segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Outros Outubros virão


Por Valério Arcary, professor do IFSP
Hoje celebramos noventa e cinco anos da revolução russa. A efeméride oferece a ocasião para o ressurgimento da interpretação liberal sobre o seu significado: seus arautos nos recordarão, em um exercício manipulado de história contra-factual, que o século XX teria sido o palco de uma luta titânica da democracia contra os totalitarismos comunista e fascista. Esquecerão, convenientemente, que sem a revolução de outubro e, portanto, a existência da URSS, seria pelo menos duvidoso a introdução de regulações no capitalismo como a experiência do New Deal de Roosevelt nos EUA na sequência da crise de 1929, ou a seguridade social na Escandinávia nos anos trinta. A vitória da luta contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial teria sido imensamente mais difícil. Argumentarão, pomposos e solenes, que as revoluções seriam processos de transformação, historicamente, superados: teriam sido, afinal, terremotos convulsivos característicos de nações com baixos níveis de instrução. O que não permitiria explicar o Maio de 1968 na França: um dos países centrais com escolaridade média mais elevada do mundo. Descuidarão, portanto, que a história é um processo em aberto. Ininterrupta, a história voltou a nos surpreender com revoluções políticas, como nos recordam os últimos dois anos na Tunísia, Egito, Líbia, Síria, enfim, no Magreb e Oriente Médio.
O século do encontro da revolução com a história
A revolução política e social foi o fenômeno decisivo da história contemporânea, deslocando o lugar que, no passado, era ocupado pela guerra. A desigualdade social foi e continua sendo o maior problema da civilização. Revoluções aconteceram e continuarão acontecendo porque há injustiça e tirania no mundo. A disparidade de condições materiais e culturais de existência humana precipitaram, recorrentemente, crises sociais que transbordaram em crises políticas. Quando as crises políticas não encontram uma solução no limite das relações sociais dominantes, abre-se uma situação revolucionária. A revolução russa de outubro não foi uma excepção. Ao contrário, a revolução bolchevique estabeleceu um dos paradigmas mais longevos do século XX e inspirou várias das gerações de socialistas que vieram depois.
Mudanças eram – e continuam – sendo necessárias. Nenhuma sociedade permanece imune à pressão por mudanças. Mas, as forças da inércia histórica são proporcionais à força social reacionária de cada época. Um atraso significativo e, muitas vezes, terrível, é inevitável entre o momento da manifestação de uma crise social, e o tempo que a sociedade precisa para que seja capaz de enfrentar as mudanças que são indispensáveis. Revoluções não acontecem quando são necessárias, mas quando a pressão pela transformação se demonstrou inadiável. A história confirmou que as transformações podem ocorrer por via de reformas, ou seja, por lutas que resultam em negociações e acordos transitórios que mantém, na essência, a ordem econômica, social e política, ou por via de revoluções.
Significado das derrotas históricas
A velha máxima que assegura que as revoluções tardias são as mais radicais não deixou de se confirmar. Ao final da Primeira Guerra Mundial ruíram na Europa Central e Oriental três Impérios – o russo, o austro-húngaro e o prussiano – que tinham atravessado, incólumes, o século XIX, desde a Santa Aliança anti-republicana e o Tratado de Viena de 1815. As formas monárquicas mais ou menos arcaicas de cada um deles – expressão de uma transição burguesa negociada sob as cinzas da derrota das revoluções democráticas de 1848 – foram destruídas pelo desenlace da guerra, mas, também, pela maior vaga revolucionária que a história tinha até então conhecido: de Petrogrado a Budapeste, de Viena a Berlim, milhões de homens e mulheres, trabalhadores e soldados, atraíram para o seu lado setores das camadas médias, artistas, intelectuais e professores, e lançaram-se na obra de destruir os velhos regimes de opressão que os tinham mergulhado no turbilhão do genocídio que acabou consumindo algo próximo a dez milhões de vidas.
Aonde as revoluções democráticas de 1848 foram derrotadas pelas velhas monarquias – fortalecidas na época da restauração depois de 1815- como na Alemanha prussiana e no Império dos Habsburgos, a tarefa de pôr fim à guerra uniu-se à proclamação da República, mas as forças sociais que impuseram, pelos métodos da revolução, a derrota do governo – o proletariado e os camponeses arruinados que constituíam a maioria do exército – não se contentaram somente com as liberdades democráticas, e lançaram-se na vertigem da conquista do poder com suas esperanças socialistas.
