 O Brasil foi o último país a ter escravidão. Foi o último a ter  hiperinflação e tem um regime de remuneração do FGTS que prejudica os  trabalhadores. Demorou muito para criar a Comissão da Verdade para  apurar crimes da ditadura. Por detrás desses fatos está um pacto  antiliberal formado entre elites e governo.
 O Brasil foi o último país a ter escravidão. Foi o último a ter  hiperinflação e tem um regime de remuneração do FGTS que prejudica os  trabalhadores. Demorou muito para criar a Comissão da Verdade para  apurar crimes da ditadura. Por detrás desses fatos está um pacto  antiliberal formado entre elites e governo.   
 A análise é do economista Persio Arida, 59, um dos idealizadores do  Plano Real, que enxerga um denominador comum entre escravidão,  hiperinflação e FGTS: "os mais prejudicados são os mais pobres, sempre". 
  
 Ex-presidente do Banco Central e hoje sócio do banco BTG Pactual, ele  avalia que o primeiro ano do governo Dilma Rousseff foi bem-sucedido do  ponto de vista macroeconômico. "É um governo mais austero", declara. Mas  diz não gostar do que define como "uma tendência protecionista",  revelada do caso do aumento do IPI para os automóveis importados. "Se  está protegendo um grupo de multinacionais contra outro grupo de  multinacionais", afirma. 
  
  
 Arida ataca também o novo reajuste do salário mínimo que, para ele, não  distribui renda nem dinamiza a economia e vai "na contramão de tudo que o  país precisa". 
  
 Ex-presidente do BNDES, ele discorda da atual política da instituição de  fortalecer os chamados "campeões nacionais", os grandes grupos. Na sua  visão, "quem tem acesso ao mercado de capitais privado não deveria usar  recursos do BNDES". 
  
 Arida prevê uma trajetória de recuperação para os Estados Unidos e acha  que a desaceleração suave na China não vai ter impacto dramático para o  Brasil. O maior problema, para ele, está na Europa e no seu sistema  bancário. Lá países podem sair do euro isoladamente ou a situação pode  ser empurrada com a barriga. Há também possibilidade de nacionalização  de bancos. 
  
 "Há que salvar os bancos", defende, lembrando que o grande drama da  recessão de 1929 foi a quebra dos bancos. "Não se pode repetir os erros  de 29", alerta. 
  
 A seguir, a entrevista. 
  
 Folha: Qual avaliação do governo Dilma? 
  
 Persio Arida: O governo Dilma teve o desafio de enfrentar o  legado de uma economia excessivamente aquecida em 2009/2010. Optou por  fazer um "soft landing", baixando ao mínimo a inflação, para evitar que  uma desinflação muito rápida sacrificasse por demais o nível de emprego.  O resultado de 2010 foi bom nesse sentido do "soft landing". A inflação  reverteu a trajetória de alta, embora ainda esteja no topo da banda. A  atividade econômica está desacelerando para a taxa de crescimento  brasileira de longo prazo, que é algo entre 3,5% e 4%. Desse ponto de  vista, o desafio macroeconômico, que era como lidar com o aquecimento  excessivo de 2010, foi bem resolvido para esse ano de 2011. 
  
 Não foi um erro ter segurado a economia em demasia no início do ano  passado; agora o governo quer estimulá-la novamente. O desaquecimento  tem mais a ver com essas medidas do que com a crise no exterior, certo? 
  
 O desaquecimento é primordialmente ditado pelas medidas; é um  desaquecimento intencional e necessário e foi numa boa medida. A  economia brasileira não cresce a taxas de 2010 _são insustentáveis. 
  
 Por quê? 
  
 Porque é muito acima da taxa de crescimento normal, leva a  sobreaquecimento, pressão inflacionária excessiva, gargalos de  infraestrutura, falta de poupança doméstica. Há inúmeros fatores que  fazem com que a economia não possa crescer a 7% ao ano de forma  sustentada. 
  
 Então o normal é um crescimento baixo? 
  
 O crescimento é o que é. Na economia brasileira hoje a taxa sustentável  de crescimento é algo em torno de 3,5%, 4%. Sustentável no sentido de  capaz de manter a inflação sob controle e evitar gargalos maiores nos  processos de infraestrutura. Para crescer mais do que isso, se  precisaria ou ter mais poupança doméstica ou ter mais poupança externa.  Mais poupança externa não seria prudente, pois já estamos com déficit de  conta-corrente. Para ter mais poupança doméstica teriam que ser feitas  reformas estruturais que não vejo sendo encaminhadas no momento. Do  ponto de vista macroeconômico foi um ano muito bem sucedido. Essa  desaceleração recente da economia brasileira no último trimestre é um  pouco enganosa; a economia vai acelerar de novo este ano, ao longo do  ano. Acho que 2012, se não houver um percalço maior lá fora, teremos de  novo uma taxa de crescimento de 3,5%, 4%. 
  
 E inflação, câmbio, juros? 
  
 A inflação deve seguir com a tendência moderada de queda. Câmbio é a  variável mais difícil de imaginar. É a variável mais suscetível a  eventos externos. Depende muito do que acontecer no resto do mundo. 
  
 A economia norte-americana está em trajetória de recuperação, o que  tende a fortalecer o dólar. Se não houver uma mudança política muito  radical nos EUA, a recuperação vai continuar. A política de juro zero  com "quantitative easing" norte-americana vai ser suficiente para, ao  longo do tempo, fazer com que os EUA voltem à trajetória de crescimento  de longo prazo. A China tem outra trajetória de "soft landing", que acho  que também vai ser bem-sucedida. Sou mais otimista, acho que a China  vai crescer perto de 8,5% neste ano, o que para a China é um "soft  landing". O grande desafio é a Europa. É a grande incerteza que tem no  cenário. 
  
 Como este "soft landing" da China vai afetar o Brasil, já que a ligação entre as economias é muito grande? 
  
