construído a partir de um conhecimento associado às universidades, setores de pesquisa. Enfim, houve um levantamento bastante detalhado no Rio Grande do Sul para promover o zoneamento e indicar quais seriam as áreas mais indicadas para o plantio de eucalipto.

Ressalvo o seguinte: esse documento não é um impeditivo à silvicultura, ele diz onde pode ser plantado o eucalipto e prevê a possibilidade de nove milhões de hectares reservados para o plantio dessa árvore. As áreas, técnica e cientificamente definidas como passíveis de serem áreas de produção de eucalipto, não foram aceitas pelos silvicultores e nem pelas políticas de estado. Não foram aceitas porque eles já tinham adquirido terras num momento anterior a este processo e as terras que foram adquiridas não necessariamente estavam vinculadas as áreas possíveis. Então, o que se faz do ponto de vista do jogo político em uma situação como esta? Entre eu vender essas áreas e comprar se tiver disponibilidade nos locais apropriados, vou tentar mudar a legislação. E foi o que aconteceu.

Foi feito todo um movimento político, vinculado inclusive ao governo do estado, para a não aceitação deste documento. Lembro que este documento normatizou segundo uma legislação nacional. A não aceitação do documento gerou tensos conflitos políticos na FEPAM, com mudança inclusive da presidência, troca de alocação e de técnicos. Isso demonstra um jogo político que envolvia a não aceitação do zoneamento porque este não estaria de acordo com os interesses das políticas de governo associadas a este capital. Do meu ponto de vista, é um zoneamento que, no campo ambiental, ainda não seria o ideal, mas pelo menos teríamos um regramento vinculado à legislação brasileira, o que daria certa ordenação. Agora nós não temos isso.

IHU On-Line – E sobre o novo Código Florestal Brasileiro?
Dirce Suertegaray – Nós estamos vivendo outro momento histórico, que é muito diferente dos anos 1970 quando se buscava um ideal de regulação. Hoje, essa regulação não está servindo para este avanço desenfreado do capital sobre as áreas onde temos uma grande reserva de recursos naturais. Temos uma diversidade de recursos muito importante, uma reserva fantástica de recursos naturais. O interesse no novo Código Florestal é para que se flexibilize a lei atual e, assim, se possa, efetivamente, explorar mais nossos recursos. Vivemos um momento político diferente e precisamos ficar atentos. Diria que, mais do que a questão ambiental, a questão política hoje é o centro do debate, porque o ambiental implica na política.

Veja também esse vídeo sobre a destruição do Bioma Pampa - RS


Fonte: http://centrodeestudosambientais.wordpress.com/tag/pulp-paper/

Eucalipto não alimenta o povo

Texto publicado no Diário de Santa Maria (RS)

Sob o sol e o céu da fronteira, os pés descalços de trabalhadores e trabalhadoras que caminham sobre a BR 290, em São Gabriel, pedem mais do que terra. A marcha do MST rumo à Fazenda Southall é, na verdade, um grito de alerta a todos aqueles que se preocupam com o futuro do Rio Grande do Sul e do Brasil.

A marcha escancarou duas visões distintas sobre o modelo de desenvolvimento para o meio rural. De um lado, poucos latifundiários, beneficiários de grandes extensões de terra que não cumprem sua função social, ansiosos por entregarem nosso Pampa às multinacionais da celulose, como é o caso da Aracruz, que tenta comprar ilegalmente a Fazenda Southall para implantar a monocultura do eucalipto. Do outro, centenas de trabalhadores que têm uma reivindicação justa: a desapropriação, para fins de Reforma Agrária, deste latifúndio de mais de 13 mil hectares, onde poderiam ser assentadas aproximadamente 600 famílias de agricultores, produzindo alimentos, gerando empregos e movimentando a economia da região.

É pública a informação de que o proprietário da Fazenda Southall possui dívidas com os cofres públicos de cerca de R$ 48 milhões, quase o mesmo valor da área. A Aracruz está negociando a compra deste latifúndio, infringindo a lei que impede a negociação de terras sob notificação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mais do que desrespeitar a lei, o fato constitui-se num verdadeiro absurdo. Neste Brasil com tanta gente sem terra e com tanta terra sem gente, uma empresa multinacional, que recebe financiamento público através do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), usará dinheiro do povo brasileiro para se apropriar de uma terra que já deveria ter sido transformada em assentamento. Para quem não se lembra, em 2003 o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o decreto de desapropriação da Fazenda Southall, em circunstâncias até hoje não esclarecidas, que envolvem até mesmo uma relação de parentesco da ministra do STF, Ellen Gracie, com a família do proprietário.

O MST defende que as terras brasileiras sejam destinadas aos trabalhadores brasileiros, e não a multinacionais que se apropriam dos nossos recursos naturais, exploram nossa força de trabalho e enviam os lucros para fora do Brasil. A própria Aracruz anunciou, recentemente na imprensa, que vai exportar 100% da produção de celulose da nova fábrica de Guaíba, a partir de 2011. Ou seja, não deixará aqui nem o dinheiro dos impostos, uma vez que a chamada Lei Kandir livra de taxas as empresas exportadoras.

A Aracruz anunciou, ainda, que pretende plantar nada menos que 155 mil hectares no Estado, gerando mil empregos na área “florestal”. Trocando em miúdos, a empresa admite que vai gerar apenas um emprego a cada 155 hectares plantados. Os demais empregos, que surgem aqui e ali, são sazonais e precários.

Para além da questão econômica, é preciso deixar claro que empresas como a Aracruz Celulose praticam verdadeiros ataques ao meio-ambiente e às populações pobres nas regiões onde atuam. No Espírito Santo, um parecer da Fundação Nacional do Índio (Funai) comprova que a Aracruz se apropriou de 18 mil hectares de terras dos índios Tupiniquim e Guarani. Contra eles, a empresa lançou uma série de ataques, motivo pelo qual está sendo denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) daquele Estado por racismo praticado contra as populações indígenas.

O eucalipto, plantado em larga escala, acarreta impactos ambientais devastadores. Um estudo do engenheiro agrônomo Carlos Alberto Dayrell, de Minas Gerais, revelou que no Norte daquele Estado as monoculturas de eucalipto consumiram, em sete anos, mais de 1,6 bilhões de metros cúbicos de água, comprometendo a recarga dos aqüíferos da região. No norte do Estado do Espírito Santo, a Aracruz consome água equivalente ao abastecimento de 2,5 milhões de pessoas por dia. Será uma agressão à região da Campanha, que já vem enfrentando secas nos últimos anos. Além disso, as fábricas de celulose estão entre as mais poluidoras das indústrias, despejando no ar e nos rios o Dióxido de Cloro, utilizado no branqueamento da celulose.

No Rio Grande do Sul, correm no MPF pelo menos 11 inquéritos que analisam possíveis violações da legislação ambiental praticadas pelas empresas de celulose. A multinacional filandesa Stora Enso, por sua vez, faz pressões para que a chamada faixa de fronteira seja reduzida, através de mudanças na lei federal, de 150 km para 50 km, porque nesta área estão proibidas as compras de terra por empresas estrangeiras. É por essas e outras que as três grandes empresas – Aracruz, Votorantim e Stora Enso – doaram R$ 1,960 milhão para o financiamento das campanhas de candidatos gaúchos nas últimas eleições. Foram eleitos com ajuda das empresas de celulose nada menos que 35 deputados estaduais e federais do Rio Grande do Sul, alguns dos quais são freqüentemente vistos nos churrascos promovidos pelos ruralistas nas barreiras contra as marchas do MST.

Essas informações resumem um pouco das práticas destas empresas, que estão querendo se apossar de aproximadamente um milhão de hectares de terra para implantar, no nosso Estado, os chamados desertos verdes. As grandes plantações de eucalipto são assim chamadas porque, além de consumir uma grande quantidade de água, impedem o crescimento da vegetação e a sobrevivência dos animais, com as altas cargas de veneno aplicadas. Nos “bosques do silêncio”, como definiu o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a terra é ressecada e o solo, arruinado. Neles, os pássaros não cantam.