As revoluções atrasadas da Europa Central e Oriental transformaram-se em revoluções proletárias pioneiras ao final da Primeira Guerra Mundial, mas, à excepção da Rússia, foram desbaratadas. Derrotas históricas, contudo, têm conseqüências trágicas e duradouras. O custo histórico, para os alemães, da derrota de seus jacobinos em 1848 foi o militarismo nacionalista do II Reich, o imperialismo do Kaiser, e a Primeira Guerra Mundial. O preço que a nação alemã pagou pela derrota do seu proletariado – o triunfo do nazismo, a Segunda Guerra e os seis milhões de vidas da juventude alemã – foi ainda maior.
Ditadura do proletariado ou ditadura fascista
Aonde as formas tirânicas do Estado revelaram-se mais rígidas, como na Rússia, a revolução democrática radicalizou-se, muito rapidamente, em revolução socialista, confirmando que revoluções não podem ser compreendidas somente pelas tarefas que se propõem resolver, e menos ainda pelos seus resultados, mas, sobretudo, pelos sujeitos sociais, ou classes, que tiveram a audácia de fazê-las, e pelos sujeitos políticos, ou partidos, que foram capazes de dirigi-las. O substitucionismo histórico – de uma classe por outra – e a centralidade da política – com a redução das margens de improviso da liderança – demonstraram-se as chaves de explicação dos processos revolucionários contemporâneos.
Não foi a burguesia russa que se lançou à insurreição para derrubar o Estado semi-feudal dos Romanov em fevereiro de 1917, mas foi ela quem impediu o governo provisório do Príncipe Lvov de fazer a paz em separado com a Alemanha: os capitalistas russos demonstraram-se demasiado frágeis para, por um lado, romper com seus parceiros europeus, e por outro, para garantir a sua dominação através de métodos eleitorais na República que nascia pelas mãos da insurreição proletária e popular. Não foi a burguesia quem mandou os seus filhos para as trincheiras da guerra serem massacrados, mas era ela quem apoiava Kerensky, quando este insistia em lançar os camponeses fardados em ofensivas suicidas sobre o exército alemão.
A pressão de Londres e Paris exigia a manutenção da frente oriental, mas a pressão de um proletariado poderoso e combativo – proporcionalmente a uma burguesia com pouco “instinto de poder” pela submissão à monarquia – exigia o fim da guerra; as forças mais fortes da esquerda socialista – mencheviques e esseristas – se recusavam a assumir o poder sozinhos, porque não queriam romper com a burguesia, porém os bolcheviques, minoritários até setembro, recusavam a integração no governo de colaboração de classes, porque não admitiam romper com as reivindicações populares. Quando Kerensky perdeu o apoio nas classes populares, a burguesia russa apelou ao general Kornilov para resolver com as armas, o que não podia ser resolvido com argumentos. A hora das eleições para a Constituinte tinha passado. A burguesia russa perdeu a paciência com Kerensky e rompeu com a democracia, dois meses antes de o proletariado perder a paciência com os seus líderes, e recorrer a uma segunda insurreição para terminar com a guerra.
O fracasso do putsch selou o destino da burguesia russa. O proletariado e os soldados encontraram nos bolcheviques, nas horas terríveis de agosto, o partido disposto a defender com a vida as liberdades conquistadas em fevereiro. Sem o apoio da burguesia e sem o apoio das massas, suspenso no ar, o governo de Kerensky – e seus aliados reformistas – procurou socorro no pré-parlamento, mas a legitimidade da democracia direta dos sovietes superava a representação indireta de qualquer assembléia: o tempo para as negociações com a Entente tinha se esgotado, a oportunidade histórica para a república burguesa tinha sido perdida. Era tarde demais.
A engrenagem da revolução permanente empurrava os sujeitos sociais interessados no fim imediato da guerra – a maioria do Exército e dos trabalhadores – para uma segunda revolução e operava a favor dos bolcheviques que, no espaço de poucos meses, viam sua influência se agigantar. O proletariado e os camponeses pobres precisaram dos meses que separaram fevereiro de outubro para perderem as ilusões no governo provisório, onde os partidos em que depositavam suas esperanças, mencheviques e esseristas, eram incapazes de garantir a paz, a terra e o pão, e entregar sua confiança aos sovietes onde a liderança de Lênin e Trotsky se afirmava.
