quinta-feira, 4 de março de 2010

Entrevista com Boaventura de Sousa Santos


Por José Maria Cançado, Juarez Guimarães, Leonardo Avritzer e Patrus Ananias*
O professor Boaventura de Sousa Santos dispensa apresentações: doutor em sociologia do direito pela Universidade Yale, professor titular da Universidade de Coimbra, é hoje conhecido como um dos principais, senão o principal intelectual da língua portuguesa na área de ciência sociais. Entre seus diversos livros, dois deles, publicados recentemente no Brasil, merecem destaque: Pela Mão de Alice e A Crítica da Razão Indolente. Nascido em Portugal, Boaventura teve a sua trajetória intelectual intimamente ligada ao Brasil. Desde a pesquisa sobre pluralismo legal feita nas favelas do Rio de Janeiro nos anos 70 às suas constantes visitas a Porto Alegre para estudar o orçamento participativo, o país sempre esteve associado às preocupações do autor. Atualmente, o professor Boaventura está envolvido em uma pesquisa sobre a reinvenção da emancipação social. Para ele, existe no mundo atual uma enorme dissociação entre a experiência e a expectativa. Cada vez temos experiências mais avançadas nas áreas de democracia participativa, produção alternativa e multiculturalismo, entre outras. No entanto, nessa última modernidade, os indivíduos desistiram de associar experiência com expectativa de mudança social. A grande sensação, nesse período pós-muro de Berlim, é a do desperdício da experiência. Boaventura acredita que é possível reconstruir a idéia de emancipação social justamente a partir de experiências bem-sucedidas em áreas como produção alternativa e democracia participativa. Para ele, essas experiências estão localizadas nos países do sul e precisam ter os seus elementos emancipatórios explicitados e conectados. Nessa entrevista à Teoria e Debate, o professor Boaventura explica a sua trajetória intelectual e trata da questão da reinvenção da emancipação social.
Como você descreveria a sua trajetória intelectual e o papel do Brasil e da política brasileira no seu desenvolvimento?
A minha trajetória, como a de muita gente da minha geração, é um bocado heterodoxa, à medida que nasci num período em que Portugal vivia sob uma ditadura. Aliás, uma grande parte da minha vida foi sob a ditadura. Eu militava no movimento católico progressista, que era extremamente reprimido. Fiz Direito em Coimbra, depois fui estudar Filosofia na Universidade de Berlim Ocidental. Regressei a Portugal e fui para o Estados Unidos em 1969. Aí, fiz uma viragem para a Sociologia. Especializei-me em Sociologia do Direito. Nesta altura, surgiu uma oportunidade de fazer um doutoramento na Universidade de Yale, por meio de um trabalho na América Latina e optei pelo Brasil. Os meus dois avós tinham imigrado para o Brasil. Conhecia desde pequenino o que era este país por meio de meu avô, que ajudou a instalar as linhas de bonde do Rio e que me falava sempre no grande presidente Vasigton Luís (risadas). Durante muitos anos, não sabia que era Washington Luís.
Vim para o Rio, disposto a viver numa favela e realizar minha pesquisa, uma tentativa de estabelecer uma alternativa à Antropologia, que, nesta época no Brasil, era basicamente americana e estava polarizada entre duas posições: a dos que achavam que os favelados eram todos bandidos, faziam parte de um sistema de ilegalidade, e a que romantizava as favelas como sendo uma grande alternativa habitacional e que achavam que devíamos promovê-las. Eu queria estabelecer uma outra explicação, mostrando que a favela não era o paraíso mas também não era o inferno, era uma sociedade em que as pessoas em situação de extrema pobreza procuravam uma vida digna. Era inimaginável nesta época para os brasileiros que um português viesse fazer pesquisa sociológica, porque pesquisa era feita por americanos. Português vem ao Brasil para fazer comércio, não é? E quando eu chegava na favela, perguntavam: "afinal, qual é o seu negócio? É secos e molhados, a gente ajuda, é sorvete?" Eu respondia: "não, eu quero mesmo é fazer uma pesquisa".