O projeto de desenvolvimento para o campo defendido pelo MST é outro. É um modelo baseado naquilo que o latifúndio exportador não faz: produzir alimentos e gerar empregos no nosso País. Reforma Agrária é isso. Um estudo recente conduzido pelo geógrafo da Universidade de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, revelou que as pequenas propriedades rurais são responsáveis por 88% da produção de aves, 72% da produção de leite e 87% da produção de suínos consumidos pela população brasileira, para ficarmos apenas em alguns exemplos.

Mas não é preciso irmos longe para compreendermos a importância da Reforma Agrária, principalmente em uma região marcada pela existência de grandes propriedades rurais que só atingem os índices mínimos de produtividade porque estes estão baseados no censo agropecuário de 1975. No município de Pontão, no norte do Estado, existe um dos mais antigos assentamentos do MST. Na área de nove mil hectares da Fazenda Anoni, hoje vivem 420 famílias de agricultores, que produzem anualmente 20 mil sacas de trigo, seis milhões de litros de leite, 150 mil sacas de soja, 35 mil sacas de milho, 45 toneladas de frutas, 800 cabeças de gado, cinco mil cabeças de suínos e dez mil quilos de hortaliças. Essa produção movimenta o comércio local e leva alimento sadio para a mesa dos trabalhadores da região. Não é à toa que 26 prefeitos daquela região pediram publicamente a desapropriação da Fazenda Guerra, uma área de nove mil hectares localizada em Coqueiros do Sul. Mais perto de São Gabriel, na região de Bagé, o MST desenvolve o projeto da Bionatur, uma cooperativa que produz 117 variedades de sementes livres de agrotóxicos, envolvendo o trabalho de 230 famílias, em 20 municípios do Sul do Brasil e de Minas Gerais.

Esse é o destino defendido pelo MST para a Fazenda Southall. Um assentamento para 600 famílias no local geraria 1,8 mil empregos só na agricultura. Seria um emprego a cada sete hectares, muito mais do que o prometido pela Aracruz. Isso sem contar os postos de trabalho na construção de casas, para motoristas, comerciantes, professores, entre outros. Para se ter uma idéia, o assentamento da Fazenda Anoni, em Pontão, possui seis escolas públicas. Os funcionários e arrendatários da Southall também serão beneficiados pela Reforma Agrária, ao contrário do que aconteceria caso a Aracruz, de fato, comprasse a área.

Todas essas informações não são ditas pelos latifundiários e por parte da mídia, que qualificam os trabalhadores Sem Terra de desocupados e baderneiros. Numa sociedade em que os políticos e a imprensa são financiados pelas grandes empresas do agronegócio, é natural que isso ocorra. A estes, cabe perguntar se estarão dispostos a se alimentar de eucalipto num futuro próximo.

A Constituição Federal diz que a terra que não cumpre sua função social deve ser destinada àqueles que nela desejam trabalhar. E não há maior desrespeito a esta função social que um latifúndio inadimplente ou um deserto verde. Por isso, os trabalhadores e trabalhadoras do MST, que integram esta grande marcha na região de São Gabriel, têm o direito constitucional de conquistar a terra para produzir seu próprio sustento. São eles que irão levar alimento à mesa da população. Foram eles que alertaram a região sobre a verdadeira invasão das multinacionais do eucalipto. Prestemos atenção, pois, no que dizem os pés descalços que avançam sobre a BR 290.

