domingo, 23 de agosto de 2009

Tamiflu: uso indiscriminado é absurdo total

Por Conceição Lemes
Imagine um “coquetel” com estes “ingredientes”:
* O hábito do brasileiro de se automedicar.
* A gripe suína ser fatal para 0,20% da população.
* A “grande” imprensa disseminando terrorismo com objetivos político-eleitorais.
* Especialistas e outros desinformados e/ou mal-intencionados exigindo que o Ministério da Saúde forneça Tamiflu a todas as pessoas com sintomas gripais.
Pois essa mistura é "explosiva" e a vítima, a população brasileira, que tem sido levada a "engolir" que o antiviral oseltamivir (nome da droga) resolve tudo – o “tomou, passou”.
“Quem advoga a distribuição indiscriminada do oseltamivir não está bem informado” reprova o infectologista Caio Rosenthal, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. “Esqueceu-se da facilidade com que o vírus se torna resistente à droga.”
“É um absurdo total”, condena o infectologista Artur Timerman, do Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo. “Há muitos pacientes tomando sem necessidade.”
Apesar de a ciência ainda não ter todas as respostas para a nova gripe e o seu causador, o vírus H1N1, é com base nos efeitos do oseltamivir na gripe sazonal que esse antiviral está sendo usado para a influenza A (H1N1), ou gripe A, mais conhecida como gripe suína. Os dois médicos tratam de doenças infecciosas há cerca de 30 anos. “Não tem sentido prescrever o oseltamivir para todas as pessoas com sintomas gripais”, reforça Rosenthal. “Estudos de meta-análise [revisão da literatura científica sobre o assunto] demonstram que, na gripe comum, o oseltamivir diminui em cerca de um dia os sintomas gripais. O resto é balela.”
“Na gripe comum, ainda não há dados que demonstrem cientificamente que o oseltamivir reduza a evolução para as formas graves”, acrescenta Timerman.
“A suposição teórica é de que isso possa ocorrer. Daí, mesmo sem provas definitivas, ser indicado às pessoas com formas graves ou com maior risco de apresentá-las.”
“De fato, o oseltamivir não é nenhuma panacéia”, alerta o epidemiologista Eduardo Hage, diretor da Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde. “Esse medicamento tem indicações e limites precisos, efeitos colaterais e precisa ser usado com muita cautela.”
Eduardo Hage é o coordenador-geral do protocolo brasileiro de prevenção, diagnóstico e tratamento da gripe suína. Por isso, resolvemos pôr em pratos limpos com ele a questão que mais suscita dúvidas e angústias na população: o uso de antivirais, especialmente do oseltamivir, na doença.
Viomundo – Há duas semanas o Instituto Nacional para Saúde e Excelência Clínica do Reino Unido [National Institute for Health and Clinical Excellence – NICE] divulgou uma revisão dos trabalhos científicos sobre o uso de antivirais na gripe comum encomendada a um grupo de especialistas. O estudo revelou algum achado importante?
Eduardo Hage – O NICE [como é conhecido o estudo] fez uma revisão dos trabalhos científicos feitos no Reino Unido sobre o uso dos antivirais oseltamivir e zanamivir na gripe comum. Considerando as vantagens e desvantagens de diferentes estratégias, concluiu que o que funciona é o uso de antivirais em pessoas com sintomas gripais + presença de fator de risco para doença.
Viomundo – E o tratamento de todas as pessoas com sintomas gripais sem fator de risco?
Eduardo Hage – Não é eficaz.
Viomundo – Baseado nessa avaliação, o NICE fez alguma recomendação?
Eduardo Hage – Recomenda o uso de antiviral apenas para a influenza em indivíduos com fatores de risco: pessoas com 65 anos de idade ou mais; pessoas com seis meses de idade ou mais com co-morbidades que os coloca em risco de complicações relacionadas à influenza, entre as quais se incluem doenças crônicas, respiratórias, cardíacas, doenças do fígado, renais, diabetes e imunossupressores. Embora as conclusões se refiram ao Reino Unido, são relevantes para um contexto mais amplo.
Viomundo – Mas para a pandemia gripe suína o Reino Unido indica o uso generalizado de antivirais a todas as pessoas com os sintomas gripais. E agora?
Eduardo Hage – O NICE mandou o recado para autoridades de lá: eles têm repensar o uso de antivirais na nova gripe.
Viomundo – Alguns especialistas brasileiros e parte da “grande” imprensa querem que o Ministério da Saúde siga Reino Unido. Eles já se manifestaram sobre o estudo?