A minha formação teve aí o grande salto, a minha grande radicalização ocorreu nessa altura. Estudei em Yale quatro anos, no período da grande mobilização estudantil contra a guerra do Vietnã. Adquiri uma consciência marxista, como dizia José Martí, "nos intestinos do monstro". Foi nos EUA, com a Guerra do Vietnã e, depois, com as favelas do Rio. Essas foram para mim as grandes escolas de vida. Morei durante meio ano num barraco na favela do Jacarezinho porque queria ver como funcionava. Era 1970, estávamos sob ditadura, e havia nesta época a luta clandestina, o Partido Comunista, os grupos do Brizola, as associações de moradores. Todo o meu trabalho foi feito à volta dessas associações de moradores. Foi aí que eu conheci um pouco a realidade, o outro lado que eu não tinha visto, o lado da miséria, da exclusão, das condições horríveis em que se vivia. Fiz a tese e, para não identificar as pessoas e não causar nenhum problema aos meus amigos que tinham ajudado na pesquisa, pus um nome fictício, “Direito de Pasárgada”, título inspirado no poema de Manuel Bandeira. Durante muito tempo ninguém soube que era na favela Jacarezinho, havia alguma dúvida, uns diziam que era a Rocinha, outros, Jacarezinho.
Como foi a sua relação com o marxismo e com o processo político português? De que maneira eles influenciaram o seu pensamento?
Abandonei a minha ligação com o movimento católico já antes de ir para Berlim Ocidental, porque a Igreja Católica em Portugal, ao contrário da brasileira, era muito conservadora, muito reacionária. Havia um bispo, do Porto, que era razoavelmente progressista, mas Salazar o exilou para o Vaticano. Continuei a dar algum apoio a certas causas progressistas católicas que sempre me motivaram. Por exemplo, fui membro da Comissão Nacional da candidatura da Maria de Lourdes Pintassilgo, uma engenheira que foi ministra de um governo provisório em Portugal, depois da Revolução. Ela era ligada ao movimento católico e foi candidata à Presidência da República. Por ser mulher e católica progressista bastante avançada, apoiei sua candidatura. Tivemos 7% dos votos.
Quanto ao socialismo, tive a sorte, digamos, de ver um pouco o socialismo real na Alemanha Oriental. Este socialismo nos anos sessenta era extremamente punitivo. Eu próprio ajudei a fuga de estudantes de Berlim Oriental para Berlim Ocidental. Nós, que atravessávamos o muro quase todos os dias, às vezes acumulávamos pilhas de livros, que, por vezes, até serviam de estantes, de mesas. Éramos muito bombardeados com toda bibliografia marxista, que recebíamos gratuitamente: as obras completas de Lenin, de Marx, de modo nenhum Trotski, que do lado de lá nunca aparecia. Portanto, esta minha primeira experiência com o chamado socialismo real foi matricial para a minha compreensão do processo que viria acontecer depois.
Como, então, você viu o fim do comunismo?
Para nós, na Europa, foi uma morte um bocado anunciada. Em Portugal, tivemos outras vivências de socialismo que tiveram a ver com a descolonização, porque nas zonas de influência da língua portuguesa deu-se um grande ressurgimento do movimento socialista e do marxismo por meio dos movimentos de libertação nacional. Todos nós tínhamos amigos nos movimentos de libertação de Moçambique, Angola, Guiné Bissau, onde se fazia uma produção teórica notável. Estes movimentos trouxeram para o centro da revolução portuguesa um marxismo diferente, mais aberto, ligado às lutas de libertação. O marxismo acabou por ser muito importante em Portugal depois da revolução. Não apenas por via do Partido Comunista. O Partido Socialista já tinha abandonado o marxismo, mas tivemos outras organizações trotskistas, maoístas, muitas outras que se desenvolveram naquele período da revolução. E foi um período extremamente rico de debates, sobretudo em um grande movimento político no qual se localizaram quase todos os intelectuais portugueses da época, chamado Movimento de Esquerda Socialista (MES), com muitas influências de Rosa Luxemburgo, da tradição conselhista etc. A evolução desta esquerda foi muito interessante e são remanescentes desta tradição que hoje sustentam em Portugal uma política de esquerda. Na década de 80, houve a possibilidade de se unir várias tendências, a Democracia Proletária, que era maoísta, os trotskistas e aquilo que se chamava Política 21, que era o que talvez descendesse mais diretamente do MES. E estas tendências fundaram um grupo de esquerda que atualmente impulsiona o bloco parlamentar mais ativo, mais criativo da Europa.