Fonte: Coordenação estadual do MST RS

Não plante eucalipto, plante alimentos! O lucro é maior e todos ganham

GT Ambiente AGB-Rio e Movimentos Sociais

EUCALIPTO – COMO, ONDE, PARA QUÊ E PARA QUANTOS?
“Os impactos sobrevieram, então, como uma avassaladora avalanche em queda abrupta. Trabalho escravo e trabalho infantil em carvoarias, associados ao manejo florestal celulósico. Devastação da mata Atlântica, assoreamento de grandes rios e o desaparecimento de inúmeros córregos; desestruturação da agricultura familiar, violentas lutas por terra: com os tupiniquins, guaranis e os negros remanescentes de quilombos. O envenenamento da população do entorno florestal por agrotóxicos. Terceirização das operações florestais e depredação das condições de trabalho. Mecanização abrupta do corte e desemprego aberto de milhares de motoserristas no norte do Espírito Santo e, também, na região de Aracruz. Os problemas na saúde do trabalhador florestal, dos acidentados e mutilados do eucalipto”.
Acerca da sociedade capixaba – Retrospectiva e perspectiva dos 30 anos da monocultura do eucalipto no Espírito Santo*
“Na Bahia os problemas foram semelhantes, mas ocorreram em um período mais recente, com maquiagens e disfarces mais sofisticados e foram agravados pela direção hegemônica que os governos concederam às empresas com tanta generosidade, desestimulando outras atividades econômicas, engessando a possibilidade de diversos avanços sócio-culturais e dificultando a recuperação de uma das maiores biodiversidades do planeta”
CEPEDES – Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia
“Pode ser superior a 50 mil o número de trabalhadores rurais explorados pela indústria carvoeira e madeireira em Minas Gerais, sem registro de trabalho e que desenvolvem suas atividades em condições subumanas, de acordo com a Coordenação de Fiscalização Rural da Delegacia Regional do Trabalho”.
A Comissão Parlamentar de Inquérito das Carvoarias vai além, ao afirmar que essas indústrias continuam explorando mão-de-obra infanto-juvenil”. Jornal Minas, 5 de abril de 2002
“Nos anos 60, a monocultura do eucalipto causou profundos impactos sócio-ambientais em Minas Gerais. Nos anos 70, foi a vez do Espírito Santo. Nos anos 80, o palco da devastação foi a Bahia. Em 2000, a indústria de celulose volta os olhos para o Rio de Janeiro. Será que a ânsia de ocupar melhores posições no sedutor mercado mundial de celulose mais uma vez irá determinar uma intervenção desastrosa sobre o espaço rural?”.
Rede Alerta contra o Deserto Verde
Eucalipto - Árvore da família das Mirtáceas cuja origem principal é a Austrália, não sendo portanto, nativa do Brasil. Possui um ciclo de crescimento relativamente curto (o primeiro corte é feito em 7 anos), e este crescimento rápido a distingue das demais essências florestais, que em geral apresentam crescimento mais lento.
Múltiplo uso do eucalipto - O eucalipto possui uma grande versatilidade de uso e por isso mesmo é útil à propriedade rural. Em alguns casos contribuiu para reduzir as pressões contra as florestas nativas, mas esse argumento já favoreceu seu uso indiscriminado prejudicando as culturas tradicionais, inclusive de espécies nativas, em geral colocadas em segundo plano pela pesquisa científica.
O eucalipto na indústria da celulose - Em termos econômicos, o principal destino do eucalipto no Brasil e no mundo é a indústria de celulose, que o utiliza como matéria-prima para a produção de polpa de celulose. Para isso cozinha-se a madeira picada e depois essa pasta é clareada utilizando-se produtos químicos extremamente tóxicos. Essa polpa semi-elaborada é utilizada na fabricação de papéis. A fibra curta do eucalipto tem sido utilizada para fabricar papéis sanitários (higiênicos e produtos descartáveis como toalhas e lenços de papel).
A economia da celulose - A indústria da celulose mantém uma estreita relação com o setor rural, subordinando-o inteiramente de modo a atender seus interesses econômicos. Grande parte da produção brasileira de polpa é destinada ao mercado externo, para reprocessamento.
Mercadoria exportada não paga ICM! - Para completar o quadro, a indústria da celulose não contribui efetivamente para o aumento dos valores de impostos repassados para o Estado e Municípios. Isto porque tendo sido ela beneficiada pela Lei Kandir, o ICMS não incide sobre toda a cadeia produtiva para a produção de celulose.
Enquanto isso, o mercado mundial de celulose movimenta hoje US$ 150 bilhões.
O produtor rural recebe muito pouco da riqueza que ajuda a gerar.
A cotação da polpa de celulose no mercado mundial alcança hoje cerca de US$ 500,00 por tonelada. Estimando-se serem necessários 4 metros cúbicos de madeira para produzir 1 (uma) tonelada de celulose, e considerando-se o preço atualmente para ao produtor – R$ 28,00/ m3, tenis qye a indústria desembolsa R$ 112,00 para adquirir matéria-prima suficiente para produzir R$ 1.800 (1 tonelada de celulose). Ou seja, a agricultura participa com apenas 6% do valor alcançado pelo produto processado, sendo este preço 16 vezes maior que o valor do produto primário.
Fonte: Aracruz (eucalipto), Fundação Luterana de Sementes, FASE, Incaper
OBS: as informações referem-se à médias estimadas, cabendo as variações de acordo com a região, sistema de produção utilizado, condições de mercado, entre muitos outros fatores.
Fomento florestal: só uma opção de comprador - Para garantir regularidade no fornecimento de eucalipto a indústria faz contratos com o produtor, à semelhança do que ocorre com outras cadeias agroindustriais no Brasil, como a do tomate, goiaba, frango, suínos e outras. No caso do eucalipto, esta integração com a indústria é chamada fomento florestal. Através do fomento florestal são firmados contratos de fornecimento entre o produtor e uma determinada empresa.
O produtor só tem portanto, uma opção de comprador. Sendo assim, seu poder de barganhar preços é muito baixo, sobretudo se ele for desarticulado, ou seja, não participar de associações.
Assalariamento disfarçado - Nos contratos de fomento florestal os produtores não necessitam investir qualquer quantia, a empresa fornece as mudas, o adubo, o formicida e a assistência técnica para desenvolver as plantações. Alguns estudiosos consideram que estas relações não passam de um “assalariamento disfarçado”, com a desvantagem do produtor rural assumir inteiramente os riscos da produção agrícola e não receber nenhum benefício social.
Alimentos dão lucro maior e possuem maiores opções de venda - Outros produtos agrícolas, como frutas e hortaliças, oferecem ao produtor mais opções de venda (feira, mercado do produtor, sacolões, merenda escolar, supermercados locais, etc.). Além disso, ele tem a chance de obter preços muito melhores por estes produtos processando-os em pequenas agroindústrias e ainda produzindo alimentos orgânicos, cujo mercado hoje está em crescimento e é altamente remunerador.
Subordinação do setor rural ao capital industrial: Quem decide o rumo do desenvolvimento?
A Indústria de celulose e sua ânsia por melhores posições no mercado mundial, quer ser a única determinadora de onde, como e para quem se ocupará o espaço rural, o que está em desacordo com a legislação federal, que determina a realização de um zoneamento agroecológico antes da implantação de algum projeto de desenvolvimento em todo o território nacional, segundo a Lei 8.171 da Política Agrícola e Código Florestal.
O zoneamento agroecológico é participativo - O zoneamento agroecológico é, na verdade, um estudo que deve identificar as potencialidades do território e classificar as áreas segundo diferentes padrões desejáveis de uso. Ele deve ser capaz de ordenar o território de forma a combinar desenvolvimento econômico com a preservação do meio ambiente em todo o território nacional. E todos os grupos sociais envolvidos devem participar destas discussões durante sua elaboração
Impactos sociais da monocultura do eucalipto - A indústria, ou seja, um único interesse privado, decide, à sua conveniência, a localização e o tamanho dos projetos rurais por critérios puramente lucrativos. Ora, e se região escolhida estiver definida pelo Estado como área prioritária para Reforma Agrária, como ocorre com as regiões Norte e Noroeste fluminense, regiões com fortes indicadores de pobreza e com um grande número de famílias a serem assentadas?
A monocultura de eucalipto gera muito pouco emprego - Enquanto que um hectare na fruticultura pode gerar 10 empregos, a monocultura de eucalipto gera tão pouco emprego que os números divulgados pelas empresas são assim: “1000 há geram 50 empregos diretos em 5 anos” – ou seja, 0,05 emprego por hectare em 5 anos!! Podemos imaginar um triste cenário de êxodo rural com a ocupação maciça desta monocultura em uma determinada região.
Impactos ambientais da monocultura do eucalipto - Nenhuma outra cultura cresce tanto em tão pouco tempo, para isso é necessário o consumo de grandes quantidades de água e nutrientes, tais como o potássio e magnésio do solo. Em áreas já degradadas, plantios homogêneos podem levar à completa exaustão do solo. O monocultivo pode afetar também mananciais de água, além de rebaixamento de lençol freático.
Uso de pesticidas - Os plantios industriais, quando se instalam, dependem da aplicação de grandes quantidades de herbicidas, provocando graves impactos no meio hídrico, na fauna e nos trabalhadores que os aplicam.
Monocultura de eucalipto em regiões em processo de desertificação - O que acontecerá caso grandes plantações ocupem áreas em processo de desertificação, já com problemas de escassez de água?
Eucaliptocultura e os impactos à biodiversidade - Qualquer atividade agrícola tem um nível de perturbação no ecossistema. Sabemos que as monoculturas causam consideráveis impactos ambientais. No caso da monocultura de eucalipto, há uma forte limitação à presença da fauna, uma vez que não existem frutos. Também é difícil o consórcio com outras culturas ou outras espécies vegetais graças aos efeitos tóxicos de substância emitidas pela árvore (alelopatia).
Política de incentivo governamental - Para se ter uma idéia, uma única empresa fabricante de celulose recebeu do governo federal, via BNDES, 1 (um) bilhão de reais para expansão de suas instalações industriais. Enquanto isso, o governo federal destinou ao longo de um ano apenas R$ 600 milhões para a agricultura familiar em todo o Brasil.
Mas não precisamos de papel? - Para ilustrar, sabemos que os Estados Unidos consomem 347 kg de papel por pessoa/ano, o Brasil 38 kg/pessoa/ano e o Vietnam 6 kg/pessoa/ano. Será que o consumo de papel está de fato relacionado à civilização, à alfabetização? Pois bem, o Vietnam possui o mesmo nível de alfabetização que os Estados Unidos, 95%.
Além disso, grande parte da fibra de celulose produzida a partir do eucalipto destina-se à produção de papéis descartáveis.
Conclusão - Por todas estas razões, a Rede Alerta contra o Deserto Verde, formada por mais de 100 entidades nos estados do Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, tem procurado conscientizar a sociedade para os riscos da formação de um verdadeiro deserto verde, em detrimento da Reforma Agrária, da produção de alimentos em sistemas familiares diversificados e ecológicos, da recuperação dos ecossistemas ameaçados, das possibilidades geradas pelas florestas sociais, em prejuízo das águas, das economias regionais e da vida!

Bibliografia
*Calazans, Marcelo. Acerca da sociedade capixaba-Retrospectiva e perspectiva dos 30 anos de monocultura do eucalipto no Espírito Santo, s.d.
Carrasqueira, M.V Eucalipto: Mais lenha na fogueira! S.d.
Fomento Florestal – o que é, a quem interessa, quando ganha o produtor? Centro de Defesa dos Direitos Humanos – Teixeira de Freitas, Bahia, s.d.
Seminário Internacional sobre Eucalipto e seus Impactos – Vitória, agosto de 2001, realizado pela Assembléia Legislativa do Espírito Santo.

