quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Adolescentes escravizados exerciam atividades de risco no Pará

Entre 52 libertados estavam jovens de 13 e 14 anos manuseando machados. Fazendeiro nega que eles trabalhavam e diz que ambos foram “oportunistas”
Por Daniel Santini
Quatro adolescentes foram encontrados entre os 52 trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão em fiscalização realizada na zona rural do município de Tailândia (PA), no final de janeiro, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Dois deles, de 13 e 14 anos, exerciam atividade de risco manuseando machados na extração e beneficiamento de madeira, trabalho que está entre as piores formas de exploração infantil, conforme a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho e a legislação brasileira. Outro, de 16 anos, trabalhava com uma foice para abrir caminho para a passagem das toras. E uma garota de 15 anos trabalhava como cozinheira em uma das frentes de trabalho. Ronaldo de Araújo Costa, proprietário da fazenda em que o flagrante aconteceu, nega que tenha explorado trabalho escravo e infantil, diz que os adolescentes não trabalhavam e que foram “oportunistas” ao se depararem com a fiscalização.
Os dois adolescentes de 13 e 14 anos com o machado utilizado (imagem alterada para preservar a identidade dos jovens, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente) Fotos: Divulgação/MTE
“O trabalho que eles realizavam era de ‘lapidador’, eles lapidavam o tronco até deixá-lo no formato de mourões para cercas. Dois dos adolescentes utilizavam machados e um, uma foice. Eles estavam trabalhando nas frentes, não há dúvidas quanto a isso”, diz a auditora fiscal Inês Almeida, do MTE. Na ação, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel formado por agentes de diferentes órgãos, incluindo da Polícia Rodoviária Federal, apreendeu 11 armas, que, segundo os trabalhadores e os proprietários, eram utilizadas para caça. As atividades relacionadas a produção florestal são consideradas de risco 3 a 4, em uma escala de 1 a 4, conforme a Norma Regulamentadora Nº 4, do Ministério do Trabalho e Emprego
Armas apreendidas durante a fiscalização na fazenda São Gabriel 
Entre os resgatados, havia uma mulher grávida, isolada assim como os demais dentro da mata. “Os trabalhadores viviam em barracos de lona sem nenhuma infraestrutura. Havia famílias e crianças. A água que eles consumiam era de igarapés, alguns com água parada. Era uma água suja, escura e a única que eles tinham para consumir. As pessoas tomavam banhos com tigelas. Todos viviam em uma condição muito limitada”, conta a auditora.  
Os trabalhadores bebiam a água deste igarapé em uma das frentes de trabalho. Proprietário diz que trata-se de uma das melhores águas minerais do estado 
Ronaldo nega que a água consumida pelo grupo era suja. “São águas de igarapés que nascem na mata. A minha família chama de água mineral, todos nós bebemos essa água. Acho até que melhor do que a de outras fontes de água mineral do estado”, afirma o fazendeiro.
ResponsabilidadeA extração de madeira acontecia em sete frentes localizadas na propriedade conhecida como Fazenda São Gabriel, um conjunto de três fazendas administradas por Hortêncio Pinhoto Costa, pai de Ronaldo, o proprietário. Os trabalhadores resgatados viviam em barracos de lona, alguns distantes a mais de 10 km dentro da mata. Os mourões fabricados eram levados até a sede e vendidos pelos proprietários, que ficavam com 30% do valor e repassavam 70% aos responsáveis por cada frente, de acordo com Ronaldo. Ele defende que, por ter arrendado a exploração, não tem responsabilidade pelas condições encontradas.
Alimentos consumidos pelos trabalhadores e a cozinha improvisada na mata
“Ele tem, sim, responsabilidade. Os trabalhadores estavam na propriedade dele, recebiam ordens deles sobre onde cortar e até a venda era coordenada pela família, que não fornecia nem transporte e nem alimentação. Os trabalhadores compravam de uma cantina da fazenda, onde havia também fumo e ferramentas de trabalho. Muitos ficavam devendo, o que caracteriza servidão por dívida”, explica a auditora Inês.
Além de submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, o trabalho escravo contemporâneo pode, de acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, ser caracterizado pela submissão a condições degradantes, restrição da locomoção dos trabalhadores ou a servidão por dívida. A pena, que vai de dois a oito anos de prisão em caso de condenação, deve ser aumentada pela metade se o crime for cometido contra crianças ou adolescentes.
Foram lavrados 24 atos de infração pela fiscalização em função de irregularidades encontradas. 
Agente da Polícia Rodoviária Federal em ação na fiscalização do Grupo Móvel
Vulnerabilidade social
Ronaldo, o dono da fazenda, diz que falar em trabalho escravo no local é uma alegação “grotesca” e ressalta a pobreza da região ao ser questionado sobre as condições em que os empregados foram encontrados. “Os trabalhadores estavam recebendo. E agora? Antes, moravam em barracos, poderia até não ter um banheiro de alvenaria, mas eles tinham algo. Agora não vão ter onde morar. E nem o que comer”, ressalta o fazendeiro, que vive com a família em um dos condomínios de luxo mais caros da capital Belém (PA).
Os resgatados receberam R$ 168,9 mil em verbas rescisórias. “Muitos dos que estavam lá eram visitantes que acabaram se aproveitando. São oportunistas como os garotos, que estavam só visitando ou vivendo com a família e não trabalhavam. Em três meses, quando o dinheiro acabar, estarão todos desempregados e em condições piores ainda”, ataca o fazendeiro. Justamente para evitar que a situação de vulnerabilidade social possa acarretar em reincidência de trabalho escravo, as autoridades têm discutido programas de inserção de libertados e também medidas para minimizar a desigualdade em regiões onde o problema é crônico.
Entre as medidas que podem resultar em um avanço significativo neste sentido está a Proposta de Emenda Constitucional 438, a PEC do Trabalho Escravo, que prevê que as terras em que for flagrado trabalho escravo sejam expropriadas e destinadas a reforma agrária. Por enquanto, os trabalhadores resgatados seguem vulneráveis, sujeitos a serem cooptados em esquemas de superexploração. “Eles saem de uma situação, mas ficam em outra”, admite Inês, que defende programas de treinamento e capacitação para ajudar os resgatados. “Eu perguntei para um dos meninos o que ele gostaria de fazer quando crescesse. Achei que ele iria falar em algum trabalho mais leve, melhor. Ele disse que quer trabalhar na roça da juquira”, completa a auditora, se referindo à atividade de desmate para abertura de pastos, onde é bastante comum o uso de mão de obra escrava.

Fonte: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=2001

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