Assim, a lógica do desenvolvimento político da esquerda em Portugal foi interna. Claro que a partir do final da década de oitenta tudo mudou. O comunismo da União Soviética estava a bloquear toda a criatividade marxista. Estava bloqueada de uma maneira político-doutrinária, à medida em que a primeira coisa que um marxista tinha que fazer era se posicionar em relação à União Soviética. O que era muito difícil, pois sabíamos que havia coisas positivas na URSS, que ninguém podia pôr em discussão, notadamente os chamados direitos econômicos e sociais, à saúde, à seguridade social. Os próprios russos, os ucranianos, os húngaros, os polacos já não ligavam muito para isso, porque achavam que aquilo era garantido para sempre pelo Estado. E, portanto, toda a lógica dos movimentos do Leste, desde o Solidariedade na Polônia, era por direitos cívicos e políticos. Claro, o que eles não sabiam era que o modelo de sociedade que passaram a adotar ia imediatamente questionar os direitos econômicos e sociais. Isso explica o fato de, poucos anos mais tarde, os partidos comunistas que tinham estado no poder voltarem por via eleitoral para o governo.
Em termos da construção das alternativas para o século 21, acho que o regime da União Soviética pertence ao século 20. A URSS nunca foi um país desenvolvido de fato, foi uma ilusão nossa pensarmos que estava em pé de igualdade com os EUA. Política e militarmente estava, mas economicamente não era a mesma coisa desde os anos 60. Claro que o colapso da URSS teve duas conseqüências contraditórias: por um lado, veio confirmar que o capitalismo era a única alternativa enquanto modo de produção para o mundo contemporâneo; por outro, veio libertar uma série de energias teóricas e políticas para novas utopias de emancipação social. Não imaginaríamos o Fórum Social de Porto Alegre no período da Guerra Fria. Não seria possível a congregação de pessoas e de movimentos que tivemos em Porto Alegre. porque realmente os campos estavam demarcados. Hoje, já começa a haver a possibilidade de se pensar em termos de alternativas ao próprio capitalismo. Não é ainda uma coisa muito mais que embrionária, mas está em curso e tem muita criatividade. Penso que isso só foi possível exatamente porque não há um modelo alternativo fixo. Há programas, há horizontes.
Como você entende o conceito da transição paradigmática? Que papel isso tem em seu pensamento?
O meu pensamento neste aspecto é marxista. O capitalismo não existiu sempre e nem é eterno. Ele não é apenas um modo de produção, é uma civilização, é um processo civilizacional bastante longo e profundo. Mas o momento em que o capitalismo mostra o seu apogeu é quando começa a mostrar sinais de fraqueza. E esta transição vai se dar, seja em nível do próprio capitalismo enquanto projeto civilizacional, seja a nível do conhecimento. Portanto, a transição paradigmática tem duas dimensões na minha análise. Uma é epistemológica, tem a ver com o conhecimento. A própria ciência moderna, desde o século 19, está a serviço do desenvolvimento capitalista. Ela tem, de alguma maneira, que recuperar uma autonomia, transformar o conhecimento de maneira a torná-lo menos elitista, mais ativo, mais envolvido nas questões de cidadania e menos dependente dos programas e das necessidades do capitalismo. Penso que este modelo civilizacional do capitalismo tem os seus dias contados. Fundamentalmente porque até agora a maneira como ele venceu as suas crises foi aprofundando a mercadorização, sujeitando, portanto, à área de mercado e à área de valor bens que anteriormente não estavam sujeitos a este valor. Neste momento, estamos atingindo o paroxismo deste processo com as privatizações e com muitos outros movimentos. A manifestação mais recente e mais perversa dessa dinâmica refere-se ao espectro eletromagnético, às freqüências de rádio por meio das quais funcionam a televisão, os celulares, os laptops, a internet. Como se sabe, são freqüências a um espectro eletromagnético que pertencem aos Estados Nacionais e que são alugados às empresas. E neste momento, as empresas multinacionais a quem o Estado aluga esse espectro eletromagnético querem que o Estado o venda definitivamente a elas, para depois venderem aos mercados secundários. O que significa que as empresas de comunicação vão qualquer dia ter a propriedade do espectro eletromagnético das radiofreqüências. Significa que a comunicação ficaria na mão de meia dúzia de multinacionais de comunicação e informação. Portanto, isso é um paroxismo que pode e vai levar a uma crise.
De que espécie de crise você está falando?