Rede Alerta contra o Deserto Verde
ACAPEMA – Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente
ADEFAI – Associação dos Deficientes Físicos e Amigos de Iconha
AEARJ – Associação de Engenheiros Agrônomos do Rio de Janeiro
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seção Vitória (ES)
AGB-Rio – Associação dos Geógrafos Brasileiros – Rio
AMJAP – Associação de Moradores de Jardim da Penha (Vitória/ES)
AMPRDI – Associação de Moradores e Produtores Rurais de Iconha
AMUTRES – Associação de Mulheres Trabalhadores Rurais/ES
APEDEMA – Assembléia Permanente das Entidades de Defesa do Meio Ambiente
Associação Padre Gabriel Maire em Defesa da Vida
Bicuda Ecológica
CECUN/ES – Centro de Estudo e Cultura Negra/ES
Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Regional Sul
Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra
Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Baixo Guandu
Centro de Defesa dos Direitos Humanos de São Gabriel da Palha
Centro de Defesa dos Direitos Humanos do Extremo Sul da Bahia
CEPEDES – Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento do Extremo Sul da Bahia
CIMI Equipe ES – Conselho Indigenista Missionário
Cimi Equipe Extremo Sul da Bahia
CNFCN – Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza
Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Alerj
Conselho Municipal de Educação de cachoeiro de Itapemirim
COOPICAR – Cooperativa das Famílias Carvoeiras do Norte do Espírito Santo
CPT – Comissão Pastoral da Terra
Rede Alerta contra o Deserto Verde
CUT Extremo Sul da Bahia
CUT/ES – Central Única dos Trabalhadores
CUT-RJ
Espaço Cultural da Paz (Teixeira de Freitas/BA)
FAEARJ – Federação das Associações de Moradores e Movimentos Populares de Cachoeiro de Itapemirim
FAMMOPOCI – Fed. De Associações de Moradores e Movimentos Populares do Espírito Santo
FASE – Solidariedade e Educação
FASE/ES – Fed. De Órgãos para Assistência Social e Educacional
FASE/Itabuna/BA
FETAES – Federação dos trabalhadores na Agricultura/ES
FETAG – Federação dos trabalhadores na agricultura
Fórum de Lutas do Campo e da Cidade
Fórum de Mulheres do Espírito Santo
Fundação Canaan
Gambá – Grupo Ambientalista da Bahia
Igreja de confissão Luterana/Brasil (Sínodo do Espírito Santo a Belém)
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
MCPA – Movimento de Cidadania pelas Águas – Brasil
Missionários Combonianos (Carapina/Serra/ES)
Movimento Nacional de Direitos Humanos – Regional Leste
Movimento Nacional de Meninas e Meninos de Rua
MPA – Movimento dos pequenos Agricultores do Espírito Santo
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OJAB – Organização da Juventude Negra – Nação Zumbi
ONGAL – ONG Amigos do Lameirão
Pastoral Social de Braço do Rio
Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Sindicado dos Trabalhadores em Cal e Gesso do Espírito Santo
Sindicado dos Trabalhadores na Indústria do Mármore/ES
Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Jaguaré
Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Linhares
Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Montanha
Sindicado dos Trabalhadores Rurais de São Gabriel da Palha
Sindicado dos Trabalhadores Rurais de São Mateus
SINDIPEIRO – Sindicato dos Petroleiros
SINDIUPES – Sindicato dos Professores da Rede pública/ES
Verdejar – Proteção Ambiental e Humanismo
Fonte: AGB Rio

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Manifesto Contra a Anistia aos Torturadores


O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como amplamente divulgado.

Compartilhamos este momento de alegria, neste final de ano, com todos que assinaram o manifesto enviado ao Supremo Tribunal

Federal (na ADPF 153).

A demanda da Corte foi proposta pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Grupo Tortura Nunca Mais do RJ e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo (CFMDP-SP).

Algumas entidades ingressaram como "amicus curiae", dentre elas a Associação Juízes para a Democracia, que requereu a preocedência do pedido, especialmente, no tocante à Lei de Anistia, principal obstáculo para a investigação dos crimes de lesa humanidade cometidos durante o regime militar e apresentou para a Corte a "Campanha Contra a Anistia aos Torturadores", realizada por todos nós subscritores, que em curto periodo reuniu cerca de 21.000 assinaturas, homens e mulheres, de diversos segmentos e áreas de atuação, indicativo que parcela significativa do povo brasileiro não aceita a manutenção desta violação até os dias de hoje.

A Corte decidiu pela incompatibilidade da lei da anistia com o direito internacional e a Convenção Americana.

Estabeleceu que o Brasil violou o direito à justiça, pois deixou de investigar, processar e sancionar os crimes, em virtude da interpretação da Lei de Anistia brasileira, reafirmada pelo STF, permitindo a impunidade dos crimes contra humanidade praticados durante a ditadura.

Determinou remover todos os obstáculos práticos e jurídicos para a investigação de graves violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, tais como a prescrição, a irretroatividade da lei e coisa julgada, a fim de assegurar o pleno cumprimento da sentença e que os processos não devem ser examinados pela justiça militar, além de dar pleno acesso aos familiares das vítimas às investigações e julgamentos.

Abaixo, alguns trechos da sentença, que dizem mais proximamente ao decidido na ADPF.

A íntegra da sentença você pode ler em : http://bit.ly/fCiqkW

Como dizem sábias mulheres:

"A luta que se perde é aquela que se abandona".

Agora e em 2011, outros caminhos devem ser construídos para a execução da sentença.

Comitê Contra a Anistia aos Torturadores

Alguns trechos da sentença:

“171. [...] [P]ara efeitos do presente caso, o Tribunal reitera que “são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”.

172. A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil [...] afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana.

174. Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

175. Quanto à alegação das partes a respeito de que se tratou de uma anistia, uma auto-anistia ou um “acordo político”, a Corte observa, como se depreende do critério reiterado no presente caso [...], que a incompatibilidadeem relação à Convenção inclui as anistias de graves violações de direitos humanos e não se restringe somente às denominadas “autoanistias”. [...]”

176. Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte interamericana, intérprete última da Convenção Americana.”

177. No presente caso, o Tribunal observa que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar suas

obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razõesde ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações convencionais dos Estados Parte vinculam todos sus poderes e órgãos, os quais devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos próprios (effet utile) no plano de seu direito interno.

179. Adicionalmente, com respeito à suposta afetação ao princípio de legalidade e irretroatividade, a Corte já ressaltou (supra pars. 110 e 121) que o desaparecimento forçado constitui um delito de caráter contínuo ou permanente, cujos efeitos não cessam enquanto não se estabeleça a sorte ou o paradeiro das vítimas e sua identidade seja determinada, motivo pelos quais os efeitos do ilícito internacional em questão continuam a atualizar-se. Portanto, o Tribunal observa que, em todo caso, não haveria uma aplicação retroativa do delito de desaparecimento forçado porque os fatos do presente caso, que a aplicação da Lei de Anistia deixa na impunidade, transcendem o âmbito temporal dessa norma em função do caráter contínuo ou permanente do desaparecimento forçado.”

“256. [...] o Estado deve conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha7. Essa obrigação deve ser cumprida em um prazo razoável, considerando os critérios determinados para investigações nesse tipo de caso, inter alia: [...]

b) determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação. [...]

“257. Especificamente, o Estado deve garantir que as causas penais que tenham origem nos fatos do presente caso, contra supostos responsáveis que sejam ou tenham sido funcionários militares, sejam examinadas na jurisdição ordinária, e não no foro militar. Finalmente, a Corte considera que, com base em sua jurisprudência, o Estado deve assegurar o pleno acesso e capacidade de ação dos familiares das vítimas em todas as etapas da investigação e do julgamento dos responsáveis, de acordo com a lei interna e as normas da Convenção Americana. Além disso, os resultados dos respectivos processos deverão ser publicamente divulgados, para que a sociedade brasileira conheça os fatos objeto do presente caso, bem como aqueles que por eles são responsáveis.”

Fonte: AJD juizes@ajd.org.br (por e-mail)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Enchentes e criminalização do povo da periferia – Apoio aos moradores do Jd. Pantanal


Moradores do Jd. Pantanal e militantes do movimento Terra Livre divulgaram atrocidades cometidas pelo Estado contra moradores e vítimas de enchentes na zona leste de São Paulo na última sexta-feira, dia 17 de dezembro.

