quinta-feira, 28 de junho de 2018

Por que 2000?

Jesus nasceu antes da data oficial. Ou seja, o ano 2000 já passou. E, mesmo aceitando o nosso calendário gregoriano, o novo século só começa em 2001. Saiba por que as medidas de tempo são sempre arbitrárias.

Denis Russo Burgierman

O mundo celebra os 2 000 anos do nascimento de Cristo, no final do mês, apenas porque um abade de Roma, no século VI, fixou a suposta data em que Jesus teria vindo à Terra. Seu nome era Dionísio, o Exíguo (500-560), ou Pequeno Dionísio se você quiser ser informal. Acontece que os cálculos estavam errados. Os estudiosos do calendário que usamos, o calendário gregoriano, estabelecido pelo papa Gregório XIII, em 1582, não têm dúvida disso, como você vai descobrir nas páginas seguintes.
Apesar da falha, a cronologia do abade foi aceita pelos cristãos de todos os continentes, e por isso nós estamos entrando no ano 2000 agora. Esse fato mostra o quanto os calendários são arbitrários – não passam de convenções criadas para facilitar a contagem do tempo. Tanto que, para os judeus, estamos no ano 5760; para os muçulmanos, em 1420; e para os chineses, em 4635. Estaríamos em 5119 se usássemos o sistema dos maias da América Central, extintos há 1 000 anos. A questão não é que algum desses números seja melhor ou pior do que os outros.
A diferença se deve, simplesmente, ao fato de que cada um desses povos começou a computar os dias num momento diverso da História.
Aliás, mesmo que Dionísio tivesse feito as contas direito, a nossa festa continuaria sendo comemorada antes da hora. Na verdade, como estamos apenas terminando 1999, não se passaram ainda 2 000 anos do nascimento de Cristo. Ao final deste mês, portanto, faltarão doze meses para fechar o segundo milênio do nascimento de Cristo. Ou seja, o correto seria comemorar no final do ano que vem.
Mas, justamente porque a contagem do tempo é uma convenção, não custa decretar que o terceiro milênio começa em janeiro e pronto. É o que sugere o historiador da ciência americano Stephen Jay Gould, da Universidade Harvard, em seu livro O Milênio em Questão, lançado este ano no Brasil. “Por que não proclamar que o primeiro século teve 99 anos em vez de 100?”, propõe ele. Seria um modo descomplicado de sancionar o que já está decidido na prática – que agora é o momento de celebrar.
drusso@abril.com.br

Algo mais

Em 1650, o arcebispo irlandês James Usher fez as contas e concluiu que Deus criou o mundo às 15h30 do dia 23 de outubro de 4004 a.C. e que o apocalipse aconteceria no mesmo dia e horário em 1996. Bem, errou. Mas Usher inventou a expressão “antes de Cristo”, que usamos até hoje.

Contando anos e proibindo livros

O italiano Ugo Buoncompagni (1502-1585) entrou para a História com o nome de Gregório XIII (veja o desenho à direita) e a fama de ter sido o responsável pelo calendário que usamos. Chefiando uma comissão de matemáticos e astrônomos, ele ordenou pequenos ajustes no sistema de medida de tempo dos romanos e, em 1582, oficializou o costume de contar o tempo a partir do nascimento de Jesus Cristo. Mas nem tudo é positivo em seu currículo. Foi esse papa também que proibiu o De Revolutionibus, livro do astrônomo polonês Copérnico (1473-1543), que ousou decretar que a Terra girava em volta do Sol, e não o contrário.