Quando falamos de crises do capitalismo, muitas vezes as pessoas não acreditam porque pensam que estamos prevendo crises que nunca ocorrem e que afinal o capitalismo sempre vence. Mas penso que a sujeição à mercadorização está para atingir seu limite. O continente que falta plutonizar é a África. De resto, praticamente o mundo inteiro está como nunca sujeito à lei do capital. Pela primeira vez, a metade da população mundial vive em cidades. Estamos hoje a caminhar para um mundo cada vez mais urbano, cada vez mais mercantilizado e onde, portanto, a plutonização pode atingir os seus níveis máximos. E este é o grande debate neste momento. É preciso saber se isto é uma crise final ou é uma crise de ciclo. A questão está em saber efetivamente se este horizonte civilizacional não está chegando ao fim. Não temos pensado outra coisa que não seja mudar de padrões dentro do capitalismo global, mas sou daqueles utópicos que pensam que precisamos de outro modelo de civilização. O modelo capitalista está destruindo as possibilidades de o trabalho ser um fator de inclusão social. Isto significa que os processos de exploração atingem o máximo de virulência e conflito. Por outro lado, o conflito entre o capital e a natureza se aprofunda por meio da degradação ecológica. Parece que estamos numa situação de crise final. Mas, é claro, isto está sujeito a todas as especulações contrárias, igualmente legítimas. Para mim, o importante é alimentar e dar credibilidade às alternativas de civilização que estão em curso. Eu não quero perder o futuro. O marxismo é absolutamente fundamental para explicar a sociedade em que vivo. Não é muito importante para dizer para que sociedade eu vou. Porque acho que nunca soubemos prever o futuro, nós vivemos em sociedades complexas, caóticas.
O que mais me chama a atenção nesse esforço de elaboração de uma nova cultura emancipatória é exatamente ela se colocar a partir de uma problemática civilizacional, como era típico de certos marxismos. E, ao mesmo tempo que se coloca uma problemática no plano da tradição intelectual ocidental criada no Norte, você faz um esforço de incorporar experiências que estão emergindo no Sul. Isto está ligado ao fato de Portugal ser um lugar entre o Norte e o Sul?
O marxismo e o liberalismo pertencem-se mutuamente muito mais do que a gente pensa. E eles representam diferentes maneiras da crise no pensamento eurocêntrico do Norte. Eles representam muito do modelo civilizacional que nasceu da Europa e que viveu uma expansão colonial e, depois, uma expansão imperial. Por exemplo, a maneira como o Marx olhou para o colonialismo na Índia, me dá vergonha hoje como marxista, porque, no fundo, para ele, era a civilização que estava chegando à Índia. Temos hoje um outro registro, quando sabemos que a Índia tinha um rendimento per capita que era metade do da Inglaterra quando os ingleses chegaram e que, poucos anos depois, estava com algo em torno de vinte vezes menos. Foi um processo de destruição massiva que o colonialismo produziu, não a grande modernização em relação à barbárie.
Então, estamos numa fase totalmente nova e é preciso, como eu digo em Crítica da Razão Indolente, aprender com o Sul. Isto é, cada vez mais chegamos à conclusão de que a Europa e os EUA são um pequeno rincão, onde não só se reproduziram experiências extremamente destrutivas em termos de genocídio, mas também de destruição do conhecimento. Estas teorias, estes conhecimentos produzidos não têm hoje capacidade para nos transportar para o século 21. Eles foram importantes, eles representaram todo um ciclo. Mas hoje precisamos de outros conhecimentos, e esses vêm do Sul, vêm de todos esses povos que sofreram o colonialismo e o imperialismo, que produziram saberes importantíssimos, mas que ficaram completamente esquecidos. Você tem razão quando fala da minha condição de português. Portugal, como país semiperiférico, foi sempre isto, colonizador e colônia ao mesmo tempo. Sendo o sul do Norte, talvez sejamos também o norte do Sul, há esta interface que é importante descobrir.
Como você vem desenvolvendo esses estudos?
O projeto de pesquisa que estamos realizando envolve seis países: Brasil, Colômbia, Portugal, Índia, Moçambique e África do Sul. Estamos procurando identificar novas formas de conhecimento. Temos ainda um subprojeto chamado "As vozes do mundo", no qual estamos entrevistando ativistas dos movimentos sociais. Precisamos cada vez mais trazer para as ciências sociais estes conhecimentos alternativos dos ativistas sociais. Estamos captando experiências, sobretudo nos países de desenvolvimento intermediário, pois nestes as contradições entre a globalização neoliberal e a globalização alternativa ou contra-hegemônica, que estamos a tentar promover – Porto Alegre é neste momento o símbolo desta globalização alternativa –, afirmam-se de modo mais evidente. Porque os países do Norte se beneficiam da globalização neoliberal e olham com certo cinismo as alternativas. Os países menos desenvolvidos estão à mercê da ajuda externa, estão endividados. Em países como Senegal, Malásia, Uganda, Angola, mais de 50% do orçamento público vai para o pagamento de dívidas externas. Estão de joelhos. 80% do orçamento de Moçambique é de ajuda externa. Como estes países podem oferecer alternativas? Ao contrário, os países de desenvolvimento médio podem ter alternativas. Na verdade, as têm surgindo neles. Países como o Brasil, a Índia, a África do Sul, com desenvolvimento médio e grande população, podem ter uma alternativa. Não isoladamente, pois esta tem sido exatamente a estratégia suicida do Brasil. Sendo um país de desenvolvimento médio muito grande, seus governantes pensam que podem ter tratamento preferencial por parte do centro, mas isso não é possível. E, ao contrário, consegue ser um bom aluno por meio da aplicação completamente radical da globalização neoliberal. Eu passo a metade do ano nos EUA e estou convencido de que não há uma idéia nova em ciências sociais que venha de lá. Nós podemos aprofundar, podemos tornar muitas sofisticadas as nossas análises, mas as idéias inovadoras não vêm de lá neste momento.