 Menos do que as pessoas pensam. Porque o "sotf landing" chinês não  implica nenhuma redução abrupta da demanda de matérias-primas  brasileiras. Tem muito mais a ver com a transformação da China de uma  economia primordialmente exportadora para uma economia voltada para o  mercado doméstico. A China, por razões de demografia e do próprio  desenvolvimento, não consegue mais sustentar taxas de crescimento de  10%, 11% sem pressão inflacionária. Os salários na China estão  claramente subindo. A China, que foi uma força deflacionária para o  mundo, hoje está deixando de sê-la. A desaceleração da China é  consequência do próprio crescimento, primordialmente do mundo e dela em  especial. Mas é uma desaceleração relativamente suave, acho que não vai  ter impacto dramático nenhum. 
  
 Sobre EUA, alguns acham os dados recentes pouco conclusivos para assegurar uma recuperação. 
  
 O problema norte-americano é muito parecido com o problema japonês.  Acontece quando se tem bolhas imobiliárias e bancos se tornam inviáveis  por problema de crédito. O problema dos bancos nos EUA foi em crédito.  Foi uma gigantesca bolha de crédito, como no Japão. A pergunta que  geralmente se faz é: uma vez que você entra numa bolha de crédito e a  bolha explode, se tem um período recessivo prolongado necessariamente ou  se consegue encurtar o período recessivo com políticas monetária e  fiscal, principalmente monetária? Dependendo de como se responde, se vê o  futuro dos EUA. As políticas de juro zero e um agressivo "quantitative  easing" do BC norte-americano vão abreviar o período, digamos,  recessivo. Em 2013, 2014 vai começar a haver uma certa reversão da  política monetária norte-americana. Sou muito mais otimista com os EUA. 
  
 E o emprego vai se recuperar? 
  
 No emprego a recuperação é mais lenta porque os setores que voltam não  são os setores que desempregaram. Setores onde o desemprego tende a ser  maciço, o financeiro e o "real state", não são os setores que se  beneficiam na volta. Tem um aspecto estrutural no desemprego, porque é  difícil para as pessoas mudarem de trabalho, mudar de ramo. Mas vai ser  caudatário do processo. Se houver uma recuperação econômica sustentável,  mais cedo ou mais tarde o emprego se recupera também. O grande desafio  do mundo está na Europa. 
  
 E o que vai acontecer por lá? Qual a origem da crise? 
  
 Como em toda a crise, é tentador achar uma única origem. Mas é um  fenômeno muito complexo. O euro foi uma construção, antes de mais nada,  política, não econômica. É um projeto de, via unificação monetária e  através da zona do euro, via unificação tarifária, permitindo livre  migração, se criar um cimento econômico entre países que evitasse a  repetição das tragédias do século 20, as duas Grandes Guerras. Como  projeto político é um extraordinário sucesso. A ideia de integrar  economicamente e de forma quase mais próxima da irreversibilidade para  evitar as tensões políticas que levaram às guerras e conflitos, se  demonstrou uma proposição política correta. Como proposição política é  um projeto muito bem sucedido, ao contrário do que as pessoas imaginam. A  questão é que para fazer sentido economicamente teria que ter sido  acompanhada de medidas que não ocorreram. 
  
 Quais são os desafios? Primeiro, o federativo. Desafios federativos são  muito difíceis de lidar. O Brasil tem uma questão federativa, mas ela  não existe politicamente. Exemplos simples: há transferências maciças de  renda entre regiões do Brasil, de uma região para outra, entre Estados  do Brasil. A regra um homem/um voto não vale no Brasil, porque um  votante num Estado vale mais do que de outro. No debate político  brasileiro, esses desequilíbrios federativos não fazem parte da agenda. O  país, por razões de história, de cultura etc tem convido bem com isso.  Mas poderia não conviver. Num país abstrato, a questão da regra de um  homem/um voto e a magnitude das transferências de renda seriam um  conflito federativo monumental. Só que o país não existe em abstrato,  existe numa história. E na nossa trajetória histórica isso não tem  importância politicamente. No Brasil, a cidadania não de define  localmente, ao contrário do que ocorre na Europa. 
  
 Na Europa, a questão federativa, que no Brasil é oculta, é aparente e  visível desde a partida. Porque os países continuam independentes e não  existe um mecanismo coercitivo entre eles. Não há um mecanismo de ajuda  sistemática entre países. Até hoje os vários bancos centrais têm  contabilidades internas entre eles etc. Essa questão federativa é uma  dimensão muito complexa no problema europeu. 
  
 Porque o problema não é o mesmo nos vários Estados. Há países que sempre  foram menos responsáveis fiscalmente do que outros. Há uma dimensão  fiscal/federativa. Há uma dimensão de balanço de pagamentos entre países  que sistematicamente conseguiram lidar bem com a apreciação da moeda  conjunta do euro, enquanto outros lidaram mal. E há problemas de  condução do processo. A resistência alemã no caso da Grécia é  desastrosa. Se você insiste em que haja perdas para os credores de  determinado país, como você imagina que seja a reação dos credores do  país vizinho? A Europa enfrenta uma crise que é, antes de mais nada, de  governança interna. 
  
 Se aquilo fosse um país, a Europa teria estatísticas melhores do que os  norte-americanos. Teria menos dívida e menos déficit. É uma abstração  --aquilo não é um país, mas é preciso ter isso em vista. O problema é  federativo, que está desde a partida e nunca foi resolvido. O problema  confluiu quando houve a explosão da bolha por razões completamente  díspares. A Irlanda era um país com dívida pública muito baixa, que tem  uma trajetória fiscal invejável, que se tornou um país problematizado  por conta de seus bancos. Na outra ponta, a Grécia sempre teve uma  trajetória fiscal reprovada por toda a União Européia, mas que de alguma  forma a União Européia permitiu... 
  
 E os bancos também, porque emprestaram... 
  
 E os bancos também porque emprestaram. Irlanda e Grécia são dois extremos. Como um todo, na Europa hoje há um problema bancário. 
  
 Qual é a dimensão bancária do problema? 
  