O erro que mudou a idade de cristo

A história do nosso calendário começa no século VI, quando os anos ainda não eram numerados a partir do nascimento de Cristo, como hoje. O marco inicial do tempo, nessa época, era a data da posse do imperador romano Diocleciano, que se deu no ano 284, de acordo com a cronologia atual. Mas, como Diocleciano havia sido um feroz perseguidor de cristãos, que costumava jogar aos leões, o abade Dionísio decidiu que o sanguinário governante não merecia a honra de dar início ao calendário. Em 525, resolveu que em sua contagem o ano de número 1 seria o do nascimento de Jesus.
Para descobrir quando isso aconteceu, Dionísio partiu de um episódio marcante – a fundação de Roma –, cuja data estava registrada nos arquivos da cidade. Aí, ele também encontrou a duração de todos os reinados romanos desde essa época. Assim, o primeiro passo do abade foi adicionar todos esses períodos, verificando que tinham se passado 726 anos desde a fundação da cidade até a posse do imperador Augusto. Esse número era importante porque, segundo os dados levantados por Dionísio, Cristo havia nascido 27 anos depois dessa posse, durante o período em que Herodes governou a Palestina. Fazendo a soma, o abade concluiu que o nascimento ocorrera 753 anos após o surgimento de Roma.
Essa data foi a que ele adotou como marco inicial do seu calendário. Estaria tudo bem se Dionísio não tivesse cometido um deslize. “Ele provavelmente deixou de contar um período de quatro anos durante o qual o imperador Augusto governou com seu nome de batismo, Otávio, entre 27 e 31 a.C”, explica o astrônomo e matemático Othon Winter, da Universidade Estadual Paulista, autor do livro Fim de Milênio.
Equívoco chancelado
Os pesquisadores desconfiaram do engano porque, segundo a Bíblia, Herodes tentou matar Cristo quando esse era ainda bebê – embora muitos historiadores duvidem dessa narrativa evangélica, pela simples razão de que o assassinato de todos os bebês da Judéia de uma época seria um crime grande demais para não ser mencionado por nenhuma outra fonte além da Bíblia. Ao mesmo tempo, o historiador judeu Flavius Josephus (37-100) diz que o famigerado Herodes morreu no mesmo mês de um eclipse lunar que, para os astrônomos, ocorreu com toda a certeza em 4 a.C. Então, é claro que Cristo tem que ter nascido antes do ano 4 a.C.
De uma maneira ou de outra, aos poucos o calendário de Dionísio ganhou aceitação popular e por volta do ano 1000 já tinha se espalhado por toda a Europa. Em 1582, quando foi sancionado pelo papa Gregório XIII, no calendário gregoriano, que usamos até hoje, o seu erro se tornou oficial.

O mês dele é maior que o meu

Antes de Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.), as datas das estações eram muito imprecisas em Roma, o que tornava difícil determinar a hora certa do plantio. Para resolver o problema, o imperador copiou a folhinha do país de sua amante, a egípcia Cleópatra, que sabia acompanhar muito bem as mudanças anuais da meteorologia. Nasceu assim o calendário juliano, no qual aparecem pela primeira vez os meses que usamos hoje.
O nome de julho foi escolhido pelo senado romano em homenagem ao imperador. Antes disso, esse mês se chamava quintilis, pois era o quinto a contar de março, que marcava o início do ano para os romanos. Então, aproveitando a onda de bajulação, o senado deu o nome do sucessor de César, Augusto, ao mês seguinte, que, em vez de sextilis, passou a se chamar agosto. Só que Augusto não gostou de esse mês ter 30 dias e julho 31. Assim, roubou 24 horas de fevereiro, que de 29 dias ficou com 28. Como resultado, apareceu uma eqüência de três meses longos: julho, gosto e setembro, que já tinha 31 dias.
A saída foi rebaixar setembro para 30. É mais um exemplo do quanto os calendários são arbitrários.

Daqui a oito anos tem outro 2000

Embora seja um país majoritariamente cristão, a Etiópia, no nordeste da África, não reconhece a autoridade do papa. Por causa disso, sua igreja não obedeceu à ordem de Roma de padronizar o calendário e conserva seu próprio sistema milenar. O ano etíope tem treze meses – doze com trinta dias e um com cinco ou seis no final do ano. Além disso, eles acreditam que Jesus Cristo nasceu no nosso ano 9. Assim, enquanto celebrarmos a entrada do ano 2000, os etíopes estarão ainda em abril de 1992. Portanto, se você por algum motivo perder a festa deste ano, fique sabendo que lá na África tem outra em 2008!