Por que isso acontece?
O sistema da organização do conhecimento, o sistema disciplinar, a competição entre as faculdades, que os brasileiros também têm de alguma maneira, estão eliminando a criatividade. São países com boas condições para a gente trabalhar, mas a gente tem que trazer a inovação de fora. O grande exemplo são os indígenas. Quando se fundaram as Nações Unidas, somente a Bolívia afirmou ter minorias étnicas. Nenhum outro país reconheceu que tinha minorias étnicas. Hoje, o movimento mais pujante no continente é o indígena. Obviamente, é um movimento que apresenta outra concepção dos direitos humanos, tenta encontrar formas de conhecimento que podem ser defendidas contra a pilhagem das multinacionais, que é a biodiversidade.
Você fala de uma sociologia da ausência, da capacidade de contar com o que não existe. Nós, da esquerda, seremos capazes de, contra a ansiedade do realmente existente, contra a ansiedade de uma política de resultados, permanecermos fiéis a uma utopia do que não há?
Esta questão é central, sobretudo porque estamos em um contexto político em que as forças de esquerda, não tendo à sua disposição um modelo de revolução como grande alternativa ao capitalismo, não podem partir da carência e da incompatibilidade, que era o que permitia a revolução. A revolução permitia pensar o que não existe, pensar de uma maneira grandiosa e acabada e criar uma energia mobilizadora para a levar a cabo. Hoje, não temos isso e, portanto, no fundo a própria questão entre a compatibilidade entre as nossas lutas com o capitalismo é realmente uma questão inversa. Não havendo paradigmas revolucionários, todas as lutas da esquerda são pensadas a partir da compatibilidade com o capitalismo. Esta compatibilidade é necessária como ponto de partida, mas não de chegada. A minha idéia é de que essa sociologia das ausências é algo que tem que ser construído à medida que avança esta luta dentro do que é possível numa sociedade capitalista. O nosso grande objetivo é tornar o mundo menos confortável para o capitalismo. Isto é, aprofundar a democracia não apenas a nível político, mas nas fábricas, nas famílias, nas ruas, nas universidades, em todo lugar. Há de haver um momento em que esta democratização aprofundada entrará em linha de choque frontal com o capitalismo. Ora bem, como esta democracia se afirma? Numa linha extremamente ambígua para os líderes políticos e para os movimentos sociais. É que, por um lado, é necessário que eles apresentem resultados melhores do que os dos outros. Portanto, tudo parece militar contra uma sociologia das ausências. Porque uma sociologia das ausências é aquilo que não há. Ora, aquilo que não há, se não for possível transformá-lo numa agenda, significa fracasso para o líder político. Portanto, o líder político tem uma tendência natural de, estando no jogo parlamentar e eleitoral, apresentar o que há: resultados. Com o orçamento participativo conseguimos isto, conseguimos aquilo, e, portanto, esta idéia da reificação das conquistas é um grande problema. Isto é um dilema, porque de maneira nenhuma eu iria dizer que esta política de resultados é negativa em si mesma. Pelo contrário, de outra maneira não é possível fazer avançar a esquerda. Agora, o que a esquerda tem de saber é que os partidos são apenas um dos lados desta política, o outro lado são os movimentos sociais que têm que ter autonomia, pois no momento em que eles deixarem de tê-la, terminamos com toda a política inovadora de esquerda. São eles a consciência do que não há. Eles não estão sujeitos ao ciclo eleitoral, eles querem resultados para as suas comunidades, mas têm capacidade de transformar suas reivindicações em coisas cada mais avançadas. Hoje, por exemplo, em Porto Alegre, as pessoas têm infra-estrutura e, quando se tem infra-estrutura, querem atividades culturais e outras coisas. E o governo vai dizer que não há verbas para tudo isto, mas as pessoas vão fazendo opções. E esta tensão é exatamente o que chamo de uma sociologia das ausências, isto é, uma dinâmica que leve a aumentar as expectativas.