 É muito difícil fazer essa conta porque o teste de estresse que o Banco  Central Europeu rodou ficou muito desmoralizado. Fizeram o teste e logo  em seguida o Dexia... Falhou. Então não é uma boa medida. Por outro  lado, os requerimentos de Basiléia, que seriam uma outra medida, têm uma  dificuldade. Se pode calcular assim: para cumprir os requisitos de  Basiléia, quanto os bancos deveriam ter de capital. Essa é uma medida  que se entende. O que o mercado normalmente olha é quanto os bancos  precisam levantar de dinheiro para se financiar. O que é uma medida  torta do problema. O problema é a insuficiência de capital. A questão é  que lidar com uma crise soberana e uma crise bancária ao mesmo tempo é  um problema de extraordinária complexidade. Porque as duas crises são  ligadas. 
  
 Vamos ter como exemplo um título italiano de dez anos que está hoje  vendido a 7%, digamos. Um título do governo italiano, naturalmente, é um  título que qualquer banco italiano tem como mais líquido, como em  qualquer lugar do mundo. Se você perguntar qual o título mais líquido  dos bancos brasileiros, a resposta será: os títulos do governo  brasileiro. Se você obriga no teste de estresse que haja um requerimento  de capital suficiente a fazer face a um "default" soberano dificilmente  os bancos vão conseguir levantar o dinheiro. 
  
 Vão ter que ser socorridos pelos Estados. 
  
 Ou estatizados. 
  
 E o sr. enxerga essa estatização acontecendo de forma mais forte? 
  
 A estatização de bancos é sempre o último recurso. Mas é melhor estatizar os bancos do que deixar os bancos quebrarem. 
  
 Mas é um cenário possível na Europa, uma onda de estatização bancária? 
  
 É difícil imaginar... É muito fácil e tentador traçar cenários, e muito  difícil, ao mesmo tempo, traçá-los. Você pode traçara cenários da Europa  dissolvendo coletivamente o euro, todos os países saem ao mesmo  tempo... 
  
 E volta o dracma, a lira, o marco... 
  
 Volta o dracma. Tem artigo recente do Robert Barro que sugere uma URV para dissolver o euro. 
  
 Um plano Larida [elaborado por André Lara Resende e Persio Arida, que resultou no Plano Real]? 
  
 Um plano Larida para dissolver o euro. Seria um Larida para outro  propósito. Você tem perspectivas de países saírem do euro isoladamente.  Você tem perspectiva de nacionalização de bancos. Você tem perspectiva  de empurrar com a barriga por mais um tempo. 
  
 O Estado do bem-estar social vai ser desmontado? Há os que dizem que  as causas da crise da dívida soberana estão no socorro a bancos, no  regime tributário regressivo e houve uma redução da arrecadação de  impostos. 
  
 A questão do Estado do bem-estar na Europa é pouco entendida. Vou dar um  exemplo. A França tem três vezes mais funcionários públicos per capita  do que a Alemanha. Nada consta de que o Estado de bem-estar social seja  muito pior na Alemanha do que na França. Outro dado. Se você tem  seguro-desemprego muito generoso, como é o caso da Espanha, é  contraproducente, porque torna o desemprego mais rígido. Um país com  seguro-desemprego generoso de mais não é melhor do ponto de vista do  bem-estar do que um país com seguro-desemprego menos generoso. Por  detrás da discussão de Estado de bem-estar ou não tem uma questão de  eficiência do Estado. 
  
 Faz parte do pacto social europeu um certo Estado de bem-estar que foi  maior do que o norte-americano. A história tem que ser respeitada. Isso  sempre foi assim e provavelmente sempre será assim. O que está em jogo  não é uma americanização da Europa. Não vejo isso acontecendo. O que  está em jogo é uma modernização do Estado de bem-estar. Tem que dar mais  eficiência, tornar os seguros-desempregos menores. 
  
 É o dinheiro da saúde e da educação que está sendo cortado, da Grã-Bretanha à Grécia. 
  
 Tem aspectos aí. A Inglaterra tem um sistema de saúde socializado.  Funciona surpreendentemente bem para um sistema de saúde público. Mas  você tem que racionalizar o tempo todo. A despesa de saúde, se não tiver  racionalização, vai ao infinito. Para você acertar um diagnóstico, com  90% de chance, é relativamente barato. Se você quiser acertar um  diagnóstico com 99% de chance, o custo sobe exponencialmente. 
  
 Em saúde pública você sempre tem que ter um cálculo econômico de custo e  benefício. É triste falar assim, quando se fala de vidas humanas, mas,  se não, o sistema não tem limite. Não acho que vá haver na Europa o fim  do Estado de bem-estar. Você vai ter uma enorme racionalização do Estado  de bem-estar. 
  
 Outro exemplo. Morei muitos anos na Inglaterra. A Inglaterra já não  permite o tratamento de fertilidade em mulheres obesas. A mulher é  forçada a emagrecer antes, por causa do risco de perder o bebê.  Evidentemente, se a mulher está numa idade mais crítica do ponto de  vista da fertilidade, ela pode legitimamente argumentar que não vai dar  tempo, que precisa fazer. Outros países da Europa permitem. São decisões  difíceis, mas há um enorme espaço na Europa para racionalização do  Estado de bem-estar. Isso é muito diferente da americanização, que não  faz parte da cultura e da história européia. 
  
 Mas as medidas contra a crise não estão na direção errada ao sufocar  os gastos públicos e reduzir a renda. Não deveria ser feito o contrário,  como aumento de salários? 
  
 Vai ter uma política fiscal mais apertada, demissão de funcionários  públicos, redução de gastos do Estado, racionalização do Estado do  bem-estar. Mas precisa ter medida na coisas. Não se pode pedir para um  país fazer um ajuste de menos 4 para 4 positivo do PIB. Vai gerar uma  crise no tecido social que torna o país ingovernável. Precisa ter  limites no processo, bom-senso. Mas fazer o ajuste fiscal em si no  momento de crise é até bom, porque a sociedade toma consciência da  necessidade do ajuste. 
  
