Da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada 
Foi  a primeira vez, em minha já longa militância feminista, que vi um  debate sério acerca da legalização do aborto em espaço institucional.  Foi na sexta-feira (24), no Tribunal de Justiça de São Paulo, no caso,  na primeira audiência pública para discussão das propostas do capítulo  "Crimes Contra a Vida" do anteprojeto do novo Código Penal. De acordo  com o procurador regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves,  relator da comissão instituída pelo Senado para elaboração do  anteprojeto, o evento é uma oportunidade de mostrar as mudanças  propostas e ouvir a população sobre os crimes contra a vida: homicídio,  eutanásia, ortotanásia, suicídio, infanticídio, aborto.
Salão lotado
Teve gente que se despencou de outros estados para esta audiência,  que tinha o salão lotado por mais de 500 pessoas, comprovando o quanto  faz falta uma democracia mais participativa em nossa República. Já não  era sem tempo a “modernização” do Código Penal, cuja legislação é de  1940, totalmente incompatível com as mudanças socioculturais vividas  desde então. Este aspecto foi saudado em vários pronunciamentos e motivo  principal da Comissão de Reforma do Código Penal, proposta pelo senador  Pedro Taques (PDT-MT) e instalada em outubro de 2011.
“Não acompanhamos o avanço da sociedade”, falou o desembargador Ivan  Sartori, presidente do TJSP e conhecido dos movimentos sociais  paulistanos. Segundo fala do presidente da comissão, ministro Gilson  Dipp (STJ), o que a comissão pretende é adaptar o Código Penal à  Constituição de 1988 e fazer dele o centro do sistema penal brasileiro. A  criminalização do terrorismo e crimes praticados na internet também  está prevista para integrar o novo Código. Vamos prestar atenção.
Direito ao aborto é saúde
A diversidade de ideologias, religiões, conceitos filosóficos  formadores da nação brasileira, foi destacada pelo coordenador dos  trabalhos, ministro Gilson Dipp. E apareceu bastante nas várias falas,  tanto de autoridades como dos cidadãos e cidadãs inscritos. Algumas  instituições, convidadas a dar sua contribuição e convidadas a falar na  abertura ao plenário, preferiram informar que enviarão suas sugestões  por escrito, e algumas não apareceram.
Espanto com o número de inscrições para falar foi manifestado pela  organização, que informou ter limitado a uma centena o número de  inscritos. Associação dos Advogados de SP, dos Magistrados, dos Juízes  pela Democracia, Defensoria Pública, Ministério Público, Conselho  Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Bioética, foram algumas  entidades presentes. “Isto é um exercício de republicanismo e de  democracia”, falou Eduardo Vera-Cruz Pinto, diretor da Faculdade de  Direito de Lisboa, lembrando que “o Código Penal é sempre uma decisão  política, não técnica, necessita da participação da sociedade”. Os  senadores Aloysio Nunes Ferreira e Eduardo Suplicy também estiveram  presentes, ao menos no início da audiência.
Apesar dos vários “crimes contra a vida” em debate, o direito ao  aborto foi sem dúvida o tema mais discutido, já que na contemporaneidade  não é considerado crime na maioria dos países. Católicas pelo Direito  de Decidir, o Cladem e a Frente Nacional pelo fim da criminalização das  mulheres e pela legalização do aborto também foram organizações  convidadas a falar. Ainda bem, foram as únicas mulheres convidadas a se  manifestar, em meio a tantos desembargadores, juízes, doutores.
Descriminalizar as mulheres
Maria José Rosado, das Católicas, disse das inúmeras razões que fazem  sua organização defender a retirada do aborto do Código Penal e a sua  regulação por legislação específica. “Defendemos a legalidade e a  legitimidade do direito da mulher ao aborto, para que as mulheres deixem  de morrer”, disse. “Assim como o aborto forçado, a maternidade forçada  também é prejudicial à mulher. Temos respeito pela maternidade, mas essa  capacidade deve ser de livre escolha da mulher.”
Sonia Coelho, ao falar pela Frente Nacional pelo Direito ao Aborto,  comoveu a plenária ao contar a história de mulher que morreu em  decorrência de aborto inseguro, e a filha mais velha resumiu os motivos  dela – “tinha medo de perder o emprego, que era de carteira assinada”.  “A clandestinidade afeta prioritariamente as pobres”, falou Soninha, que  apresentou alguns números e dados da questão no Brasil. A legalização  do aborto na África do Sul, seguida de diminuição do índice de  mortalidade materna, foi citado por ela como exemplo que o Brasil devia  seguir, já que esse índice em nosso país é alto, sendo a quarta causa de  morte das mulheres.
O infanticídio (mãe matar o filho sob influência do parto) foi também  levantado pela líder feminista, demandando que também saia do código  penal. A representante do Cladem, membro da comissão de Bioética do Rio  de Janeiro, lembrou de que foi nos anos 70 que a Europa discutiu o  aborto, também os EUA e vários países da América Latina estão avançados  neste debate. “Passa da hora de o Brasil rever essa legislação punitiva  do aborto”, disse, ressaltando a discriminação institucional que sofrem  as mulheres que optam por abortar. Como se essa decisão já não fosse  carregada de sofrimento.