Eduardo Hage – Silêncio absoluto. O mais curioso é que os “especialistas” que defendem o oseltamivir para todas as pessoas com sintomas gripais só citam os países que adotam essa recomendação, como Reino Unido, Chile e Argentina. De repente, esses mesmos “especialistas”, que sempre apontaram o Centro de Prevenção e Controle de Doenças, dos Estados Unidos, como a REFERÊNCIA para todos os males orgânicos, inorgânicos e afins, se “esquecem” de mencionar o que diz o protocolo do CDC, que contém as mesmas recomendações do brasileiro. É “amnésia temporária”.
Viomundo – Quer dizer que o Brasil adota os mesmos critérios dos Estados Unidos?
Eduardo Hage – Sim. Uma revista semanal chegou ao cúmulo de destacar supostas divergências entre os protocolos de tratamento do Brasil, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e dos Estados Unidos. Se a reportagem tivesse tido o cuidado de checar nas páginas do CDC ou da OMS, descobriria que as diferenças apontadas simplesmente não existem. Foi a “amnésia temporária” atacando de novo.
Viomundo – No You Tube, há um vídeo dizendo que o uso do oseltamivir teria causado anteriormente vários óbitos. É verdade?
Eduardo Hage – O NICE, por exemplo, não relatou nenhum óbito. Na atual pandemia, também não temos informação válida sobre óbitos pelo uso do oseltamivir, seja por meio de comunicado da Organização Mundial de Saúde (OMS), seja em publicação científica.
Viomundo – No mundo quantos têm eficácia comprovada contra o vírus H1N1?
Eduardo Hage – Dois: oseltamivir e zanamivir [Relenza, nome comercial].
Viomundo – Qual a diferença entre eles?
Eduardo Hage – Forma de administração: oseltamivir é de uso oral; zanamivir, por inalação. Além disso, é contra-indicado a crianças com menos de 5 anos de idade.
Viomundo – Oseltamivir e zanamivir estão registrados na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância em Saúde]. Só que o zanamivir não é vendido no Brasil. Por quê?
Eduardo Hage – A empresa não teve interesse em comercializá-lo antes desta pandemia.
Viomundo – Há uns 20 dias foi levantada a suspeita de que o Ministério da Saúde teria optado pelo oseltamivir em detrimento do zanamivir por motivos escusos. O que o senhor tem a dizer sobre isso?
Eduardo Hage – É mentira. E os fatos falam por si só. O Ministério comprou oseltamivir pela primeira vez em 2006. Foi uma das estratégias adotadas na preparação de uma eventual pandemia de gripe aviária (pelo vírus H5N1), que acabou não ocorrendo. A OMS recomendou a todos os países a aquisição de estoques de antivirais para enfrentá-la. Na época, só existia no Brasil o oseltamivir; o zanamivir ainda não havia sido registrado aqui [isso aconteceu em 22/10/2007]. Esse é o primeiro fato.
Viomundo – E o segundo?
Eduardo Hage – Quando que se confirmou a pandemia da gripe A, em 11 de junho deste ano, o Ministério, via Farmanguinhos-Fiocruz, começou o processo para encapsular o oseltamivir comprado em 2006 na forma de pó [tem maior tempo de validade]. Só que precisávamos imediatamente de remédios prontos para adultos e crianças. Como já tínhamos em estoque o oseltamivir, compramos o mesmo remédio. Afinal, a utilização de dois diferentes em uma situação de pandemia tornaria toda a logística – protocolos, avaliação de eficácia e segurança – muito mais complicada. Terceiro, o zanamivir é por inalação, o que torna o seu uso mais difícil pela população quando indicado para um grande número de casos. Quarto, o Brasil não foi o único a escolher o oseltamivir. Estados Unidos e demais países da América do Sul, por exemplo, também o adotam assim como a OMS.
Viomundo – Tem também a relação custo-benefício: o tratamento do zanamivir para dez dias custa cerca de 500 reais em importadoras; o do oseltamivir, em farmácias, 166 reais. E no Brasil, diferentemente de muitos países, o tratamento é bancado pelo SUS.
Eduardo Hage – Inquestionavelmente, esse é outro fato. Mesmo assim, o Ministério planeja comprar zanamivir para os casos em que o vírus H1N1 for resistente ao oseltamivir. É uma decisão técnica.