O ano está errado e o dia também

Se o ano não está correto, o dia exato do Natal é simplesmente desconhecido. “A data de 25 de dezembro só foi instituída por conveniência política”, afirma o astrônomo Othon Winter. “A Bíblia não diz em nenhum lugar quando nasceu o filho de Deus.” Sem a dica da data certa, diversas regiões da Europa e do Oriente Médio escolheram dias diferentes para comemorar o Natal, embora mais tarde aderissem à orientação romana. Assim, a festa era em 19 de novembro no Egito, 20 de maio na Palestina e 6 de janeiro na Etiópia, onde continua em vigor.
Não se sabe o motivo dessas opções, a não ser no caso em que a data tornou-se a mais popular, o 25 de dezembro: esse era o dia festejado pelos romanos como o aniversário do deus persa Mitra, que não tem nada a ver com o cristianismo, mas era muito popular naqueles tempos. Como Roma era a capital da cristandade e a cidade mais importante do mundo à época, sua data se impôs, prevalecendo até hoje. Vencida pelos fatos, a Igreja a adotou oficialmente em 440.
“Em vez de combater o ritual pagão, os bispos o incorporaram”, conta o historiador Edgard Leite, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aliás, o próprio Novo Testamento parece indicar que a data de 25 de dezembro está errada. O Evangelho de Lucas afirma que Jesus é seis meses mais novo que João Batista, que diversos registros indicam ter nascido em 27 de março. Nesse caso, o verdadeiro Natal cairia no final de setembro.

Reforma revolucionária

A tentativa mais conhecida de mudar a nossa contagem dos anos foi feita pela Revolução Francesa. A reforma foi implantada por meio de um decreto que entrou em vigor em 22 de setembro de 1792. Esse dia, a partir daí, passou a se chamar de primeiro de vindimário do ano 1. O novo mês ganhou esse nome por ser o tempo da colheita da uva, ou vindima. Os outros meses, todos com trinta dias, também foram rebatizados tendo como critério algum fato natural relativo a eles. Sobravam cinco dias não vinculados a nenhum mês. Eram de repouso coletivo.
As semanas tinham dez dias, nove de trabalho e um de descanso. “Foi um erro”, diz Winter. “Ninguém gostou das semanas longas.” De fato, treze anos depois de começar, a experiência foi encerrada por Napoleão Bonaparte.
Outro inovador foi o filósofo Augusto Comte. Em 1849, ele propôs um ano de treze meses com quatro semanas cada um. Nesse sistema, qualquer data cairia no mesmo dia da semana, todos os anos. O ano-novo, por exemplo, cairia sempre no domingo. Havia ainda um dia extra, fora dos meses e das semanas. A idéia não vingou.

A folhinha dos chineses é mais velha

Mesmo que Cristo estivesse realmente soprando 2 000 velinhas agora, este final de ano não teria nada de especial para a maior parte dos povos da Terra. Afinal, os cristãos representam somente 30% do planeta. Budistas, hindus, muçulmanos e judeus, que compreendem cerca de 40% da população mundial, seguem calmamente seus velhos calendários (veja nestas páginas).
De todos os que estão em vigor, o mais antigo é o chinês, dividido em ciclos de doze anos. Cada ano tem o nome de um bicho, como porco, tigre e dragão. Em fevereiro de 2000 estaremos entrando no ano do dragão, considerado de bom augúrio. É possível que Cristo também tenha nascido no ano do dragão, há 2 004 anos. Os ciclos se sucedem sem ser contados. “Os chineses não têm um ano inicial”, diz Winter. “Não há uma era chinesa, como a era cristã.” Se alguém quer situar um acontecimento no passado, diz o nome do governante daquela época.
Mas, apesar de não ser contados, os ciclos foram registrados em associação com as sucessivas dinastias chinesas. Assim, datando essas dinastias pelo calendário gregoriano, deduz-se que o calendário dos animais é seguido desde o dia 15 de fevereiro de 2 636 a.C. Ou seja, se ligassem para milênios, os chineses já teriam comemorado o segundo bem antes de Cristo nascer. Perto dos quase 5 000 anos da folhinha chinesa, nosso suposto segundo milênio é coisa de criança.
Embora possua o mais antigo sistema eficiente de contagem do tempo, a China curvou-se à força do dinheiro e adotou o esquema gregoriano em 1912 para controlar os negócios e os impostos. É a data oficial que aparece também nos jornais. Mas a população continua a seguir o sistema tradicional e o ano-novo cai em 5 de fevereiro. É a maior festa popular da China.
Portanto, nas ruas dos país mais populoso do mundo, a comemoração pode até ocorrer em locais freqüentados por estrangeiros, mas certamente será pífia entre a população. O mesmo pode-se esperar em vários países não cristãos, especialmente nos de língua árabe e na Índia. Em vista disso tudo – e do equívoco de Dionísio –, fica claro que celebramos este 31 de dezembro por uma convenção ocidental e cristã.
Quase por acaso, devido a um erro aritmético cometido 1 474 anos atrás, a data foi escolhida como o dia da festa. Mas, se é assim, estoure o champanhe e caia na gandaia. Contas malfeitas e arbitrariedades à parte, o ano 2000 está aí nos convidando para renovar as esperanças de um milênio melhor.