Desde há cerca de 150 anos, a sociedade moderna vive de uma discrepância entre expectativas e experiências. Na sociedade antiga, as experiências da vida coincidiam com as expectativas. Isto é, quem nascia analfabeto morria analfabeto, quem nascia nobre morria nobre, quem nascia pobre morria pobre. Com a sociedade moderna, sobretudo a partir do século 19, quando se instituiu o Estado liberal, por meio do velho conceito do progresso, criamos discrepâncias entre as experiências e as expectativas. As experiências são medíocres, mas as expectativas são altas. Quem nasce pobre pode morrer rico; sou camponês analfabeto, mas meu filho pode morrer doutor. Qual foi a lógica da esquerda? Foi ampliar a discrepância entre o que havia, que eram as experiências, e as expectativas. Qual era a grande diferença entre a esquerda reformista e a revolucionária? Toda a esquerda se constituiu entre experiências medíocres e expectativas brilhantes. As manhãs radiantes do socialismo para a esquerda revolucionária e o Estado de Providência para a reformista. Qual é a situação hoje? É que nós, desde 1989, mais ou menos, invertemos, pela primeira vez na mentalidade ocidental, esta dinâmica. Temos hoje uma discrepância, mas ela é negativa em relação às experiências para a esmagadora maioria da população mundial. Isto é, para quem tem emprego e o perde, a expectativa é que o novo emprego seja pior. Quando se vê no jornal uma reforma da seguridade social, temos certeza de que é para pior. Então, a esquerda foi obrigada a defender o status quo. Se a experiência é menos negativa que a expectativa, a esquerda tem que defender o que há. Mas a esquerda nunca foi boa em defender o status quo. Temos que ter uma pressão social por trás dos partidos, que vem das organizações que não estão sujeitas à lógica eleitoral, para manter exatamente a pressão em favor daquilo a que a gente tem direito.
Você tem toda uma teoria das seis áreas que seriam fundamentais para a construção de um pensamento emancipatório. Fale-nos um pouco sobre o que seriam essas áreas?
Hoje não há condições de pretender atribuir em abstrato a prioridade total nas lutas sociais a um determinado movimento, seja ele operário, ecológico, feminista, ou indígena. Outra coisa diferente é indicar lutas prioritárias que podem ser assumidas por todos esses movimentos. Todas as seis áreas interessam a todos os movimentos.
A primeira área é a questão da democracia. Perdeu-se hoje a tensão entre o capitalismo e a democracia, que era característica da modernidade. Nesta, as lutas pela inclusão foram lutas pelos direitos, e estes, a certa altura, implicaram redistribuição social. A redistribuição é totalmente hostil ao capitalismo, este nunca a fez voluntariamente. Foi uma luta dura do movimento operário e dos outros movimentos para conseguir a distribuição. E criou-se uma tensão entre a democracia e o capitalismo. No momento atual, a democracia não é só compatível (OU INCOMPATÍVEL?) com o capitalismo, como é o outro lado do capitalismo. Isso porque exatamente está a perder as suas capacidades redistributivas. Este modelo de democracia liberal representativa está nesse momento perdendo a sua credibilidade, já estamos numa segunda fase. Depois dessa onda de “democratização”, na década de oitenta, está se evidenciando que essas democracias não funcionam efetivamente. O que se passa na Rússia nesse momento não é uma democracia, de maneira nenhuma. É um governo eleito mas o poder central tem muito pouco poder. Nas democracias africanas acontece o mesmo. Em Moçambique, temos talvez o melhor exemplo: adversários são mortos se falam demais e, no entanto, há partidos e eleições. Por outro lado, precisamente por causa da iniciativa de partidos de esquerda, como o PT no Brasil e o Partido Comunista na Índia, há o surgimento de formas mais ricas e autênticas de democracia. A grande luta será entre esses dois modelos de democracia, a de baixa intensidade, a que temos, e outra ausência, que é exatamente uma luta por democracias de mais altas intensidades, democracias tipo participativas. Em Porto Alegre, em Belo Horizonte, em Kirela,(CHECAR NOME COM ZÉ CORREIA) na Bengala Ocidental, há formas interessantes de colaboração entre democracias representativas e democracias participativas.