 A questão é junto com o ajuste fiscal fazer uma política monetária muito  mais flexível. A Europa poderia expandir o balanço do BC europeu,  idealmente, muito mais do que faz hoje. Em outras palavras, uma  impressão de moeda, taxa de juros zero e uma emissão monetária muito  mais radical, mais acentuada do que tem sido feito até agora. Falo a  mesma coisa nos dois contextos [Brasil e mundo]. O mundo precisa ir na  direção de políticas fiscais mais contracionistas e políticas monetárias  mais expansionistas. 
  
 E aumentar salário? O salário não é uma parte importante na dinâmica capitalista? 
  
 Não se deve aumentar salário. O salário tem um elemento cíclico. A  economia capitalista tem ciclos. Quando está na fase alta o salário  aumenta sozinho. Na fase baixa, ele tem uma enorme resistência. Ele fica  e acaba tendo desemprego. O salário não é um preço flexível, digamos.  Salário funciona um pouco diferente dos demais preços. Por conta disso,  não é preciso estimulo para fazer aumentos salariais para melhorar a  vida das pessoas. A melhor maneira de aquecer uma economia nas condições  atuais da Europa, dos EUA e do próprio Brasil, com as devidas  adaptações, é sempre política monetária. 
  
 O sr. não concorda com a análise que aponta no socorro a bancos, na  regressividade do sistema tributário e na corte dos impostos para os  ricos como causas da crise da dívida soberana? A salvação dos bancos não  tem a ver com essa crise da dívida soberana? 
  
 Obviamente tem. Toda a crise ncária sistêmica associada a bolhas ou de  ativos ou no mercado imobiliário ou no mercado acionário tipicamente  põe os governos diante de uma situação difícil. Se pode permitir que os  bancos quebrem, o que é um trauma extraordinário para a formação de  poupança ao longo do tempo. Ou salvar os bancos. E para salvar os  bancos, ou o governo injeta dinheiro ou absorve parte do portfólio podre  dos bancos. É sempre melhor a segunda solução do que a primeira. O  grande drama da grande recessão, não foi a queda da bolsa de 1929 ou o  folclore de alguém que se jogou pela janela. O drama foi a quebra dos  bancos. Foi a quebra dos bancos que provocou o trauma e a perda de  confiança no padrão fiduciário. Não pode repetir os erros de 1929. Se  pode dizer que não deviam ter deixado a situação ter chegado àquele  ponto. Isso é uma questão política e que outros governantes sejam  eleitos. Uma vez que se está diante da situação, há que salvar os  bancos. 
  
 Se pode salvar os bancos de inúmeras formas diferentes. Penalizando os  acionistas dos bancos, que é a forma correta, nem sempre adotada na  Europa. Sempre o primeiro a ser penalizado tem que ser o acionista do  banco. Mas salvar bancos, não penalizar o credor dos bancos. Penalizar o  acionista e não penalizar o credor. 
  
 Mas mesmo que se tire todo o capital do acionista, numa crise bancária  de grandes proporções não dá para salvar o credor. Se precisa colocar  mais dinheiro. Então são crises que levam ao aumento da dívida pública. É  uma certa transferência, de um excesso de endividamento privado, para  um gradual excesso de endividamento público. 
  
 É a socialização das perdas. 
  
 É uma socialização de perdas, por assim dizer. O termo é meio enganoso.  Porque a grande socialização de perdas é uma questão de gerações. O  governo tem duas alternativas: pode deixar todos os bancos quebrarem e  aí ele socializa todas as perdas hoje. Porque o depositante, o  trabalhador que tem dinheiro no banco perde a sua poupança, zera. Ou ele  pode aumentar a dívida pública, com o que ele socializa a dívida entre a  geração atual e as futuras. A dúvida não e socializar a perda ou não:  ela vai haver de qualquer forma. É se quem paga é só a geração atual ou  se de alguma forma divide o peso do pagamento entre as gerações atual e  as futuras. Quando se divide o peso, se aumenta a dívida pública, porque  alguém vai ter que pagar isso em algum momento para frente. Não  necessariamente o trabalhador de hoje, mas o trabalhador do futuro. 
  
 O capitalismo assim fica sem riscos? 
  
 Não, o capitalismo tem riscos. 
  
 Sim, mas se alguma coisa sai errada, o Estado vai lá e ajuda, não é? 
  
 Tem dois aspectos aí. A legislação brasileira é melhor do que a demais. A  legislação brasileira é baseada no princípio de que a responsabilidade  do controlador e do estatutário é ilimitada. Esse é o princípio correto,  porque mesmo se o governo tiver que socorrer o banco, a sociedade tem  uma garantia de que o administrador do banco e o acionista do banco  perdem tudo. E se for o acionista perde não só as ações do banco como  todos os seus bens. 
  
 A legislação norte-americana foi criada sobre outro pressuposto. Esse  debate houve nos EUA, se devia ter responsabilidade ilimitada ou não. Os  EUA optaram pela responsabilidade limitada dos dirigentes, sob o  argumento de que se a responsabilidade fosse ilimitada seria tão  arriscado que só aventureiros topariam ter instituições financeiras.  Isso nos anos 1920.
Então para tornar o sistema financeiro mais sólido optou-se pela responsabilidade limitada. 
  
 Mas essa discussão não ressurgiu agora com essas manifestações de rua? 
  
 Curiosamente não. Existe um mal-estar público contra o que aconteceu nos  bancos, mas ele é difuso, não se transladou para uma proposta. O debate  nos EUA sobre bancos não é sobre se deveria introduzir a regra  brasileira ou não. O debate é politizado, busca aumentar o controle,  reforçar a margem de segurança dos bancos. Mas ninguém fala em tornar a  responsabilidade ilimitada. O sistema brasileiro é muito mais avançado. 
  
 Qual o significado do rebaixamento de países europeus definido na última sexta-feira? 
  
