Enchentes, desmoronamentos com mortes, congestionamentos, crescimento
exponencial da população moradora de favelas (ininterruptamente nos
últimos 30 anos), aumento da segregação e da dispersão urbana,
desmatamentos, ocupação de dunas, mangues, APPs (Áreas de Proteção
Permanente) APMs (Áreas de Proteção dos Mananciais), poluição do ar, das
praias, córregos, rios, lagos e mananciais de água, impermeabilização
do solo (tamponamento de córregos e abertura de avenidas em fundo de
vales), ilhas de calor… e mais ainda: aumento da violência, do crime
organizado em torno do consumo de drogas, do stress, da depressão, do
individualismo, da competição.
As cidades fornecem destaques diários para a mídia escrita, falada e
televisionada. A questão urbana ocupa espaço prioritário na agenda
política nacional. Certo?
Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional.
As conquistas institucionais nos anos recentes não foram poucas:
promulgação do Estatuto das Cidades, aprovação dos marcos regulatórios
do saneamento, dos resíduos sólidos, da mobilidade urbana, aprovação de
uma enxurrada de Planos Diretores, criação do Ministério das Cidades,
retomada das políticas de habitação e saneamento após décadas de
ausência do Estado. No entanto, a crise urbana está mais aguda do nunca.
Por quê?
Numa sociedade persistentemente desigual as cidades não poderiam
expressar o contrário. Mas há algo nas cidades que é central e ignorado.
Trata-se do poder sobre o “chão”, ou seja, o poder sobre como se dá a
produção e a apropriação do espaço físico. De todas as mazelas
relacionadas acima, a primeira parte tem a ver com o “espaço urbano” ou
com as formas de uso e ocupação do solo, essa evidência que nos cerca no
cotidiano das cidades, mas que está oculta para Estado e sociedade.
Assim como no campo, a terra urbana (pedaço de cidade) é o nó na sociedade patrimonialista.
A importância do espaço urbano como ativo econômico e financeiro
escapa à percepção da maior parte dos urbanistas, engenheiros e
economistas no Brasil (exceto dos que trabalham para o capital
imobiliário). O valor da terra e dos imóveis varia de acordo com as leis
ou investimentos realizados nas proximidades.
Poderosos lobbies atuam sobre os orçamentos públicos dirigindo os
investimentos e os destinos das cidades. Trata-se do que os americanos,
Logan e Molotch, chamaram de “máquina do crescimento”: a reunião de
interessados na obtenção de rendas, lucros, juros e… recursos para o
financiamento de campanhas, acrescentamos nós. O planejamento urbano é o
fetiche que encobre o verdadeiro negócio. É comum que um conjunto de
obras contrarie o Plano Diretor. O mais frequente é vermos obras sem
planos e planos sem obras.
O governo federal retomou as políticas de habitação e saneamento e se
propõe a retomar a política de mobilidade urbana após décadas de
ausência promovida pelo ideário neoliberal. Mas a retomada desses
investimentos sem a reforma fundiária e imobiliária urbana (de
competência municipal) traz consequências cruéis como a explosão dos
preços dos imóveis.
Durante os 50 anos em que urbanistas e movimentos sociais defenderam a
Reforma Urbana, a exclusão territorial foi reinventada, em duas
ocasiões, pelos que lucram com a produção da cidade: quando o BNH
carreou recursos para o financiamento residencial e, novamente, quando
isso aconteceu, recentemente, com o Minha Casa Minha Vida. Em ambas as
ocasiões, o PIB foi insuflado pela atividade da construção.
Ao contrário de um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente
equilibrado, um dinâmico crescimento imobiliário reproduz
características históricas de desigualdade e predação ambiental que,
somadas ao grande número de carros que entopem a cada dia os sistemas
viários, apontam para um rumo de consequências trágicas. Esse tema
deveria ter ocupado um lugar central na Rio +20.
Pesquisas recentes da USP ampliaram o conhecimento sobre o número de
patologias causadas, na RM de São Paulo, pela poluição do ar, do som, ou
pelos congestionamentos de tráfego: doenças cardíacas, transtornos
mentais, ansiedade, depressão, estresse. O tempo médio das viagens
diárias está próximo das três horas, sendo que para um terço da
população passa disso. 30% das famílias são chefiadas por mulheres que
após a jornada de trabalho chegam em casa e têm que dar conta dos filhos
e do serviço doméstico.
Tanto sofrimento exigiria repensar a prioridade dada ao automóvel em
detrimento do transporte coletivo. Deve haver outras formas de criar
empregos e aumentar o PIB sem gerar tal irracionalidade (do ponto de
vista social e ambiental) urbana.
Os megaeventos (Copa, Olimpíadas) acrescentam alguns graus nessa
febre. Por isso, os despejos de comunidades pobres que estão (e sempre
estão) no caminho das grandes obras está ganhando dimensões não
conhecidas até agora.
Embora a agenda social tenha mudado nos últimos nove anos favorecendo
ex-indigentes, ex-miseráveis ou simplesmente pobres (bolsa família,
crédito consignado, aumento do salário mínimo, Prouni), embora as obras
urbanas se multipliquem a partir do PAC e do MCMV, ambos por iniciativa
do governo federal, as cidades pioram a cada dia.
Distribuição de renda não basta para termos cidades mais justas,
menos ainda a ampliação do consumo pelo aumento do acesso ao crédito. É
preciso “distribuir cidade”, ou seja, distribuir terra urbanizada,
melhores localizações urbanas que implicam melhores oportunidades.
Enfim, é preciso entender a especificidade das cidades onde moram mais
de 80% da população do país e representam algumas das maiores metrópoles
do mundo.
A Carta Maior oferece um espaço permanente para dar à questão urbana o
lugar que lhe deveria caber na agenda política nacional. Leremos nesta
editoria alguns dos mais informados e experientes profissionais e
estudiosos de políticas urbanas no Brasil, que, além dessas virtudes, se
classificam como ativistas de direitos sociais e justiça urbana. Serão
objeto dessas análises várias das maiores cidades brasileiras que estão
sofrendo com esse processo, bem como ficará evidente a resistência
oferecida pelos movimentos dos despejados que se multiplicam em todo o
Brasil.
Para seguir a trilha do desenvolvimento urbano, e não apenas
crescimento urbano, revertendo o rumo atual, há conhecimento técnico, há
propostas, há planos, há leis e até mesmo experiência profissional
acumulada no Brasil.
Ainda que no espaço de uma sociedade do capitalismo periférico ou
“emergente”, como quer o main stream, é possível diminuir um pouco as
selvagens relações sociais, econômicas e ambientais que vivemos nas
cidades. Antes de apresentar propostas, que são rapidamente repetidas
para serem também rapidamente esquecidas, é preciso mostrar porque a
formulação de propostas, planos e leis não bastam.
A questão é essencialmente política. É preciso mostrar a lógica do
caos aparente, ou seja, a lógica dos que ganham com tanto sofrimento e
suposta irracionalidade. As próximas eleições se referem ao poder local,
ao qual cabe a competência sobre o desenvolvimento urbano de acordo com
a Constituição Federal. Esperamos colaborar para diminuir o
analfabetismo urbanístico e cobrar dos candidatos a prefeitos e
vereadores maior conhecimento e compromisso com a justiça urbana.
(*) Erminia Maricato, arquiteta-urbanista, professora titular aposentada da FAU USP e professora da Unicamp.
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