Fonte: Folha de S. Paulo (20/9)
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Mais uma vez, os
Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos
capitalistas. Em meados do século 19, Karl Marx já havia revelado como
este jogo se dá.
As economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se
trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações
numéricas. Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A
isso os economistas chamam “comportamento racional”. Dizem coisas
complicadas, pois a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação.
Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi
Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da
sociedade que então desabrochava:
- (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria;
- (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta;
- (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são poucas, esses novos bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados à fantasia, que é ilimitada.
Para aumentar a potência produtiva e
expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução
técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo
mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador
daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a
cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a
deteria.
Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente,
superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa
abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela
produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em
coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o
circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é
acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o
próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D – D” essa forma
de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse
a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem
trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a
esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao
afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um
agente organizador da sociedade.
Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade
correria sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais
desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais
forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia
ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos
cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da
cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a
intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder
destrutivo.
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os
adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e
mais essencial, com ampla predominância da acumulação D – D”. Abandonou
as mediações de que necessitava no período anterior, quando
contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu.
Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o
capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda
lembranças.
*CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor
honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é
autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006).
Fonte:http://imediata.org
Nenhum comentário:
Postar um comentário