 O rebaixamento era esperado, não há surpresa. As agências erraram muito  nas avaliações de risco em 2008. No crédito provado erraram muito,  falharam. Para investidores institucionais criou-se uma cultura pela  qual os investimentos são feitos de acordo com o "rating" das agências _  o que é conveniente para os administradores dos fundos. Essa cultura  não mudou apesar dos erros das agências. Por isso, há consequências no  rebaixamento, mas não há nada surpreendente. 
  
 A crise vai resultar num maior controle das finanças globais? O  sistema financeiro vai passar por alguma redução? Muitos dizem que os  governos ficaram submetidos aos seus desejos das finanças. O que o sr.  acha? 
  
 Há clichês de todo o tipo. Esse é um clichê, que existe um sistema financeiro globalizado. 
  
 Não existe isso? 
  
 Em bom português é bobagem. Você tem um mundo crescentemente  globalizado, com integração financeira, comercial, tem uma difusão  cultural maior. E os grandes beneficiários da globalização foram os  pobres. Foi a globalização que permitiu a ascensão dos emergentes. A  integração de comércio e financeira é extremamente benéfica aos pobres  do mundo. Do ponto de vista das políticas nacionais, ela coloca um  problema, porque os Estados se percebem cada vez mais interdependentes.  Há uma certa ilusão. Na Grande Depressão havia um grau de  interdependência similar. Criou-se a percepção de que são mais  interdependentes hoje do que anteriormente, o que é até duvidoso. Mas  há, de fato, laços de comércio crescentes, grau de interdependência  comercial entre países crescente, fluxos de capitais crescentes, fluxos  financeiros crescentes. 
  
 Quais são os desafios que isso coloca na esfera nacional? Primeiro, o  mais óbvio, que é a taxa de câmbio, processos muito dramáticos de  apreciação ou depreciação causados por fluxos financeiros. Segundo,  desafios na área comercial. Terceiro, na área de investimento. Grosso  modo, se está falando, tanto na área comercial quanto na de  investimentos, da questão protecionista: se os países devem se defender,  até que ponto se sentem atacados. Pressões protecionistas são naturais.  Em contextos recessivos elas aumentam; na prosperidade diminuem.  Portanto, as pressões protecionistas são cíclicas. Mas quase sempre são  péssimo conselheiro. É raríssimo o caso que você consegue justificar de  fato a medida protecionista do ponto de vista do bem estar social do  país que está implementando a medida. Normalmente as pressões  protecionistas beneficiam lobbies. Beneficia um lobby empresarial e  prejudica outro lobby empresarial. Mas do ponto de vista do bem-estar da  sociedade, elas fazem mais mal do que bem. 
  
 Essa crise mundial vai durar dez anos, como afirmam alguns? 
  
 O mundo tem lógicas muito distintas, apesar de globalizado. Os EUA estão  numa trajetória de recuperação. Vai haver uma eleição presidencial.  Como a recuperação é frágil, é muito importante saber se as políticas  governamentais vão continuar. Economia não é um exercício econométrico,  porque as pessoas pensam, os governos agem, a política existe. Então é  muito difícil fazer previsões. Mas os EUA, se não tiver nenhum desacerto  na política econômica maior, tende a se recuperar. A China tem um "soft  landing", mas não é nada desastroso. O grande desafio para o mundo para  a frente é a Europa. 
  
 E não há um horizonte de tempo? 
  
 É difícil prever. Uma coisa é uma tendência econômica. Se você me  perguntar se a economia brasileira, tudo o mais constante, estará em  recuperação no segundo trimestre de 2012 comparado ao último trimestre  de 2011, a resposta é provavelmente sim. Porque estou falando de um  processo com uma dinâmica basicamente econômica. Na Europa não estou  falando de uma dinâmica econômica mais. É também econômica, mas, antes  de mais nada, é política de decisão. Tem eleição na França. Tem uma  situação na Grécia complicadíssima. A atual geração de líderes europeus,  do ponto de vista econômico, é extraordinária. Todos eles. Têm  extraordinárias lideranças hoje na Europa: na Grécia, na Itália, em  Portugal, na Espanha, na Irlanda. De primeiríssima qualidade. A pergunta  é a seguinte: vão sobreviver ao próximo teste das urnas? A Europa tem  hoje um desafio essencialmente político de governança. Esse é muito  difícil de prever. 
  
 Há os que afirmam que há um governo Goldman Sachs na Europa porque  vários desses líderes que você aponta passaram pelo banco. Isso também é  um clichê? 
  
 Isso não faz sentido nenhum. Alguns deles passaram pela Goldman, que era  um empregador de excelência, que melhor pagava. Pessoas talentosas, 15  anos atrás, naturalmente preferiram trabalhar na Goldman a trabalhar em  bancos que pagavam menos. 
  
 Como o sr. define o governo Dilma do ponto de vista da política econômica? É desenvolvimentista, ortodoxa? 
  
 É difícil dar um resumo. O "soft landing" foi muito bem sucedido. Do  ponto de vista fiscal, a performance de 2011 foi melhor do que a de  2010. É um governo mais austero. Houve uma contração dos balanços do  BNDES, o que é um lado positivo de ajuste. Tem várias dimensões que  aconteceram em 2011 inequivocamente positivas. Todas sendo vistas como  contraponto da herança de 2010 e 2009. Por outro lado, tem uma tendência  protecionista que não me parece boa. 
  
 Por exemplo? 
  
 Automóveis. No caso você está protegendo um grupo de multinacionais  contra outro grupo de multinacionais. É difícil de entender a  racionalidade. 
  
 Emprego no Brasil não seria uma justificativa? 
  
 Não, é difícil. As medidas protecionistas como um todo dificilmente tem  justificativa. A tendência intervencionista tem que ser contida, porque  ela dá uma satisfação imediata e faz um desacerto no longo prazo. 
  
 Mas todos os países adotam medidas assim. 
  