Desde o ano passado tem sido denunciada a situação de famílias que vivem em território violentado por enchentes criminosas orquestradas pela prefeitura e governo do estado. A área também está na mira dos despejos e reorganização da cidade, e nada foi feito para combater o efeito das águas, que novamente invadiu as casas. Dessa vez, foi ainda pior: ao invés de receber ajuda do Estado, houve repressão por parte da polícia civil e dois moradores foram presos. Seguimos alerta contra a repressão do Estado e estamos juntos na luta contra a violência e criminalização do povo da periferia. Para mais informaçôes clique aqui.

Fonte: http://redeextremosul.wordpress.com

domingo, 19 de dezembro de 2010

Venício Lima faz balanço do governo Lula na área de Comunicação

O balanço dos governos Lula na comunicação
Por Venício A. de Lima

Este texto pretende fazer um breve balanço crítico da política de comunicações ao longo dos oito anos de governo Lula (2003-2010), sobretudo no que se refere ao serviço público de radiodifusão. Obedecendo aos eixos temáticos definidos pela Fundação Friedrich Ebert, trata dos principais condicionantes estruturais do pluralismo e da diversidade – estrutura legal, concentração da propriedade e fontes de financiamento –, além de descrever avanços, derrotas e recuos na política de comunicações, e de identificar tendências do contexto e das estratégias de disputa em torno da regulação do setor.

1. Estrutura do sistema de meios de comunicação

1.1 Marco Regulatório


"Trusteeship model "
– A primeira característica "moderna" da mídia brasileira é que o Estado fez uma opção – ainda na década de 1930– por um modelo de exploração da radiodifusão que privilegia a atividade privada comercial. Poderia ter sido de outra forma. Para ficar com o exemplo clássico, na mesma época, a Inglaterra fazia a opção oposta, isto é, privilegiou o próprio Estado como operador e executor da atividade de radiodifusão. Mas, no que se refere ao rádio e a televisão, adotamos o modelo que tem origem nos Estados Unidos. É mais ou menos uma curadoria: compete à União a exploração de um serviço que o delega para administração e operação de terceiros.

O rádio e a televisão são, em sua maioria, outorgas do Poder Público para a iniciativa privada. O prazo de vigência para as concessões de rádio é de 10 anos e de televisão, 15 anos. Na prática elas se transformam em propriedade privada, já que a não renovação ou o cancelamento de uma concessão são situações praticamente impossíveis do ponto de vista legal. Desde quando o rádio foi introduzido no Brasil, e foi regulado pelo Estado, optou-se por privilegiar esse modelo de curadoria. Não foi uma opção que contou com a participação popular. Ao contrário, foi uma decisão de gabinete, sem que houvesse qualquer debate ou participação pública.


"No law" –
Na mídia brasileira predomina a no law, ou seja, a ausência de regulação. A principal referência legal ainda é o quase cinquentenário Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962. Desatualizado, foi fragmentado pela Lei Geral de Telecomunicações, de 1997 e é complementado por várias normas avulsas para serviços específicos (diferentes modalidades de televisão paga, por exemplo) que, em alguns casos, são até mesmo contraditórias. Ademais, as normas constitucionais existentes, em sua maioria, não foram regulamentadas pelo Congresso Nacional e, portanto, não são cumpridas. Um exemplo emblemático são os princípios para a produção e a programação do serviço público de radiodifusão (Artigo 221), que deveriam também servir de critério para a outorga e a renovação de concessões e, no entanto, são ignorados.

A situação é de tal forma grave que, em novembro de 2010, a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão (FITERT) e a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 09) pedindo ao Supremo Tribunal Federal que declare "a omissão inconstitucional do Congresso Nacional" em legislar sobre a matéria.


Situação ao final do governo Lula


** Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa (LGCEM) – Durante o primeiro governo Lula, duas comissões foram criadas com a finalidade de produzir um pré-projeto de LGCEM. No entanto, elas nunca chegaram a se reunir. A primeira – que era um GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) – esperou oito ou nove meses para que seus membros fossem indicados. Quando finalmente indicados e marcada uma primeira reunião, o governo decidiu que não seria mais um GTI, mas sim uma Comissão Interministerial (CI), com representantes também da Procuradoria Geral da República e outros órgãos. A primeira comissão, um GTI, deixou de existir, embora nunca tivesse se reunido. E a nova, uma CI, também nunca se reuniu.


O tema, no entanto, não morreu. Em julho de 2010, o presidente Lula assinou novo decreto criando outra CI para "elaborar estudos e apresentar propostas de revisão do marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiofusão". Fazem parte da nova comissão representantes da Casa Civil, dos ministérios das Comunicações e da Fazenda, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (SECOM) e da Advocacia Geral da União. Representantes de órgãos e entidades da administração federal, estadual e municipal, além de entidades privadas, poderão ser convidados a participar das reuniões. O artigo
6º do decreto diz que "a Comissão Interministerial encerrará seus trabalhos com a apresentação, ao Presidente da República, de relatório final", mas não estabelece prazo para que isso ocorra [íntegra do decreto].

A pouco menos de dois meses do término do governo Lula, em novembro de 2010, um primeiro resultado público do trabalho da nova CI, liderado pela SECOM, se materializou na realização do "Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergências de Mídias", em Brasília. Representantes de três organismos internacionais – Comissão Européia, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e UNESCO – e de órgãos reguladores de cinco países – Portugal, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos e Argentina – debateram, ao longo de dois dias, com empresários de mídia, jornalistas, parlamentares, acadêmicos, ONGs, movimentos sociais e funcionários públicos graduados, diferentes formas adotadas para regulação democrática do setor de comunicações. [As proferidas do Seminário estão disponíveis aqui.] Além de qualificar o debate público do tema com o conhecimento das experiências internacionais, um dos objetivos era fornecer subsídios para (finalmente) a elaboração do pré-projeto de um "marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiodifusão".


** Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (ANCINAV) – O projeto de transformar a ANCINE (Agência Nacional de Cinema) em Ancinav – que seria o órgão regulador e fiscalizador da produção e distribuição dos conteúdos audiovisuais – não chegou sequer a ter uma versão final. Um pré-projeto não oficial vazado para a imprensa provocou uma feroz e intensa campanha de oposição, movida, sobretudo, pelos grupos tradicionais de mídia. Diante disso o governo decidiu, em janeiro de 2005, que os estudos prosseguiriam mas que, prioritariamente, deveria ser construída uma proposta de regulação mais ampla dentro da qual a transformação da ANCINE em ANCINAV pudesse ser incluída. O argumento foi de que não se poderia implantar uma agência reguladora do audiovisual sem se ter primeiro uma LGCEM.


Em janeiro de 2005 o governo anunciou que seria encaminhada ao Congresso Nacional uma nova proposta de legislação contemplando apenas os setores de fomento e de fiscalização na área da produção audiovisual. Isso atendia aos interesses de grupos que faziam oposição ao projeto de transformação da ANCINE em ANCINAV. A nova proposta de lei foi de fato elaborada e enviada ao Congresso Nacional, em junho do ano seguinte, e seis meses depois transformada na Lei nº 11.437, de 28 de dezembro de 2006, que criou o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) regulamentado pelo Decreto nº 6.299, de 12 de dezembro de 2007.


** Rádios comunitárias – O governo Lula não foi capaz de implementar políticas democratizantes em relação às rádios comunitárias, que continuam regidas por uma legislação excludente aprovada no governo de Fernando Henrique Cardoso (Lei nº 9.612/1998). Ainda em 2003 foi criado um Grupo de Trabalho (GT) que chegou a produzir um relatório final. Mudou-se o ministro das Comunicações, criou-se agora um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), que se reuniu ao longo de 2010 produzindo também extenso relatório final. Mudou-se novamente o ministro e o novo titular da pasta não aceitou o relatório final do GTI, que nunca chegou a ser encaminhado à Presidência da República.


A repressão às rádios comunitárias – que não conseguem se legalizar, na maioria das vezes por inoperância do próprio Ministério das Comunicações – em certos momentos chegou mesmo a aumentar, comparada ao governo anterior.