Viomundo – Agora, vamos esmiuçar o oseltamivir. O senhor disse bem no começo da nossa entrevista que ele tem limites. Quais são?
Eduardo Hage – São os seguintes: 1) para ter eficácia tem que ser administrado em até 48 horas após o início dos sintomas. E como a nova gripe se assemelha à gripe comum, dificilmente as pessoas procuram o médico nos primeiros sintomas, que pode não ser a febre; 2) mesmo que se tome dentro das 48 horas, a eficácia é limitada – reduz em cerca de um dia a duração da gripe. Depois das 48 horas, a eficácia se reduz substancialmente; é quase nada; 3) do ponto de vista coletivo, a redução do tempo da doença pode ser importante quando há poucos casos na comunidade, pois o tratamento dos detectados às vezes bloqueia a transmissão numa determinada localidade. Porém, quando a pandemia se instala e a transmissão já existe, é impossível a detecção de todos e o benefício do tratamento deixa de existir; 4) a indicação é restrita às pessoas com maior risco de desenvolver as formas graves da gripe A e às com os sinais e/ou sintomas de agravamento da gripe. Importante: a eficácia e a segurança do tratamento do novo vírus (H1N1) baseiam-se nos estudos de gripe comum.
Viomundo – Até recentemente diziam que havia esta contradição no protocolo: o Ministério da Saúde recomenda tratar as pessoas com sinais e/sintomas de agravamento da gripe, só que isso às vezes ocorre após as 48 horas de instalação da infecção, quando o oseltamivir não tem eficácia. O senhor concorda?
Eduardo Hage – Quem disse isso não conhece o protocolo disponível na página do ministério ou queria que o antiviral fosse fornecido a todas as pessoas. O protocolo recomenda iniciar o tratamento aos primeiros sinais ou sintomas de agravamento ¬– a dificuldade respiratória, por exemplo. O medicamento também está indicado às pessoas mais suscetíveis de desenvolver complicações tão logo iniciem os sintomas e sinais de gripe, mesmo que não tenham sinais e sintomas de agravamento. Essa é a recomendação para qualquer influenza. Alguns colegas se esquecem de que a decisão do médico é soberana. Ele é quem está com o paciente à sua frente e a ele.
A indicação fica a critério do médico. Só que ele tem que saber diagnosticar sinais e sintomas que podem indicar possível agravamento. Se ele não sabe...
Viomundo – Que fatores aumentam o risco de a pessoa ter a forma grave da gripe suína?
Eduardo Hage – Estão todos no protocolo: gestação; idade menor ou igual que 2 anos ou maior ou igual que 60 anos; presença de doenças crônicas pré-existentes, como diabetes, doença cardiovascular, respiratória, renal ou obesidade mórbida; imunidade baixa por outras doenças, como câncer ou infecção pelo HIV, ou por uso prolongado de alguns medicamentos, como corticosteróides. Essas são as mesmas condições reconhecidas pela OMS como de maior risco para a pessoa desenvolver a forma de influenza, independentemente do vírus causador, o novo H1N1 ou os vírus das gripes anuais. Importante: esses critérios não são apenas do Ministério da Saúde; são adotados internacionalmente e recomendados pela OMS e pela OPAS [Organização Pan-Americana de Saúde].
Viomundo – Os países são obrigados a adotá-los?
Eduardo Hage – Não. Cada país tem autonomia para optar pelo caminho que achar melhor. Tanto que o Reino Unido, por exemplo, recomenda os antivirais a todas as pessoas com sintomas gripais e a OMS contra-indica.
Viomundo – A propósito, a recomendação do estudo de NICE de não indicar o uso de antivirais a todas as pessoas com sintomas gripais baseia-se em que parâmetros?
Eduardo Hage – Na combinação de dois: efetividade e maior risco de desenvolvimento de resistência ao tratamento com o seu uso generalizado. A utilização excessiva do antiviral pode induzir o desenvolvimento da resistência pelo vírus, tornando-o ineficaz. Se considerarmos que mais adiante a pandemia de gripe A pode ser mais grave, o antiviral deixaria de ser o tratamento caso haja resistência do vírus ao medicamento.
Viomundo – Qual a probabilidade de o novo vírus ficar resistente ao oseltamivir?
