O surgimento do capitalismo... alguns fatos importantes
Os cercamentos na Inglaterra
Os cercamentos na Inglaterra foram um processo histórico fundamental para a transição do feudalismo para o capitalismo. Esse fenômeno ocorreu entre os séculos XV e XIX e consistiu na apropriação de terras comunais e camponesas pela nobreza e pela burguesia emergente, resultando na expropriação de milhares de camponeses. Essa transformação alterou profundamente a estrutura econômica e social da Inglaterra e teve um impacto significativo na consolidação do capitalismo moderno.
Durante o período medieval, a maior parte das terras era de uso comum, permitindo que os camponeses cultivassem e criassem animais para sua subsistência. No entanto, com o aumento da demanda por lã e a expansão do comércio, a nobreza começou a cercar essas terras para utilizá-las na criação de ovelhas, um setor altamente lucrativo na época. Esse processo foi acelerado pela promulgação de leis de cercamento, que legitimaram a apropriação privada das terras comunais.
A expropriação dos camponeses teve diversas consequências sociais e econômicas. Muitos perderam seu sustento e foram forçados a migrar para as cidades em busca de trabalho, alimentando a crescente classe trabalhadora industrial. Isso criou um excedente de mão de obra disponível para as manufaturas emergentes, um dos fatores essenciais para a Revolução Industrial. Além disso, a concentração da terra nas mãos de poucos proprietários consolidou a economia de mercado e aprofundou as desigualdades sociais.
As Leis Contra a Vadiagem e o Controle da Mão de Obra
Além dos cercamentos, outro fator determinante para a consolidação do capitalismo foi a promulgação das leis contra a vadiagem. Com um grande número de camponeses expropriados e sem meios de subsistência, muitos passaram a vagar pelas cidades em busca de trabalho. Para controlar essa população e garantir a disponibilidade de mão de obra para o novo sistema industrial, o Estado inglês implementou leis severas contra a vadiagem. Essas leis criminalizavam aqueles que não possuíam emprego fixo, forçando-os a aceitar qualquer trabalho disponível, muitas vezes sob condições extremamente precárias.
A Lei dos Pobres de 1531 e a Lei da Vadiagem de 1547 são exemplos dessa repressão legal. As punições para os considerados "vadios" eram severas, incluindo espancamentos, servidão forçada e, em casos extremos, a pena de morte. O objetivo era claro: transformar os camponeses expropriados em trabalhadores assalariados disciplinados, prontos para abastecer a nascente economia industrial. Esse processo foi fundamental para consolidar a transição para o capitalismo, pois eliminou formas alternativas de subsistência e reforçou a dependência dos indivíduos em relação ao trabalho assalariado.
A repressão contra os "vadios" não se limitava a meras medidas de controle social; ela se inseria no contexto da acumulação primitiva do capital. Marx destacou que, para que o capitalismo pudesse emergir, era necessário criar um contingente de trabalhadores sem outra opção de sobrevivência além da venda de sua força de trabalho. As leis contra a vadiagem, portanto, desempenharam um papel essencial ao forçar a população expropriada a aceitar condições de trabalho extremamente exploratórias.
A Caça às Bruxas e a Destruição das Estruturas Comunitárias
Outro elemento fundamental no contexto da transição para o capitalismo foi a caça às bruxas, um fenômeno que se intensificou entre os séculos XV e XVII. A perseguição às mulheres acusadas de bruxaria esteve profundamente relacionada à reestruturação econômica e social imposta pelo avanço do capitalismo. Silvia Federici, em sua obra "Calibã e a Bruxa", argumenta que a caça às bruxas teve um papel crucial na destruição de formas comunitárias de vida e na imposição de novas relações de trabalho. Muitas das mulheres perseguidas eram camponesas, curandeiras e parteiras que representavam um obstáculo à lógica capitalista, pois estavam associadas a práticas coletivas de cuidado e economia moral, incompatíveis com a nova ordem mercantil.