 Não existe país perfeito no mundo. Quando se faz gestão econômica, você  tem que evitar errar. Se outros erram é problema deles. Na parte  macroeconômica [Dilma] foi bem sucedida. Tem uma tendência protecionista  que não é ideal. Há uma série de reformas estruturais que poderiam ser  feitas em sistemas como FGTS, FAT etc. 
  
 Que é a sua proposta. 
  
 Que é a minha proposta. Poupança pública não cresceu. Você tem uma  diminuição de gastos públicos. O Brasil tem uma trajetória preocupante  em gastos públicos, que não é de agora. Uma trajetória pela qual a  arrecadação cresce porque o país cresce. O país se formaliza,  felizmente, isso é um ótimo sinal. Ao mesmo tempo os gastos públicos  crescem pari passu. Não estou falando de superávit, estou falando da  contração de gastos públicos. O Brasil teria muito a ganhar com  contração de gastos públicos e desoneração fiscal. Sei que é uma  plataforma impopular, que ninguém fala. As duas coisas têm que ser  feitas pari passu. Teria um enorme ganho de eficiência na economia se  essa linha fosse seguida. 
  
 Qual sua avaliação sobre o desempenho do BNDES? O sr. concorda com essa linha dos "campeões nacionais"? 
  
 Não. Eu entendo a racionalidade dessa linha dos "campeões nacionais",  mas acho que a lógica que deveria nortear é um pouco diferente. Há  setores onde se têm um argumento de falhas do mercado. Basicamente  porque o Brasil vem de uma história traumática de alta inflação ainda  tem horizontes de empréstimos relativamente curtos. Há áreas onde não o  preço do custo de empréstimo, mas a duração do empréstimo provida pelo  mercado privado é relativamente limitada. Nesse sentido se pode dizer  que tem uma falha de mercado. 
  
 Mas a análise tem que ser a partir das falhas de mercado e não da  constituição de grupos. É um outro enfoque. Como conceito básico, que é o  conceito de falha de mercado, o que deveria nortear é mercado de  capitais privado. Quem tem acesso ao mercado de capitais privado não  deveria usar recursos do BNDES. O conceito certo é enfocar para onde o  mercado de capitais não supre. É para onde as coisas deveriam ser  orientadas. Mais do que a ótica dos "campeões nacionais" gosto da ótica  de entrar onde o mercado de capitais não entra. 
  
 Tem três aspectos sobre BNDES. Tem o tamanho do balanço, que está  diminuindo, o que é muito positivo. Tem a precificação dos empréstimos,  dos juros direcionados. Tem o aspecto de qual é a ótica de quem recebe o  empréstimo. Se é uma ótica dos campeões, da formação de grandes grupos.  Esse raciocínio tem seus méritos. Coreia do Sul e vários países  adotaram essa abordagem. Deveríamos adotar uma outra, que é estar  presente onde o mercado de capitais privados não está. Se tem uma falha  do mercado de capitais tenho um argumento para concessão de empréstimo  forte. É a visão liberal.Se o mercado estiver falhando, eu entendo.  Agora se o mercado não estiver falhando não tem porquê. 
  
 Mas o mercado andou falhando demais nesses últimos tempos, não? Não ficou prejudicada essa linha de pensamento? 
  
 A crise de 2008 é uma gigantesca falha regulatória. É uma crise de  crédito. Os bancos concederam crédito excessivamente inventando certas  estruturas de crédito paralelas ao sistema bancário. A banca  internacional passou um drible no regulador. Não é que as leis estavam  erradas. O que houve foi uma gigantesca falha regulatória. 
  
 Mas crise não foi gerada pela queda de renda, que levou as pessoas a buscarem mais crédito? 
  
 Pelo contrário. A origem é o crédito. As pessoas sempre têm limitação de  renda. O sistema hipotecário norte-americano induz as pessoas a se  endividarem. De outro lado, se tem os bancos que deram um drible no  regulador e concederam crédito. Juntou a fome com a vontade de comer. Na  raiz o problema é a falha regulatória. Isso gerou uma enorme confusão.  As pessoas dizendo que a crise de 2008 provou que o capitalismo tinha  falhado. Na prática houve uma desregulamentação sem consentimento do  regulador. 
  
 E o investimento público? 
  
 Depende de uma contração de gastos correntes. Se houver redução de  gastos correntes, você consegue. O grande desafio é diminuir gastos  correntes em matérias não relacionadas a investimentos. É um desafio de  eficiência, de gestão. Isso não é do governo Dilma, vem de muito tempo. A  máquina pública cresce sem medida. 
  
 Qual vai ser o impacto deste aumento do salário mínimo? 
  
 Isso é desastroso. É uma regra desprovida totalmente de qualquer  sentido. É uma superindexação. Porque é uma indexação pela inflação  passada e mais ajuste do PIB. É uma regra na contramão de tudo que o  país precisa. É uma regra que visa recompor o valor do salário mínimo,  mas que na verdade tem um efeito prejudicial do ponto de vista de custos  do trabalho, exerce uma pressão inflacionária. Tem um efeito danoso  sobre os orçamentos de Estados e municípios que empregam muita gente com  salário mínimo. E particularmente danoso sobre a Previdência, porque as  aposentadorias são relacionadas ao mínimo. 
  
 Mas esse aumento não dinamiza a economia, já que aumenta a renda? 
  
 Não. Se você quer dinamizar a economia, você diminui a taxa de juros e  diminui impostos. É a maneira certa de dinamizar a economia. Essa é a  maneira errada. 
  
 Mas o aumento do mínimo não distribui renda? 
  
 Não. Isso provoca pressão inflacionária, de um lado. Aumenta os gastos com inativos da União. Aumenta o gasto público na veia. 
  
 Então o aumento do salário mínimo não é distribuição de renda? 
  