** RTVIs – As RTVIs (Retransmissoras de TV Institucionais) foram criadas pelo Decreto nº 5.371, de 17 de fevereiro de 2005. Elas representavam uma excelente oportunidade para o poder municipal se tornar retransmissor de emissoras de TV do campo público e, também, produtor de conteúdo. O decreto abria a possibilidade de uso da TV a cabo por prefeituras em até 15% do tempo total de retransmissão.


A "brecha" foi saudada por todos os que se interessam pela democratização do mercado da comunicação e o fortalecimento da televisão pública. A TV a cabo, ainda hoje, alcança apenas cerca de 260 municípios dos mais de 5.600 existentes no país. Como as operadoras de TV a cabo são obrigadas, por lei, a transmitir canais comunitários, as atividades das Câmaras de Vereadores seriam transmitidas e haveria também a possibilidade da geração de receitas publicitárias e do início da produção de conteúdo local. Houve, no entanto, uma forte reação dos grupos privados de radiodifusão e, menos de dois meses depois da assinatura do Decreto 5.371, um novo Decreto – de nº 5.413, de 6 de abril de 2005 – foi assinado voltando atrás e extinguindo as RTVIs.


** TV Digital – A escolha do modelo japonês para a implantação da TV Digital no Brasil, consolidada ao longo de uma profunda crise política (2005) e em ano eleitoral (2006), sinalizou um recuo importante na postura anterior do governo Lula em relação à política de digitalização da televisão.


No início do processo, o Decreto nº 4.901 de 26/11/2003, que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), contemplou a participação direta de representantes da sociedade civil organizada que já faziam parte do Comitê Consultivo do SBTVD e discutiam as alternativas de política. No entanto, a partir da nomeação do senador Hélio Costa (PMDB-MG) para ministro das Comunicações, em julho de 2005, esse comitê foi sendo esvaziado e marginalizado pelo próprio Ministério das Comunicações e os representantes da sociedade civil perdendo a voz até que, na decisão final, não tiveram qualquer interferência.


Dois anos e sete meses após a criação do SBTVD, um novo decreto altera radicalmente a política anterior. O Decreto nº 5.820 de 29/06/2006 – apesar de criar um canal "de cultura", destinado à transmissão de produção cultural e programas regionais, e um canal "de cidadania" para transmissão, dentre outros, de programas de comunidades locais – atendeu diretamente aos grupos dominantes de mídia, em especial aos radiodifusores. A eles interessava garantir a comercialização de seus conteúdos diretamente aos usuários da telefonia móvel, sem depender da intermediação das empresas de telefonia. Mas, sobretudo, interessava evitar a oportunidade histórica de ampliação do número de concessionários de televisão no país.


O Ministério Público de Minas Gerais iniciou ação civil junto à Justiça Federal pela nulidade do Decreto nº 5.820, ainda em agosto de 2006, mas não logrou sucesso na iniciativa. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), por sua vez, protocolou no Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2007, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra o mesmo decreto que veio, finalmente, a ser julgada improcedente três anos depois, em 5 de agosto de 2010.


** Regulamentação da TV Paga – Desde 2007 tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que "abre o setor de TV por assinatura para as teles, cria a separação de mercado entre produtores de conteúdo e empresas de distribuição e ainda cria cotas de programação nacional nos pacotes de canais pagos", além de revogar a Lei do Cabo de 1995.


Na sua complicada e controversa versão atual, o projeto – PLC 116 do Senado Federal – é o resultado da articulação inicial de três propostas representando grupos e interesses distintos: o PL 29/2007, do deputado Paulo Bornhausen (DEM-SC), representa as empresas de telefonia; o PL 70/2007, do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), representa os radiodifusores; e o PL 323/2007, dos deputados Walter Pinheiro (PT-BA) e Paulo Teixeira (PT-SP), que se situa em posição intermediária entre os interesses dos dois setores.


Aprovado em junho de 2010 na Câmara dos Deputados, a posição de diferentes atores em relação ao projeto tem oscilado na medida mesma em que o próprio projeto sofre alterações. A operadora Sky (associação dos grupos News Corporation e Globo) e a Associação Brasileira de Programadores de TV por Assinatura (ABPTA) patrocinam uma campanha publicitária denominada "Liberdade na TV", contrária ao projeto com o mote "querem intervir na sua TV por assinatura".


1.2
Níveis de concentração da propriedade

** Propriedade cruzada – A legislação brasileira nunca se preocupou de forma efetiva com a propriedade cruzada dos meios de comunicação. O mais próximo que se chegou dessa preocupação foi na década de 1960, durante o regime militar, quando houve uma tentativa, através do Decreto-Lei 236/1967, de se estabelecer limites para o número de concessões de radiodifusão que um mesmo grupo privado poderia controlar. Esses limites, no entanto, não foram obedecidos. O Estado, que é o órgão fiscalizador, jamais interpretou a norma legal como forma de regular a concentração da propriedade.


Não há, portanto, na legislação brasileira, sobretudo na de radiodifusão, preocupação com o fato de que o mesmo grupo empresarial, no mesmo mercado, seja concessionário de emissora de rádio e/ou de televisão, e ainda proprietário de empresas de jornais e/ou de revistas.


Os principais grupos empresariais que existiram e ainda existem na mídia brasileira são multimídia, baseados na propriedade cruzada. Isso foi verdade para os Diários Associados – o primeiro grupo dominante no país – e é, evidentemente, verdade para as Organizações Globo – o maior grupo de mídia que existe no Brasil hoje.


A propriedade cruzada, para efeito de um diagnóstico da mídia brasileira na perspectiva da economia política do setor, torna irrelevante a diferença entre mídia impressa e mídia eletrônica. Nos casos mais importantes, os grupos controladores de uma e de outra são os mesmos.


Uma das conseqüências dessa omissão reguladora é que a mídia privada comercial foi sempre oligopolizada, exatamente porque se formou com base na ausência de restrições legais à propriedade cruzada dos diferentes meios.


** Oligarquias políticas e familiares – A mídia brasileira é controlada por uns poucos grupos familiares. Mas não só por grupos familiares. Eles são também os mesmos grupos oligárquicos da política regional e local. Aparece, então, uma questão extremamente importante: o coronelismo eletrônico, prática política através da qual forças no controle do aparelho de Estado se utilizam das outorgas de radiodifusão como moeda de barganha política. Dessa forma, o poder concedente desse serviço público, muitas vezes, se confunde com o próprio concessionário, atualizando e reproduzindo, com roupagem nova, o coronelismo político da República Velha para o tempo presente. [Para uma discussão conceitual sobre a prática política do "coronelismo" ver, neste Observatório, Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes, "Rádios Comunitárias: Coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)".]


** Igrejas – Tem havido um avanço importante do controle tanto da radiodifusão quanto da mídia impressa brasileiras por diferentes igrejas. O maior avanço é das igrejas evangélicas neopentecostais, embora, historicamente, a igreja católica seja a maior concessionária de emissoras de rádio no Brasil. Em alguns casos, a presença das igrejas como concessionárias é bastante evidente – como, por exemplo, na programação vespertina dos canais da TV aberta, tanto em VHF como em UHF.


** Hegemonia de um único grupo privado – As Organizações Globo concentram as verbas publicitárias, de maneira desproporcional à audiência relativa de seus veículos: em torno de 60% do "bolo publicitário". Para a Rede Globo de Televisão, que lidera a audiência deste segmento, o percentual chega a ser ainda maior, de tal forma que se somarmos todas as outras emissoras comerciais de televisão veremos que a elas são destinados apenas entre 35% e 40% do volume total de publicidade.


** Concentração da propriedade – Quando se trata da radiodifusão e da imprensa, o Brasil se antecipou à tendência de concentração da propriedade na mídia manifestada pelo processo de globalização. A propriedade sempre foi concentrada e, ademais, concentrada dentro de parâmetros inexistentes em outros países. A sinergia verticalizada em áreas da produção de entretenimento (telenovelas, por exemplo) é prática consagrada na TV comercial há muitos anos. Não há rigor no cumprimento dos poucos limites existentes em lei com relação ao número possível de concessões de rádio e TV para o mesmo grupo empresarial no mesmo mercado. A propriedade cruzada na radiodifusão e entre a radiodifusão e a imprensa é permitida sem restrições. Não há limites para o tamanho das audiências das redes de televisão. Esse quadro regulatório gerou um fenômeno de concentração horizontal, vertical, cruzado e "em cruz", sem paralelo. O Brasil é o paraíso da radiodifusão privada comercial oligopolizada.


