Imagine os Estados Unidos tomados por uma epidemia de
dengue ou malária, a parte mediterrânea da Europa com surtos de leishmaniose, a
América Central e o Sudeste Asiático infestados pelo cólera e o Brasil com mais
casos de dengue. O cenário catastrófico, bem pouco provável hoje, pode se
tornar real em cerca de cem anos, ou até menos, se a temperatura do planeta
continuar subindo no ritmo atual e os países não caminharem com a mesma
velocidade para prevenir a proliferação de epidemias — e, claro, não tentarem
reverter o processo de aquecimento global. O problema tem motivado estudos em
todo o mundo, a maioria com modelos matemáticos, que mostram como as alterações
climáticas podem aumentar a distribuição de doenças transmitidas por vetores.
Uma das projeções mais recentes, publicada em agosto na revista médica
inglesa 'The Lancet', prevê que até 2085, cerca de 50% a 60% da população
mundial — algo em torno de 6 bilhões de pessoas — viverá em áreas de alto risco
de transmissão de dengue. Em 1990 essa taxa era de 30% (cerca de 1,5 bilhão).
Dois novos estudos sobre cólera também ajudaram a reforçar essa relação entre
altas temperaturas e doenças. Os trabalhos, publicados na revista científica
americana 'Procee-dings of the National Academy of Science' (PNAS) — baseados
em dados de Bangladesh, na Ásia, onde o problema é endêmico —, demonstraram que
o aumento da temperatura no Pacífico provocado pelo El Niño tem relação direta
com a incidência de epidemias de cólera na região, e que essa influência tem se
tornado ainda mais intensa nas últimas décadas.
Desde os anos 50, a Terra sofreu um aquecimento de 0,6 ºC. A previsão do
último Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, promovido pela ONU em
2001, é de que a temperatura possa aumentar até 5,8 ºC em 2100 (em relação a
1990). Uma variação de 5 ºC a 8 ºC só seria considerada normal em um período de
mil anos, explica o climatologista Carlos Nobre, coordenador-geral do Centro de
Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, órgão do Instituto de Pesquisas
Espaciais (Inpe). O principal responsável por esse verdadeiro inferno na Terra
é o agravamento do efeito estufa — aprisionamento natural de calor na atmosfera
pela concentração de gases, como o CO. 'Estamos vivendo em uma época em que a
concentração de gases estufa atingiu um nível nunca experimentado pelo planeta
nos últimos 5 milhões de anos. E o homem é o principal responsável.' E, ao que
tudo indica, uma das principais vítimas também. Os possíveis efeitos da mudança
climática — definida como as alterações nas taxas médias de temperatura de uma
determinada região em um longo período — na saúde humana motivaram a
Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho Americano de Ciência e Saúde a
elaborarem relatórios para investigar as consequências dessa relação.
Mais
Áreas de risco
Entre os problemas listados estão a diminuição na disponibilidade de
água potável, desastres naturais e aumento de problemas cardiovasculares e respiratórios
decorrentes da maior intensidade e duração das ondas de calor. Mas a maior
preocupação dos especialistas é a alteração na distribuição e frequência de
doenças tropicais transmitidas por insetos, especialmente a dengue e a malária.
Áreas mais úmidas e quentes são ideais para a procriação do Aedes
aegypti, mosquito que transmite o vírus da dengue. Os pesquisadores
neozelandeses e australianos que fizeram a projeção sobre a distribuição da
doença em 2085 levaram em conta o aumento da temperatura do planeta e a
ocorrência de pancadas de chuvas (veja mapa ao lado). O microbiologista
Alexandre Adler, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, explica que, com o
calor, os ovos se transformam em mosquito mais rapidamente. O metabolismo do
inseto também fica mais veloz e por isso ele precisa de mais alimento. 'A fêmea
que picava alguém de 15 em 15 dias, passa a picar de 4 em 4. Isso aumenta a
transmissão de doenças.'
Em relação à malária, considerada pela OMS a moléstia mais suscetível às
variações climáticas, os pesquisadores ainda não chegaram a um consenso. Um
estudo feito pela Escola Médica de Harvard, dos EUA, prevê que até a metade
deste século, o aquecimento global colocará 60% dos seres humanos em áreas de
risco. Hoje são 45%, e aproximadamente 300 milhões de novas infecções ocorrem
por ano. Por esse modelo haveria um adicional de 80 milhões de casos anuais. A
doença duplicaria na Amazônia e na África tropical, espalhando-se pelo sul dos
Estados Unidos e até pelo gelado norte da Rússia. Uma outra pesquisa, feita na
Universidade de Oxford, na Inglaterra, com modelos matemáticos diferentes,
afirma que o aumento será bem menor, de cerca de 30 milhões de casos a mais ao
ano.
Independentemente das previsões futuras, casos de malária têm aparecido
com mais frequência em regiões onde praticamente não existia a doença. Nos
Estados Unidos, por exemplo, existem algumas espécies do Anopheles, mosquito
que transmite a doença, em regiões mais quentes, mas ultimamente eles têm se
espalhado para outras áreas do país.
Em 2002, o país registrou o verão mais quente dos últimos 70 anos. 'Em
países onde existe uma densidade alta de insetos nas terras baixas, se o
continente é aquecido, esses mosquitos vão subir e se distribuir por áreas mais
altas. Vão crescer onde antes eles não conseguiam porque fazia frio', afirma o
professor Heitor Franco de Andrade Junior, do Instituto de Medicina Tropical da
Universidade de São Paulo. Epidemias de malária também têm sido apontadas como
uma das consequências após desastres naturais provocados pelo El Niño, como
fortes chuvas, furacões e tufões. Nos climas secos, a precipitação forte pode
criar poças, oferecendo condições favoráveis para a reprodução de mosquitos.
Países como Equador, Peru e Bolívia sofreram sérias epidemias da doença após
fortes chuvas em 1983.
Fonte: Fernanda
Colavitti e Giovana Girardi
http://revistagalileu.globo.com/Galileu/0,6993,ECT399483-1718,00.html
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