 Não. A melhor distribuição de renda que o Brasil pode fazer, de um lado,  é a ajuda direta aos mais necessitados, com bolsas família. De resto,  suba o salário mínimo de acordo com a inflação, se você quiser chegar a  tanto. Deixa o mercado funcionar. A melhor distribuição de renda é  diminuir a taxa de juros, permitir o desenvolvimento do sistema de  hipotecas no Brasil, reajustar bem o FGTS, que é um roubo dos  trabalhadores. Evite que os trabalhadores sejam roubados. Quer melhor  distribuição de renda do que esta? Posso dar vários exemplos. Mas essa  regra [de reajuste do mínimo] está na contramão de tudo o que o Brasil  precisa. O problema é que, uma vez criada a regra, entendo que seja  politicamente difícil escapar dela. 
  
 E o que o PSDB e a oposição deveriam propor? 
  
 Não quero falar sobre política. Não é a minha especialidade. 
  
 Mas você propôs ao PSDB mudar a questão dos juros subsidiados. 
  
 É um certo tabu no Brasil. Temos sistemas hoje que foram montados na  época do governo militar ainda, que tinham uma certa racionalidade. O  Brasil do Plano Real para cá evoluiu extraordinariamente. Hoje esses  sistemas se tornaram contra-produtivos. Basicamente se você eliminar os  chamados créditos direcionados a taxa de juros para a economia como um  todo vai ser menor. Melhora a distribuição de renda e melhora a alocação  de recursos. Só tem vantagens. Mas é um gigantesco tabu, parte porque a  questão é complexa e parte por causa de lobbies empresariais que se  beneficiam do atual sistema. 
  
 Então o Brasil não deveria ter política industrial? 
  
 Política industrial pode ter ou pode não ter. Política industrial não  tem nada a ver com o que está acontecendo. Política industrial se faz da  maneira usual. Tem um orçamento. Se você quer beneficiar determinado  setor, se faz isenção fiscal específica. Transparente, consta do  orçamento, as pessoas sabem do que se trata, se tem objetivos claros:  esse setor tem isenção fiscal por determinado tempo. Não estou dizendo  que política industrial seja justificado ou não. Se o país optar por  fazer política industrial, essa é a maneira certa de fazer. 
  
 Não via BNDES? 
  
 Não por uma via torta que distorce a formação da taxa de juros. No caso  do FGTS, concentra renda. Há distorções de todos os lados. Qualquer que  seja a o objetivo, ele tem que ser feito de outra maneira. Dar um  incentivo no orçamento. É a maneira correta, pública transparente _se  quiser usar uma palavra que nem gosto muito: republicana de fazer isso.  Quando você faz política industrial por vias tortas, penalizando  trabalhadores na aplicação do FGTS, distorcendo a formação da taxa de  juros, fazendo com que a Selic seja mais alta, você cria uma nuvem de  complicações que embaçam a percepção do problema e gera distorções por  todos os lados. No final, você nem sabe avaliar se a política industrial  é bem sucedida ou não. 
  
 O sr. foi preso e torturado na ditadura militar. Como analisa a criação da Comissão da Verdade? 
  
 Sempre fui a favor da instalação da Comissão da Verdade. Há inúmeras  críticas sobre como foi instaurada, conduzida, seus limites etc. Ainda é  cedo para fazer uma avaliação. 
  
 Gostaria de fazer parte dela? 
  
 Acho que há pessoas mais significativas do que eu para fazer parte. 
  
 No relato sobre aquele período, o sr. fala da teia de interesses que  se formou entre empresários, políticos, gestores do Estado naquela época  e que resultou num silêncio prolongado sobre a ditadura. Como o sr.  analisa essa questão hoje? A lei da anistia deveria ser revista? 
  
 A revisão da lei da anistia é um tópico mais difícil. É pena que a discussão esteja acontecendo apenas agora. 
  
 Por que o sr. acha que só acontece agora? Por que a demora? 
  
 O Brasil tem seus pactos de silêncio. Falei há pouco sobre FGTS, FAT,  que é outro pacto de silêncio. Se você pensar sobre a história  brasileira, não é à toa que o Brasil foi o último país do mundo a  terminar com a escravidão. Ou foi o último país do mundo a terminar com a  hiperinflação. 
  
 Como explicar isso? 
  
 É mais uma pergunta para um historiador do que para um economista.  Existe um pacto entre Estado e grupos empresariais e elites no Brasil  que é um pacto, digamos, não-liberal, antiliberal. 
  
 Como assim? 
  
 A plataforma liberal.. 
  
 Liberal no sentido norte-americano. 
  
 Liberal no sentido norte-americano, que é plataforma da diminuição da  intervenção estatal e das liberdades civis. Essa plataforma foi  cronicamente fraca no Brasil. O Brasil é um país do novo mundo. Nesse  sentido, é mais semelhante aos EUA do que qualquer outro. A terminologia  dos Brics é muito enganadora. O Brasil tem poucas similaridades com a  China, que é uma civilização milenar. A similaridade brasileira é com os  EUA. São países de dimensão continental, com sistemas democráticos,  formados pela imigração basicamente européia e africana, um pouco  asiática. Países cuja cultura indígena local desapareceu. Não são  países, como na América espanhola, que tem o substrato de uma outra  cultura. Mas, contrariamente aos EUA, é um país onde o liberalismo foi  sempre fraco. Acho que por detrás dessas várias questões _escravidão,  FGTS ou hiperinflação _ se tem um denominador comum: os mais  prejudicados são os mais pobres, sempre. Numa hiperinflação o  prejudicado é quem nem conseguia ter conta bancária. Na escravidão, não  preciso nem falar. O FGTS hoje é de quem trabalha. 
  
 A escravidão financiava o governo do imperador... 
  
 Sem dúvida. Escravidão houve em outros países, outros tiveram servidão.  Interessante é que o Brasil foi o último. Chamo atenção sobre isso  porque o país tem um pacto entre elites e governo antiliberal. É um  pacto a favor do Estado e que sempre se pautou por uma certa repressão  de liberdades civis. 
  
 É um pacto a favor do Estado, do empresariado e contra os mais pobres, é isso? É um pacto conservador? 
  
 Se você disser que é contra os pobres você está falando uma coisa errada. Ninguém é contra os pobres. 
  