Balanço do governo Lula


Não houve qualquer alteração fundamental no quadro de concentração da propriedade da mídia no Brasil entre 2003 e 2010.


1.3 Financiamento dos meios de comunicação

Na tradição brasileira, o Estado tem sido – direta ou indiretamente – uma das principais e, em muitos casos, a principal fonte de financiamento da mídia privada comercial, seja ela impressa ou eletrônica. Basta verificar quais são os maiores (em termos de recursos publicitários) anunciantes dos jornais, das revistas semanais e dos telejornais das principais redes de televisão privada do país.

Balanço do governo Lula


** Reorientação na publicidade oficial – Uma importante descentralização na alocação dos recursos publicitários oficiais teve início em 2003. Apesar dos grupos dominantes da grande mídia continuarem a ser os destinatários prioritários das verbas, o número de municípios cobertos pulou de 182, em 2003, para 2.184, em 2009, e o número de meios de comunicação programados subiu de 499 para 7.047, no mesmo período (ver quadros abaixo).


REGIONALIZAÇÃO DE VERBAS PUBLICITÁRIAS
OFICIAIS POR MUNICÍPIOS E POR TOTAL DE VEÍCULOS (2003-2009)





Fonte: SECOM-PR


REGIONALIZAÇÃO DE VERBAS PUBLICITÁRIAS
OFICIAIS POR DIFERENTES VEÍCULOS (2003-2009)


Fonte: SECOM-PR


2. Principais avanços, recuos e derrotas

2.1. Avanços


Além do início do mencionado processo de regionalização da alocação dos recursos de publicidade oficial, registrem-se os outros seguintes avanços:


** Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – O ano de 2007 ficará marcado pelo nascimento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC-TV Brasil), resultado da fusão da Radiobrás com a ACERP/TVE, a TVE do Maranhão e o canal digital de São Paulo. Sua conformação final surgiu das dezenas de emendas que a Medida Provisória 398/07 recebeu no Congresso Nacional.


Apesar das críticas que podem ser feitas ao processo de sua implantação – e são muitas –, a EBC, finalmente criada pela Lei 11.652, de 7 de abril de 2008, representa um importante avanço: está "no ar" uma TV que institucionalmente se define como pública e a disputa para definir o que é uma televisão pública se desloca agora para a sua prática.


** 1ª. Conferência Nacional de Comunicação (CONFECOM) – A realização da CONFECOM – a última conferencia nacional a ser convocada de todos os setores contemplados pelo "Título VIII - Da Ordem Social" na Constituição de 1988 – sempre encontrou enormes resistências dos grandes grupos de mídia. Seis entidades empresariais se retiraram da Comissão Organizadora: Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão (ABERT); Associação Brasileira de Internet (ABRANET); Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA); Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil (ADJORI Brasil); Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER) e Associação Nacional de Jornais (ANJ). Permaneceram a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA), uma dissidência da ABERT fundada pelas redes Bandeirantes e Rede TV!, em maio de 2005; e a Associação Brasileira de Telecomunicações (TELEBRASIL), criada em 1974, com a missão de "congregar os setores oficial e privado das telecomunicações brasileiras visando à defesa de seus interesses e o seu desenvolvimento".


Afinal realizada em Brasília, de 14 a 17 de dezembro de 2009, a 1ª CONFECOM teve a participação de mais de 1.600 delegados, democraticamente escolhidos em conferências estaduais nas 27 unidades da Federação, representando movimentos sociais, parte dos empresários de comunicação e telecomunicações e o governo. Dela saíram mais de 600 propostas que deverão servir de referência para apoio e/ou apresentação de projetos de regulação do setor de comunicações no Congresso Nacional. Acima de tudo, e independente do boicote e da satanização quase unânime por parte da grande mídia, a 1ª CONFECOM ampliou de forma inédita a mobilização da sociedade civil e o espaço público de debate sobre as comunicações no país.


** Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) – Em maio de 2010 foi instituído o Programa Nacional de Banda Larga pelo decreto n. 7.175/2010 com o objetivo de "fomentar e difundir o uso e o fornecimento de bens e serviços de tecnologias de informação e comunicação, de modo a: massificar o acesso a serviços de conexão à Internet em banda larga; acelerar o desenvolvimento econômico e social; promover a inclusão digital; reduzir as desigualdades social e regional; promover a geração de emprego e renda; ampliar os serviços de Governo Eletrônico e facilitar aos cidadãos o uso dos serviços do Estado; promover a capacitação da população para o uso das tecnologias de informação; e aumentar a autonomia tecnológica e a competitividade brasileiras." A Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebrás) foi reativada e será a gestora do plano, estando prevista a atuação de empresas privadas de forma complementar para fazer os serviços chegarem ao usuário final.


O PNBL ainda é uma promessa e o presidente da Telebrás tem acusado as empresas privadas de telefonia de o boicotarem. Na verdade, cinco grupos são responsáveis por 95% da oferta atual de banda larga no Brasil – Oi, Telefônica, Embratel/Net, GVT e CTBC – enquanto 2.125 pequenos provedores respondem pelos restantes 5% do mercado. Há pouca ou nenhuma competição e os grupos dominantes são contra a inclusão de metas de expansão da infraestrutura de banda larga nos contratos de concessão das empresas de telefonia que estão em fase de revisão na ANATEL, a agência reguladora do setor.


2.2 Recuos e derrotas

Além dos registros já feitos em relação à não elaboração até mesmo de um projeto de Lei Geral para regulação da comunicação eletrônica; do recuo em relação à transformação da ANCINE em ANCINAV; da inoperância em relação à legislação das rádios comunitárias; do recuo em relação ao decreto das RTVIs e à escolha do modelo tecnológico para implantação da TV digital, também merecem menção:

** Cadastro geral dos concessionários de radiodifusão – O primeiro ministro das Comunicações do governo Lula, deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), ao assumir a pasta, em janeiro de 2003, prometeu que tornaria público o cadastro com os nomes de todos os concessionários das emissoras de rádio e de televisão no país. De fato, cumpriu a promessa em novembro de 2003: o cadastro, embora incompleto e falho, passou a estar disponível no site do MiniCom.


Foi a primeira vez que o público tomou conhecimento dessa informação básica. Os Decretos Legislativos confirmando as outorgas são publicados no Diário Oficial da União (DOU), mas trazem apenas os nomes das empresas. Não especificam os nomes de seus sócios.


No início de 2007, o cadastro "desapareceu" do site do MiniCom. Desde então, o interessado em informações oficiais só pode recorrer àquelas disponíveis no site da ANATEL. Lá não existe um cadastro geral com a relação de concessionários, mas sim dois bancos de dados: o Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (SIACCO) e o Sistema de Informação dos Serviços de Comunicação de Massa (SISCOM).


No SIACCO pode-se pesquisar o "perfil das empresas" por razão social ou CNPJ e, a partir daí, chega-se ao quadro societário e/ou à diretoria das entidades – em geral, incompletos. Já no SISCOM a busca pode ser feita por localidade e por serviço. Vale dizer: aquele que quiser compor um cadastro completo deverá pesquisar município por município.


Do cadastro geral disponibilizado ao público em novembro de 2003 regredimos para uma informação fragmentada que, na prática, impede a construção de um quadro geral das concessões e de seus concessionários.


** Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) – O governo encaminhou projeto de criação do CFJ ao Congresso Nacional em 4 de agosto de 2004. Segundo a FENAJ (Federação Nacional de Jornalistas), o principal objetivo era "promover uma cultura de respeito ao Código de Ética dos Jornalistas". Diante da intensa e violenta oposição da grande mídia, no entanto, a própria FENAJ, preparou e distribuiu, em Brasília, um substitutivo ao projeto original, no dia 13 de novembro, agora de criação de um Conselho Federal de Jornalistas como "órgão de habilitação, representação e defesa do jornalista e de normatização ética e disciplina do exercício profissional de jornalista". Apesar disso, através de votação simbólica, por acordo de lideranças, a Câmara dos Deputados decidiu desconsiderar o substitutivo e rejeitar o primeiro projeto, em 15 de dezembro de 2004.


** III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) – Houve importante recuo do governo Lula em relação às diretrizes originais para a comunicação constantes do PNDH3 (Decreto nº 7.037, de 21 de Dezembro de 2009). Menos de cinco meses depois, novo decreto (Decreto nº. 7.177 de 12 de maio de 2010) alterou o anterior e, no que se refere especificamente ao direito à comunicação: (a) manteve a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe "a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados"; (b) exclui as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas; e (c) exclui também a letra d, que propunha a elaboração de "critérios de acompanhamento editorial" para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.


** Conselho de Comunicação Social – Na Constituinte de 1987-88, a proposta original de criação de um "órgão regulador independente e autônomo" foi transformada em "órgão auxiliar" que deveria apenas ser ouvido quando o Congresso Nacional julgasse necessário (Artigo 224). Essa alteração deu origem ao Conselho de Comunicação Social (CCS). Apesar de criado, todavia, o CCS sempre enfrentou forte resistência de boa parte dos parlamentares.


A lei que regulamentou a criação do CCS (Lei 8339/1991) foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1991, mas ele só logrou ser instalado em 2002, como parte de um polêmico acordo para aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que, naquele momento, constituía interesse prioritário para os empresários da grande mídia. A Emenda Constitucional nº 36 (Artigo 222), aprovada em maio de 2002, permitiu a propriedade de empresas jornalísticas e de radiodifusão por pessoas jurídicas e a participação de capital estrangeiro em até 30% do seu capital total.


Mesmo sendo apenas um órgão auxiliar, o CCS, quando instalado, demonstrou ser um espaço relativamente plural de debate de questões importantes do setor – concentração da propriedade, outorga e renovação de concessões, regionalização da programação, TV digital, radiodifusão comunitária etc. Vencidos os mandatos de seus primeiros membros, houve um atraso na confirmação dos membros para o novo período de dois anos, o que ocorreu apenas em fevereiro de 2005. Ao final de 2006, no entanto, totalmente esvaziado, o CCS fez sua última reunião. Os membros para um terceiro mandato não foram indicados e o CCS não mais se reuniu.


3. Contexto e estratégias

A maioria das propostas de políticas públicas que a sociedade civil organizada considera avanços no processo de democratização das comunicações não foi implementada no período 2003-2010. Ao contrário, muitas das iniciativas neste sentido, como vimos, foram sendo, uma a uma, abandonadas ou substituídas por outras que negavam as intenções originais. Existem, no entanto, exceções importantes.

Em diferentes ocasiões, ficaram também evidentes as contradições e conflitos de orientação política entre setores internos ao próprio governo, em especial o Ministério das Comunicações, o Ministério da Cultura e a SECOM-PR. Registre-se, por exemplo, a ausência, na prática, do Ministério das Comunicações tanto do esforço de elaboração de um projeto de LGCEM (liderado pela SECOM), quanto da instituição e implementação do PNBL (liderado pelo Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital, vinculado diretamente ao Gabinete Pessoal do Presidente da República).


Da mesma forma, ficou mais de uma vez evidente a impotência do Estado diante dos grandes grupos de mídia, assim como ficou claro o enorme poder histórico desses grupos, ainda capazes de interferência direta na própria governabilidade do país.


Considere-se ainda que algumas questões relevantes não puderam ser tratadas aqui. Dois exemplos: (1) houve ou não continuidade na prática do coronelismo eletrônico, isto é, no uso das autorizações, concessões e renovações de radiodifusão como moeda de barganha política? (2) de que forma decisões do Judiciário afetaram direta ou indiretamente a democratização das comunicações [não exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista; inconstitucionalidade total da Lei de Imprensa de 1967 e o direito de resposta]?


O período 2003-2010 foi também marcado (1) pelo formidável avanço da internet e (2) pelo recrudescimento da posição radical dos grupos privados de mídia em relação a qualquer proposta de regulação das comunicações, oriunda ou não do governo.


3.1 Avanço da internet

Dados do Ibope revelam que "das cerca de 60 milhões de pessoas que acessaram a internet em 2008, 67% fazem parte das classes C, D e E. Cerca de 80% dessas pessoas têm renda familiar mensal de até cinco salários mínimos". Dessa forma, "de ferramenta quase exclusiva da elite nos anos 1990, a internet encerra a primeira década do século 21 tendo como usuário um indivíduo cada vez mais parecido com o brasileiro médio".

Por outro lado, o PNBL – já mencionado – se devidamente implementado em articulação com políticas específicas de inclusão digital, renova esperanças de avanço ainda maior no processo de universalização da internet nos próximos anos.


3.2 Intolerância

Alguns exemplos da radicalização crescente por parte dos atores dominantes no campo das comunicações:

** Partidarização – A presidente da Associação Nacional de Jornais admitiu publicamente a partidarização da mídia ao afirmar, em março de 2010:


"A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação. E, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo, de fato, a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo." (Cf. "Ações contra tentativa de cercear a imprensa", O Globo, 19/3/2010, p. 10)


Essa partidarização tem sido evidenciada rotineiramente na cobertura política realizada pela grande mídia, em particular ao tempo das campanhas eleitorais [cf. Venício A. de Lima (org.); A Mídia nas Eleições de 2006. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007].


É oportuno registrar que a partidarização da mídia tem como corolário não só o enfraquecimento dos partidos, como sua própria despolitização, na medida em que são afastados da política cotidiana e confinados às formalidades e à burocracia de seu funcionamento legal e dos procedimentos eleitorais.


** "Democratização da comunicação" – A radicalização chegou a tal ponto que até a expressão "democratização da comunicação" passou a ser satanizada pela grande mídia. Propostas para a "democratização da comunicação", muitas vezes simples referências a normas e princípios consagrados na Constituição de 1988, passam a ser imediatamente rotuladas de autoritárias ou de ameaças à liberdade da imprensa. Praticamente não há diálogo ou negociação entre os atores dominantes e a sociedade civil. A retirada das associações que representam os principais grupos de mídia da Comissão Organizadora da 1ª CONFECOM talvez seja o caso mais emblemático desse tipo de intolerância.


Em 19 de outubro de 2010, a aprovação pela Assembléia Legislativa do Ceará do "Projeto de Indicação nº 72.10", que propõe a criação do Conselho Estadual de Comunicação Social (CECS), detonou um novo ciclo de generalizada reação da grande mídia e da própria OAB nacional. Na ocasião, o advogado e editor do suplemento "Direito & Justiça" do Correio Braziliense, referindo-se às propostas aprovadas pela 1ª. CONFECOM, chegou a afirmar que "Goebbels, encarregado por Hitler da difusão da propaganda nazista e de eliminar adversários do regime, não teria feito melhor" (cf. Josemar Dantas, "Democracia em Risco", suplemento "Direito&Justiça", Correio Braziliense, 8/11/2010, p. 2).


Considerando a radicalização e a intolerância que têm marcado a relação entre os principais atores do campo nos últimos anos, o futuro próximo certamente reserva imensos desafios para a democratização das comunicações no Brasil.


Texto comissionado pela Fundação Friedrich Ebert (FES) e apresentado no seminário "Partidos Políticos Progresistas y Medios de Comunicación en el Cone Sur", realizado em Santiago (Chile), de 6 a 7 de dezembro de 2010; título original "Política de comunicações no governo Lula (2003-2010)"

Venício A. Lima é Professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Editora Publisher, 2010

Fonte: Observatório da Imprensa