O ataque às mulheres também estava ligado ao controle da reprodução e à disciplinarização da força de trabalho. O capitalismo emergente exigia um crescimento populacional para abastecer os centros industriais com trabalhadores, e a caça às bruxas ajudou a impor um modelo patriarcal de família, onde as mulheres eram subordinadas aos homens e encarregadas do trabalho reprodutivo não remunerado. Assim, a caça às bruxas não foi apenas um fenômeno supersticioso, mas sim uma estratégia política e econômica para consolidar o capitalismo.
A caça às bruxas pode ser entendida, dentro da lógica marxista, como parte do processo de acumulação primitiva. Assim como os cercamentos expropriaram os camponeses de suas terras e as leis contra a vadiagem os forçaram a aceitar o trabalho assalariado, a perseguição às mulheres rompeu formas de organização econômica que poderiam oferecer resistência ao modelo emergente. Além disso, ao reprimir as mulheres e reforçar o patriarcado, a caça às bruxas garantiu a criação de um modelo de reprodução da força de trabalho essencial ao funcionamento do capitalismo industrial.
O processo de colonização
Karl Marx analisou esse processo em sua obra "O Capital", referindo-se a ele como a "acumulação primitiva do capital". Para Marx, os cercamentos representaram um momento crucial na formação do capitalismo, pois permitiram a criação de uma classe de trabalhadores assalariados desprovidos de meios de produção próprios, tornando-os dependentes da venda de sua força de trabalho para sobreviver. Assim, a expropriação camponesa, a repressão legal contra os desempregados e a perseguição às mulheres não foram apenas mudanças econômicas, mas também transformações estruturais que possibilitaram o surgimento das relações capitalistas de produção.
A acumulação primitiva não ocorreu apenas na Inglaterra, mas foi um fenômeno global, vinculado à colonização e à exploração de povos indígenas e africanos. O saque de recursos na América, a escravização de milhões de africanos e a destruição de economias comunitárias em várias partes do mundo foram aspectos centrais desse processo, permitindo a concentração de riqueza nas mãos da burguesia europeia e financiando o desenvolvimento do capitalismo industrial.
A exploração colonial nas suas diferentes fases e na diversidade dos seus modelos e métodos constitui uma das componentes mais brutais dessa ação de violência e saque que despojou povos inteiros, em todos os continentes, sem exceção. Tesouros transformados em capital nos seus próprios países ao mesmo ritmo que provocavam o empobrecimento de largas massas de camponeses e colhiam os resultados da exploração desenfreada e em larga escala do trabalho assalariado e de um mercado mundial em expansão que paulatinamente monopolizavam de forma tirânica em seu exclusivo proveito e das suas indústrias e bancos.
Para garantir a acumulação primitiva, o Estado desempenhou um papel ativo na repressão da resistência camponesa e na legitimação da propriedade privada das terras. O uso da violência, tanto legal quanto militar, foi essencial para transformar a antiga economia baseada na terra e na subsistência em uma nova ordem onde o trabalho assalariado e o mercado se tornaram as forças dominantes. Marx enfatiza que esse processo não foi pacífico nem natural, mas sim um período de intensa exploração, coerção e violência institucionalizada.
Conclusão
O impacto dos cercamentos, das leis contra a vadiagem e da caça às bruxas não se restringiu à Inglaterra; seu modelo influenciou a organização do capitalismo em diversas partes do mundo, sendo replicado em processos de colonização e exploração de terras indígenas em várias regiões. Dessa forma, o cercamento das terras, a expropriação dos camponeses, a repressão contra a vadiagem e a perseguição às bruxas foram eventos fundamentais para a consolidação do capitalismo, moldando a economia global e a sociedade moderna. O capitalismo não surgiu de forma espontânea, mas sim através de processos violentos de expropriação, repressão e controle social, que garantiram a formação de um sistema baseado no trabalho assalariado e na acumulação incessante de capital.
A relação entre esses processos e a acumulação primitiva mostra como o capitalismo se originou a partir da destruição de antigas formas de organização social e econômica. A transição para o capitalismo foi marcada por uma violência estrutural que garantiu o estabelecimento da propriedade privada, a formação de uma classe trabalhadora dependente do assalariamento e o controle do Estado sobre a reprodução social. Compreender essa história nos permite reconhecer que o capitalismo não é um sistema natural ou inevitável, mas sim o resultado de séculos de expropriação e coerção.
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