Martov, líder dos mencheviques internacionalistas e Kautsky, líder da social-democracia alemã, insistiram, nos anos seguintes, que Outubro teria sido uma aventura voluntarista. Acusaram os bolcheviques de golpistas por terem feito a revolução: queriam que os bolcheviques construíssem o regime democrático-liberal quando a burguesia russa tinha apoiado os métodos da guerra civil para defender a propriedade privada. Quis a ironia da história que, na Rússia de 1917 – antecipando um movimento histórico que depois se generalizou à Europa – os partidos menchevique e SR, que nasceram como organizações operárias e populares, transfiguraram-se nos porta-vozes da pequena-burguesia e das incipientes classes médias urbanas: um colchão de amortecimento da luta de classes entre o Capital e o Trabalho, e os últimos advogados de um regime democrático-liberal, mesmo depois que a burguesia tinha abraçado o plano da ditadura fascista, que poderia ser adornada com uma coroa monárquica. Mais razoável, entretanto, seria concluir que uma hesitação bolchevique em outubro, ou a sua derrota na guerra civil entre 1918/1920, teria levado ao poder – apoiado pelas democracias de Washington e Londres – um fascismo russo, e ninguém deveria querer imaginar o que poderia ter sido um “Hitler” no Kremlin.
A alternativa de outubro: capitalismo ou socialismo
O balanço que a história deixou parece irrefutável: se até a Alemanha, a mais desenvolvida e educada das nações européias não escapou da ditadura nazista, seria superficial e até, talvez, ingênuo, imaginar que a atrasada Rússia semi-asiática poderia ter consolidado um regime democrático-liberal ao final da Primeira Guerra Mundial. São variadas as razões que explicam essa impossibilidade na Rússia, ao contrário do que aconteceu, posteriormente, na Europa do Mediterrâneo em 1945, em Portugal e Espanha entre 1975 e 1978, ou na América Latina entre 1982 e 1985.
Nas condições da Rússia depois da queda do Czar, em fevereiro, a burguesia não estava disposta a romper suas relações com Londres e Paris e iniciar um processo de paz em separado com Berlim, porém, sem a paz, a burguesia não poderia imaginar a convocação das eleições para a Constituinte. Ao chegar mais de meio século atrasada ao processo de industrialização, e ao ter se inserido no sistema internacional como potência semi-periférica – imperialista em relação às suas colônias no Cáucaso e na Ásia, mas sub-metrópole em relação à França e à Inglaterra – a burguesia russa tinha se associado aos capitais estrangeiros para financiar a implantação de seu parque industrial.
A consolidação de uma democracia-liberal pressupunha a convocação de eleições em uma situação em que a legitimidade da vontade popular tinha encontrado representação nos sovietes, onde o principal partido burguês, o Kadete, não tinha expressão. A força do proletariado em movimento impunha uma forte presença dos partidos socialistas moderados, mencheviques e esseristas, nos variados Governos provisórios, mas, assim como Miliukov não estava disposto a romper com a Entente, estes partidos não estavam dispostos a romper com a burguesia, levando primeiro o Príncipe Lvov, e depois Kerensky, ao impasse crônico.  Ao exigir das massas que fizeram a revolução contra o Czar para se libertar da guerra, que prolongassem a guerra para conseguir a Constituinte (e a promessa secular de terra e libertação nacional para ucranianos, bálticos, caucasianos e asiáticos) sucessivas crises políticas foram se precipitando em vertigem até à crise revolucionária, depois da derrota do golpe de Kornilov.
Referências bibliográficas
COLLETTI, Lucio. El marxismo y el derrumbe del capitalismo. México: Siglo XXI, 1985.
DRAPER, Hal. Karl Marx’s theory of revolution. v. 2. Nova York: Monthly Review Press, 1978.
FURET, François. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
TROTSKY, Leon. Historia de la revolución rusa. Bogotá: Pluma, 1982.
Fonte: http://blogconvergencia.org

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