Novo milênio judeu é em 2040

A era judaica é ainda mais ambiciosa que a cristã. Se os cristãos baseiam-se no nascimento de Cristo, os hebreus afirmam computar os anos desde a criação do Universo.
O calendário judaico (na foto acima, você vê uma de suas mais antigas representações) está no ano 5760 e foi calculado no século XI por Hai Gaon, um rabino da Babilônia, atual Iraque. Gaon somou a duração da existência de vários personagens do Velho Testamento. Pelos seus cálculos, passaram-se 1 949 anos da criação até o nascimento do patriarca Abraão. De lá para cá, foram mais 3 811. Em 2040, será a vez de esse calendário fechar mais um de seus muitos milênios.

O Nilo vira um relógio

Os primeiros a usar o Sol para medir o tempo foram os egípcios, há 6 000 anos. Graças à secura do deserto. É que lá no norte da África a temporada das cheias, em agosto, chega todos os anos no mesmo dia, porque não há correntes úmidas nem El Niño para desregular o tempo. Assim, quando o Rio Nilo atingia seu ponto máximo, os egípcios sabiam com absoluta certeza que tinha chegado o verão. Como o Sol completa um ciclo de um verão a outro, os egípcios contavam quantos dias tinham decorrido entre uma cheia e outra para chegar ao número exato dos dias do ano. Devemos a esse rio confiável o calendário solar, que foi mais tarde copiado por Júlio César, que o disseminou pelo Ocidente.

Muçulmanos preferem a lua

O ano 2000 é o 1420 da era islâmica. E, nesse caso, a data é precisa. Se os cristãos jamais saberão ao certo o verdadeiro aniversário de Cristo, os muçulmanos não têm dúvidas quanto ao marco em que começaram a contar os anos.
Suas folhinhas partem do dia em que o profeta Maomé deixou sua cidade, Meca, e estabeleceu-se em Medina, ambas na atual Arábia Saudita. Era 16 de julho de 622. “É um dos poucos, entre os principais calendários, que iniciaram sua era no momento do evento e não séculos depois dele”, explica o astrônomo Roberto Boczko, da Universidade de São Paulo, que pesquisa o assunto.
No livro sagrado muçulmano, o Alcorão, Maomé definiu que marcaria o tempo com a trajetória da Lua, que leva algo como 29 dias e meio para percorrer suas quatro fases. O satélite natural da Terra, na fase crescente, tornou-se também o símbolo de sua nova religião.
Já o calendário cristão não leva em conta as voltas da Lua; computa apenas o caminho da Terra em torno do Sol no céu. Como o ciclo solar não bate com o lunar, o ano islâmico tem dez dias a menos.

Destruição do mundo

A extinta civilização maia, que floresceu no México e na América Central, entre os séculos III e IV, tinha um calendário notável, com um ano de 365 dias. Assim como os judeus, sua era começava com a criação do Universo. Mas, para eles, o mundo é recriado a cada 5 130 anos. Ao fim desse ciclo, o Universo acabaria, começando tudo de novo.
Se a contagem deles tivesse persistido, estaríamos no ano 5119. O curioso é que essa data da criação não difere muito da estabelecida pelos judeus. “Provavelmente os dois povos tentaram imaginar uma data no passado longínquo”, teoriza Winter. “E 5 000 anos pareceu longe o bastante para ambos.”
O calendário maia oferece outra oportunidade para os profetas do apocalipse. Se eles ficarem decepcionados quando o ano 2000 chegar e o mundo não acabar, terão outra chance em 2012. É quando termina o atual ciclo de 5 130 anos, que para os maias levará à destruição do Universo.

Para saber mais

Fim de Milênio, Bertília Leite e Othon Winter, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
O Milênio em Questão, Stephen Jay Gould, Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
Fonte: https://super.abril.com.br/historia/por-que-2000/

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