 Mas a resultante é essa? 
  
 Pelo contrário. O pacto é feito para tentar beneficiar. Quando você faz  políticas protecionistas, créditos direcionados, quando privilegia  determinados grupos, quem está implementando e quem recebe benefícios  genuinamente pensam que estão fazendo o bem comum. 
  
 Pelo menos o discurso é esse. 
  
 O discurso é esse e muitas vezes as pessoas pensam assim. O interessante  não é o discurso, mas, historicamente falando, é [pensar] porque a  tradição liberal foi sempre tão fraca no Brasil e continua sendo fraca.  Isso se aplica inclusive para liberdades civis. O caso da Comissão da  Verdade é um exemplo. 
  
 Olhe, por exemplo, para um pequeno, em escala, episódio de violação das  liberdades civis em Guantánamo, associado ao governo Bush. Num contexto  específico da lei patriótica etc, aquilo suscitou uma resposta da  sociedade norte-americana liberal em defesa das liberdades civis muito  forte. No contexto de uma extraordinária agressão contra a civilização  norte-americana que foi a barbaridade do 11 de Setembro. Mas a sociedade  reagiu ainda assim. A questão liberal no Brasil é fraca historicamente  nessas duas dimensões, na econômica e na política. 
  
 Isso perpassa governos de diferentes matizes? 
  
 Claro que certos governos, dependendo da orientação ideológica, puxam  isso um pouco mais ou um pouco menos. Têm matizes, diferenças  importantes. Mas não é um fenômeno de hoje. Tem uma história que foi  feita assim. 
  
 A política de juros, que faz uma enorme transferência de riqueza para os mais ricos, faz parte desse pacto anti-liberal? 
  
 Não é que as pessoas são antiliberais para fazer maldades. Tem uma certa  mentalidade antiliberal. Acho que até um melhor termo que eu usaria, em  vez de pacto antiliberal, uma mentalidade antiliberal. A taxa de juros  eu não colocaria nessa linha, embora ela tenha certamente um efeito  concentrador de renda. Ela responde a outros fatores.
O Brasil fez enormes violências contra a poupança financeira ao longo do  tempo. Desde a manipulação da correção monetária, chegando ao extremo  no Plano Collor. Foi gerada uma certa insegurança e um prêmio de risco  associado à poupança financeira. Quanto mais tempo passa sem que você  faça nenhuma violência contra poupança financeira, menor o trauma do  passado e melhora esse prêmio de risco. O respeito aos contratos, os  direitos de propriedade vão diminuindo esse temor. A taxa de juros tem  um componente próprio, não faz parte dessa mentalidade antiliberal. Se  você baixar a taxa de juros, você melhora dramaticamente a distribuição  de renda. Não tem a menor dúvida. Por isso minha insistência de que o  ajuste cíclico seja feito sempre via taxa de juros. 
  
 O sr. acha que o ritmo atual de redução da taxa poderia ser intensificado? 
  
 A inflação está rodando a 6,5%. Ainda tem um problema inflacionário que  está longe de estar bem equacionado. O aumento de salário mínimo é uma  pressão altista sobre inflação. O mercado tem uma projeção de taxa de  juros ainda com uma queda. Para diminuir de uma forma sustentada o  elemento crítico é o controle fiscal. Com o tempo, esse prêmio de risco  causado pelo trauma da poupança financeira vai diminuindo naturalmente,  desde que os governantes respeitem contratos. Do Real para cá, as taxas  de juros reais são as menores que o Brasil já teve. Ainda é  extraordinariamente alta. O tempo joga a favor, desde que você respeite  contratos porque as memórias do passado vão se diluindo. Mas se você  avançasse no sentido da consolidação fiscal mais agressiva, mais firme  poderia reduzir mais a taxa de juros e num ritmo mais acelerado. 
  
 O sr. leu o "Privataria Tucana"? 
  
 Não falo sobre isso. 
  
 Como está o seu indiciamento na Satiagraha? 
  
 Não quero falar sobre isso. 
  
 E sobre Daniel Dantas? 
  
 Não quero falar sobre isso. 
  
 Você que trabalhou dos dois lados, o que acha que deveria mudar na relação público-privado no Brasil? 
  
 O Brasil tem hoje os instrumentos legais adequados: a quarentena, leis  que proíbem o uso de informações privilegiadas etc. Do ponto de vista da  cultura de gestão das coisas públicas talvez o país precise amadurecer. 
  
 Como o sr. avalia o processo de fusões e aquisições? 
  
 O Banco foi líder inconteste neste ano de 2011 no processo de fusões e  aquisições e tenho certeza que será o líder inconteste em 2012 também. É  uma área central dentro da nossa atividade. Além da nossa liderança tem  o fato de que a economia brasileira em si tem um dinamismo muito grande  crescente de mercado de capitais. Às vezes esse mecanismo se traduz em  mais IPOs, às vezes em fusões em aquisições. É quase uma gangorra. Este  ano [2011] foi um ano em que a bolsa brasileira sofreu muito. Em  compensação, as fusões e aquisições cresceram muito. Ano que vem acho  que a bolsa brasileira deve ter uma performance melhor, dependendo da  Europa. Acho que o fluxo de fusões e aquisições vai continuar. De um  lado o investimento estrangeiro no Brasil está só começando. Tem uma  atração enorme. O Brasil entrou no mapa dos investidores globais. É o  mapa da atenção, mas ainda não é o da presença de dinheiro colocado. Vai  ter uma enorme entrada de investimentos estrangeiros. No ano que passou  a bolsa brasileira teve uma performance sofrível, mas os investimentos  estrangeiros diretos estão no pico. Esse processo de entrada maciça de  investimentos diretos estrangeiros vai continuar e é muito bom que  continue. Têm fusões e aquisições dos dois lados. Tem pelo dinamismo  crescente no mercado de capitais brasileiro e pela entrada de  investidores estrangeiros. Estou muito otimista para este mercado em  2012. 
Fonte: Jornal Folha de São Paulo