Entrar no século XXI
Felizmente, além das feministas presentes e inscritas para falar,  presença destacada na plenária, vários juristas e médicos defenderam a  descriminação do aborto. “Reiterados encontros com organizações de  direitos humanos e estudos mostram que o abortamento inseguro é problema  de saúde pública”, defendeu representante* da Sociedade Brasileira de  Bioética. Ele defende o termo “interrupção voluntária da gravidez” e  destaca que a mulher a ser descriminalizada “é a que sofre abandono,  perde o emprego.”
Defendeu ainda a eutanásia e a ortotanásia (direito do paciente  terminal libertar-se das tecnologias e morrer onde queira). Para o  Conselho Federal de Medicina, “a autonomia e a vontade são os alicerces  da existência humana”, nas palavras de seu representante*. “Enfim, o  Legislativo está enfrentando demandas antigas do povo”, disse a  Associação de Juízes pela Democracia. Em relação ao aborto, o juiz  questionou a plenária – “quem não conhece alguém que já fez aborto?” – e  defendeu que “o legislativo seja ousado e se adéqüe às convenções  internacionais”.
“Criminalizar o aborto não é a solução”, disse Cristião Rosas, da  Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. “O que reduz a taxa  de abortamento é educação sexual, distribuição de contraceptivos,  descriminar o aborto é necessário por uma questão de justiça. O suposto  direito à vida está trazendo a morte para as mulheres”.
O discurso contrário, que diz “defender a vida”, só apareceu na  segunda metade da plenária, em menos vozes. Com os conhecidos  argumentos, inclusive o bonequinho do feto entregue à mesa, defenderam  que a Constituição inclusive é omissa ao defender a vida humana, como  querem. Saudaram o México, onde depois de legislação pelo direito ao  aborto, já conseguiram colocar na constituição de 18 estados, “o direito  à vida desde a concepção”.
Outras polêmicas
Segundo o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, outros aspectos  presentes no novo texto do Código Penal, que não foram discutidos na  audiência de ontem, podem colocar em risco a Lei Maria da Penha. A  incorporação pelo projeto de aspectos penais que instituem os juizados  especiais criminais e cíveis, conquista daquela lei, pode  descaracterizá-los, devolvendo à violência doméstica o status de  infração menor. Na análise do observatório, a conciliação, a busca da  harmonia familiar a qualquer custo, voltam a ser a prioridade máxima.  Acho que eles não viram o índice de reincidência da violência, às vezes  num grau ainda maior, quando a mulher submete-se à “volta ao lar”.
A qualificação do crime por “preconceito de raça, cor, etnia,  orientação sexual, deficiência física ou mental, condição de  vulnerabilidade social, religião, origem, procedência” foi saudado por  algumas intervenções, principalmente do movimento LGBT. Este movimento  demanda também que a homofobia, lesbofobia, transfobia sejam incluídos  como crimes passíveis de punição no novo Código. Também solicitação de  inclusão do feminícidio (morte da mulher por ser mulher) e retirada do  “infanticídio” foi feita por Amelinha Teles, da União de Mulheres.
Criminalidade e penas
“A criminalidade cresce, a população reivindica mais segurança”,  falou o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, recém filiado  ao novo partido do Prefeito de SP. Na questão dos homicídios,  mobilizadora de muitos dos presentes, a maioria estava ali para “fazer  justiça” em relação a parentes assassinados. Cada um com sua história  particular, incluindo a deputada federal Keiko Ota, presidenta da Frente  Parlamentar Mista em Defesa das Vítimas de Violência, que teve o filho  seqüestrado e morto em 1997. Outra liderança é Jorge Damus Filho, do  Movimento de Resistência ao Crime, defendeu a redução da maioridade  porque o assassino de seu filho era menor. Penas de 50 anos e retirada  de todos os direitos dos presos foram defendidos.
“A legislação brasileira banaliza o crime contra a vida, e pune mais o  crime contra o patrimônio”, disse o desembargador Henrique Nelson  Calandra, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros.  “Importante é não enganar o povo”, sentenciou o representante da  Associação de Juízes pela Democracia, “o aumento da pena não resolverá o  aumento da criminalidade, a impunidade sim é responsável por isso”.  Aliás, a impunidade existente no Brasil foi consensualmente criticada  pela maioria.
Novas audiência públicas foram prometidas para outras regiões do  país. O prazo para a conclusão dos trabalhos é 31 de maio, quando o  texto será entregue a José Sarney, o eterno presidente de alguma coisa. O  texto do novo projeto pode ser conferido no site do Ministério Público  Federal. No site da PRR-3 é possível conhecer as mudanças que serão  discutidas. Basta clicar no banner da audiência, acessando o endereço www.prr3.mpf.gov.br
* Representantes de entidades estão sem o nome, pois foi impossível  ouvir quando chamados e, infelizmente, na nota publicada pelo TJSP só  constam nomes de juristas.
Fonte: Revista Caros Amigos 
 
 
 