Eduardo Hage – Qualquer vírus tem capacidade de desenvolver resistência aos agentes antimicrobianos. A resistência do vírus da gripe comum ao oseltamivir, por exemplo, cresceu bastante nas amostras testadas no mundo. O índice de resistência varia de 14% (China) a 100% (Canadá, Marrocos, França, Itália, Japão e Coréia do Sul). No Reino Unido é de 98%. Nos Estados Unidos, 98,5%. Já a resistência do novo vírus ao remédio foi detectada no Canadá, no Japão, em Hong Kong e na Dinamarca. Por isso, devemos usar com precaução e não de forma generalizada.
Viomundo – O que causa a resistência?
Eduardo Hage – Principalmente o uso incorreto. A pessoa deixa de tomar todas as doses, porque melhorou. Ou utiliza a medicação dia sim, dia não. Isso permite o desenvolvimento de um vírus resistente. Por isso qualquer estratégia que aumente a disponibilidade da droga ao público em geral aumenta os índices de uso inapropriado. Consequentemente pode aumentar a probabilidade de o vírus desenvolver resistência ao medicamento.
Viomundo – Quais os efeitos adversos do oseltamivir?
Eduardo Hage – Sintomas gastrintestinais (como vômitos e náuseas), neurológicos (como cefaléia, insônia e vertigem), bronquites, tosse e fadiga. Têm sido relatados alguns casos de transtornos psíquicos.
Viomundo – E as contra-indicações?
Eduardo Hage – A principal é a pessoa ter transtornos psiquiátricos, pois esse efeito adverso tem sido observado em alguns casos.
Viomundo – Na gravidez, evita-se ao máximo o uso de medicamentos para não causar malformações ou toxicidade fetal. Oseltamivir tem algum risco?
Eduardo Hage – Esses efeitos adversos ainda não foram detectados. Não significa, porém, que não possam vir a ocorrer. Os dados disponíveis sobre o uso na gravidez do oseltamivir na gravidez são pobres. Por isso, a bula diz que o risco/benefício deve ser pesado. A gestação constitui fator de risco importante para desenvolvimento de forma grave. As gestantes são mais vulneráveis a ter complicações de qualquer influenza, inclusive da nova gripe. Daí o uso ser recomendado pela OMS, pelo CDC e pelo protocolo brasileiro, caso a gestante tenha sintomas gripais. Ela, porém, tem que ser acompanhada. Viomundo – Na semana passada, uma leitora do Viomundo disse que o ponto fraco da imensa cadeia seriam os médicos. Deu como exemplo uma amiga médica que não tinha havia lido o protocolo do Ministério da Saúde. Os médicos estão devidamente informados?
Eduardo Hage – Aproximadamente 95% das pessoas apresentam gripe, como as que ocorrem todos os anos. Os sinais e sintomas são leves e elas se recuperam sem necessidade de antivirais. Os médicos, desde os da atenção básica, estão preparados para essas situações os médicos. O que é preciso é que todos saibam identificar os fatores de risco e os sinais de agravamento para encaminhar esses casos para os serviços que tenham condições de atender e tratar essas pessoas. A disseminação dessas informações vem sendo feita pelo Ministério da Saúde com o apoio da Associação Médica Brasileira, Conselho Federal de Medicina e outras entidades importantes.
Viomundo – Que alerta ou alertas o senhor faria aos médicos?
Eduardo Hage – O primeiro atendimento dos pacientes com sintomas leves de gripe – seja a nova ou sazonal – deve ser dado na unidade básica de saúde, posto, médico do convênio. E, aí, vai o primeiro alerta aos colegas: ao identificar algum fator de risco ou sinal de agravamento da doença, iniciar imediatamente o tratamento com antiviral. Cuidados especiais devem ser dispensados às gestantes, pois elas têm apresentado maior risco para desenvolver forma grave da doença. Segundo alerta: começar o tratamento sem esperar a confirmação por exames laboratoriais; independentemente do vírus causador da gripe, o tratamento não muda. Terceiro: usar racionalmente os antivirais. Outras medidas de suporte são tão ou mais importantes que o antiviral e podem salvar vidas. Viomundo – Algum recado para a população em geral?
Eduardo Hage – Desde o começo da pandemia, temos buscado divulgar de forma bastante transparente e oportuna todas as informações. São medidas simples de higiene – como lavar freqüentemente as mãos com água e sabonete e cobrir com lenço de papel o nariz e a boca quando tosse – que ajudam a evitar a transmissão do vírus H1N1. A incorporação definitiva desses hábitos no dia-a-dia será importante para enfrentarmos não só o fim dessa primeira onda da pandemia, mas também uma eventual segunda onda, assim como as epidemias de gripe que ocorrem todos os anos.

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