A segunda grande área são os sistemas alternativos de produção. A esquerda, exatamente devido a uma influência no meu entender negativa do marxismo, não deu grande atenção a movimentos de produção alternativa, nomeadamente as cooperativas. Ora, estamos a assistir hoje a uma grande reinvenção, às vezes por necessidade de sobrevivência, de movimentos cooperativos. São cooperativas que estão produzindo bens, segundo uma lógica não capitalista. A grande característica do que eu chamo de organizações econômicas populares, que existem cada vez mais neste país, é que não olham apenas para o econômico, mas para a cultura, para a política. Por exemplo, aquela maravilhosa cooperativa de reciclagem de lixo, em Porto Alegre, a de Belo Horizonte ou os recicladores de papel de Bogotá. Há também uma alternativa para o comércio justo, que é uma luta para que os bens que circulam pelo mercado mundial sejam produzidos a um salário justo, em condições ambientais dignas, com liberdade sindical etc. Nesse momento, o comércio justo abrange cerca de 9% do mercado mundial. Podia citar também a experiência das mutualidades, dos microcréditos. Tudo isso são iniciativas que começam a ter algum significado e é nossa obrigação, dentro da esquerda, dar a elas cada vez mais amplitude.
A terceira grande área é a do multiculturalismo e da cidadania multicultural. O marxismo, como o liberalismo, só conheceu a igualdade, não conheceu a diferença. Só soubemos criar solidariedade entre iguais, por exemplo, entre trabalhadores, mas e entre trabalhadores e mulheres? Entre trabalhadores e índios? Trabalhadores e homossexuais? A nossa lógica não soube realmente criar equivalência entre o princípio de igualdade e o da diferença. Isto é difícil. Mas, as pessoas não querem apenas ser iguais, também querem ser diferentes, há áreas em que a gente quer ser igual, mas em outras não. Essa equivalência dos dois princípios vai levar ao conceito de cidadania multicultural, que começamos a ter com as minorias étnicas, os povos indígenas, o movimento negro. As pessoas querem pertencer, mas querem ser diferentes. É necessário um multiculturalismo que crie novas formas de hibridização, de interação entre as diferentes culturas. Cada cultura é que deve definir até onde quer se integrar.
A quarta grande área é a biodiversidade. É a grande área do futuro, este é o grande conflito. Temos dois conhecimentos rivais, o conhecimento que os indígenas e os camponeses têm acerca das propriedades curativas das plantas e o apetite das empresas multinacionais para identificarem essas plantas, processarem os seus princípios ativos, patenteá-los e, assim, quando os camponeses, os indígenas e todos nós precisarmos daquele produto para diarréia, para dor de cabeça, teremos de pagar por ele. Mas se a multinacional não tiver a ajuda do xamã, do sábio daquela etnia para dizer "essa erva é boa para isso, aquela é boa para aquilo", ela nunca chega a lugar algum. Portanto, o conhecimento tradicional é absolutamente crucial. Mas tem que ser valorizado e protegido. Qual é o papel dos Estados nesse momento? Por exemplo, o Brasil tem uma política de biodiversidade, em meu entender, completamente negativa porque está pretendendo digitalizar a biodiversidade. Essa propriedade digitalizada seria depois processada e poderia, portanto, ser objeto de patente. O problema é que este tipo de conhecimento tradicional, das comunidades, das pessoas, não pode ser digitalizado.
A quinta área é o novo internacionalismo operário. Como sabemos, não foram os operários que se internacionalizaram, mas o capital que se globalizou. Durante muito tempo, a Guerra Fria impediu uma internacionalização. Havia as duas grandes centrais do movimento sindical internacional, a Federação do Sindicato Livre e a Federação Mundial dos Sindicatos, uma pró-capitalista e outra comunista. Mas esse tempo passou, estas instituições ainda existem, mas estão moribundas. O que está em curso são as novas iniciativas sindicais, quer no âmbito da União Européia, quer no âmbito do Mercosul, quer no âmbito do Nafta. Neste momento, os sindicatos americanos e canadenses estão realizando ações e alianças extremamente interessantes com sindicatos mexicanos, nomeadamente com uma das frentes do trabalho autêntico, que é uma frente de esquerda que não está ligada ao PRI. Há aí uma grande energia, uma das melhores iniciativas estudadas em nosso projeto é a chamada iniciativa do sul para os sindicatos em nível internacional, a Sictur, uma aliança entre sindicatos, entre a CUT do Brasil e sindicatos da África do Sul.
A sexta área, finalmente, é a questão da comunicação e da informação. Essa área é de grande concentração de poder entre o Norte e o Sul, na qual vai se dar uma grande luta. Porque se realmente se chegar à privatização dos espectros eletromagnéticos, o mundo e a comunicação do ciberespaço passará a depender de três ou quatro empresas, que comercializarão com certas vantagens o espaço. Se olharmos, por exemplo, para o ciberespaço do mundo, a África como continente desaparece completamente. Os mapas da internet, por exemplo, dos sistemas eletrônicos são assim: a África é um bocadinho da África do Sul e um bocadinho do Egito e Marrocos. O resto não existe. Ora bem, se se privatizar o espectro eletromagnético será o fim. Portanto, é fundamental uma luta por meios de comunicação alternativos democráticos.
Estas são grandes lutas nas quais, penso, os movimentos sociais vão estar envolvidos nas próximas décadas.
O Brasil é ainda um país que não se realizou enquanto um projeto de nação emancipada. Há uma idéia de que a construção do Brasil enquanto uma verdadeira nação só se dará quando se combinar uma construção ao mesmo tempo política, econômica, social e cultural.
Esta questão é muito importante porque muitos países estão passando pelo mesmo problema. Houve autores fundamentais para a interpretação do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Florestan Fernandes. Foram os grandes intérpretes do Brasil no momento em que se podia entrever a criação de um projeto nacional. Este projeto foi também uma criação intelectual, de alguma maneira. O problema é que a própria ditadura começou a destruir este projeto nacional, por meio de um projeto de modernização que não tinha nada a ver com a idéia de nação. Ao mesmo tempo que modernizava, destruía toda a institucionalidade por meio da qual a nação podia se afirmar, participando de um projeto. Não há projeto nacional sem a nação. Ora, o que a ditadura fez foi modernizar, mas sem a nação. Pode parecer um bocado provocativo, mas é isso exatamente o que penso: há uma continuidade com a ditadura neste momento. Isto é, houve rupturas importantes na transição democrática, mas até agora não foi possível repor a idéia de um projeto nacional. Porém, não é possível recriá-lo nos mesmos termos postos em 1930. A questão complexa para a esquerda é de como formular um projeto nacional em um período pós-nacional. Agora não se pode pensar o Brasil sozinho. Veja a carência que há de pensamento continental no Brasil. Os grandes intérpretes do Brasil pouco trataram a questão do continente. Não tivemos aqui um José Martí, nem um Sarmiento, nenhum Mariátegui.
Temos o Manuel Bonfim...
É o único.
O Darci Ribeiro também...
O Darci Ribeiro, na sua fase final. Mas fora os dois não houve. Porque o Brasil é, ele próprio, um continente. Vejo cada vez mais os países, neste momento, sujeitos à globalização neoliberal, sem capacidade criativa, desvalorizando as suas especificidades e não conseguindo imitar o que os outros fazem. Não sou contra projetos nacionais de maneira nenhuma, o que penso é que os projetos nacionais agora têm que ser feitos no âmbito continental, pós-nacional.
Mas você acha que ainda há um lugar para o Estado-Nação?
O Estado é hoje mais importante do que nunca. O Estado organiza a globalização, os blocos regionais. Quem esteve no Québec? Estiveram lá os empresários, estiveram lá os sindicatos? Não, estiveram lá os governos. Quem esteve no Mercosul? Quem anunciou a União Européia? O próprio Estado é um princípio ativo na globalização neoliberal e, neste momento, o Estado-Providência que havia na Europa – e era um Estado-Providência dos cidadãos – é hoje um Estado de Providências das empresas. Nunca se viu tanto dinheiro a fundo perdido de investimentos para as empresas se instalarem. O Estado continua a ser um articulador fundamental, mesmo quando privatiza. O Estado organiza as privatizações e vai ter que organizar a regulação, porque os serviços, a não ser que haja uma convulsão política muito grande dentro de um sistema democrático, têm que ter uma certa regulação. A chamada meta-regulação pertence ao Estado. Portanto, não pensemos que ele deixou de ser importante ou é uma instituição obsoleta.
Até os anos setenta, a esquerda pensava que o Estado-Previdência era uma artimanha do capitalismo, isto é, que ele havia criado as políticas sociais para manter os operários mais ou menos contentes e mais ou menos resignados para continuar a sua lei de acumulação. Outra corrente afirmava o contrário, que os direitos sociais e econômicos dos trabalhadores foram conseqüências de lutas e não existiriam sem elas. A minha idéia é que eles foram fruto de muita luta. Por isso, digo: seria o maior erro da esquerda pensar que o Estado não é importante e que deve ser abandonado.
* José Maria Cançado é crítico literário; Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG; Leonardo Avritzer é professor de Ciência Política da UFMG; Patrus Ananias é advogado e foi prefeito de Belo Horizonte

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