segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Quando o Estado compensa sua ausência com força



Por Michelle Amaral da Silva e Patrícia Benvenuti

Se o poder público não tomar medidas para conter a especulação imobiliária nas cidades, a tendência é de que aumentem as tensões entre moradores de áreas periférias e forças policiais.O alerta é do professor do Departamento de Economia da Puc-SP e secretário-adjunto de Finanças da Prefeitura de São Bernardo do Campo, Ricardo Gaspar.
Para o especialista, o interesse econômico sobre as favelas, combinado com a omissão do Estado, contribuem para a insatisfação crescente de seus habitantes e, em situações extremas, resultar em confrontos violentos, como os que ocorreram, neste ano, em Heliópolis e Paraisópolis."O desenvolvimento urbano e o mercado imobiliário acabam levando essas populações a se tornarem cada vez mais excluídas, cada vez mais isoladas do ponto de vista dos benefícios que a cidade deve propiciar para os seus habitantes", afirma. Na entrevista a seguir, Gaspar fala sobre a necessidade de políticas que, além de regulamentar, possam integrar mais o espaço urbano.

Brasil de Fato - Como avalia essa intensificação de confrontos em São Paulo entre forças de segurança e moradores de comunidades pobres?
Ricardo Gaspar - Esse é um problema crônico de todas as cidades mais importantes do planeta hoje, que passam por uma transformação bastante profunda na sua estrutura econômica, diminuição de empregos industriais, aumento de empregos em serviços, precarização da força de trabalho e vulnerabilidade da moradia. São três elementos que eu queria destacar, esse é o primeiro. O segundo é o fato de que os governos locais das cidades são, por si só, incapazes de resolver esse problema se não tiverem um apoio forte, uma institucionalidade regional e um apoio do governo federal para isso. Em terceiro lugar, apesar das cidades não poderem fazer muita coisa, [elas] podem fazer, sim, ações importantes, e a cidade de São Paulo não está fazendo isso, pelo menos na direção correta. São ações não só no sentido de propiciar maior número de moradias, condições mais adequadas de moradia, como também planos para a cidade, planos mais democráticos, que prevejam maior mistura de usos, acessos mais fáceis à população de baixa renda aos serviços públicos e equipamentos públicos. Isso não está sendo feito pela atual administração.

Brasil de Fato - Qual a relação entre esses acontecimentos e a dinânica de ocupação na cidade?
Ricardo GasNegritopar -A cidade de São Paulo tem atravessado uma série de mudanças nos últimos 20 anos principalmente. Agora, uma das mudanças, e de caráter negativo, é que aumentou muito o número de favelas e ocupações precárias. As favelas hoje estão espalhadas pela cidade, não é apenas na periferia mais distante. As favelas estão próximas do centro da cidade, os cortiços estão disseminados, e assim por diante. Então compete ao poder público uma política de regularização de áreas, de diversificação de uso para fazer com que essas áreas sejam menos excluídas, porque são ilhas de exclusão no todo social. Todo o desenvolvimento urbano e o mercado imobiliário acabam levando essas populações a se tornarem cada vez mais excluídas, cada vez mais isoladas do ponto de vista dos benefícios que a cidade deve propiciar para os seus habitantes.

Brasil de Fato - Qual o peso do mercado imobiliário nessa dinâmica?
Ricardo Gaspar -O mercado imobiliário atua como sempre atuou historicamente, ainda mais em um país de tradição patrimonialista como o Brasil, mas o mercado imobiliário tem sido uma das principais fronteiras de valorização do capital recente. Até por conta do peso maior das finanças na economia. Então basta ver que as principais crises internacionais, inclusive essa aí mais recente, tiveram no mercado imobiliário sua manifestação e sua expressão mais fortes. O mercado imobiliário tem sido, de fato, fonte de lucros extraordinários e de investimentos de grandes personagens econômicos, grandes bancos, financeiras e assim por diante, grandes investidores. Então o mercado imobiliário atua para valorizar o solo e construir naqueles lugares onde a demanda é maior e também a solvabilidade, ou seja, a maior capacidade aquisitiva de seus habitantes. Se não tiver um contrapeso do poder público, o mercado imobiliário vai atuar sempre na direção de provocar maior separação entre os habitantes de uma cidade. E na realidade aqui, no Brasil, tivemos avanços importantes a partir do início dessa década, com o Estatuto da Cidade, com os Planos Diretores. Mas ainda é preciso fazer muito mais, principalmente do ponto de vista da criação de instituições regionais que consigam regular e fazer prevalecer o interesse público na produção do espaço urbano.

Brasil de Fato -Qual o papel do Estado nesse processo? Mecanismos como o Estatuto da Cidade e os Planos Diretores vem sendo cumpridos como deveriam e tem sido suficientes?
Ricardo Gaspar -[Esses mecanismos] vêm sendo cumpridos na maioria das cidades que são obrigadas constitucionalmente a elaborar Planos Diretores Participativos, alguns nem tão participativos assim, mas têm feito. Acho que houve avanços no planejamento urbano com esse caráter mais democrático das cidades, mas é pouco. Nosso déficit nessa área é tão grande, e a ausência do Estado é tão secular, ao longo de toda a história brasileira, que recuperar esse terreno perdido não é fácil. O governo federal tem feito muita coisa, mas ainda é insuficiente. Me parece que uma das principais deficiências em um plano, digamos, mais macro, é a ausência de programas de natureza mais abrangente de recuperação urbana, de políticas urbanas de caráter mais abrangente. O Ministério das Cidades foi um grande avanço, mas eu acho que ainda precisa extrapolar a visão exclusivamente local dos fenômenos. Os Planos Diretores são muito valiosos, são instrumentos valiosos de regulação urbana, só que eles são muito pulverizados. A responsabilidade de São Paulo termina na fronteira, que às vezes é apenas uma rua, e depois do outro lado da rua é outro município que pode ter outro tipo de orientação política, que pode ter outro tipo de orientação urbanística. As duas entidades muitas vezes não conversam, não tem nenhuma instituição que faça as vezes de uma entidade metropolitana. Acho que as metrópoles têm que ter maior expressão para trabalhar essas políticas não apenas habitacionais como de segurança, ambiental etc. Nós vivemos um grande vazio institucional nessa área.

Brasil de Fato - Sobre esse vazio, que instrumentos a especulação tem usado em seu favor?
Ricardo Gaspar -Exatamente essa ausência e as características históricas da expansão imobiliária fazem com que, por um lado, a especulação imobiliária jogue e compre terrenos vazios em áreas centrais, buscando a sua valorização. O Estatuto da Cidade gera hoje mecanismos para que o poder público possa combater, mas isso ainda não tem sido plenamente utilizado. Precisa de regulamentação, precisa de governos que, de fato, implementem, por exemplo, instrumentos como o IPTU progressivo (XX). Isso por um lado, e por outro, aí já é histórico, as cidades tendem a se expandir horizontalmente, e a especulação imobiliária joga exatamente com a valorização de áreas por conta do poder público ter, necessariamente, de levar água, esgoto, coleta de lixo, equipamentos públicos, saúde, educação a localidades cada vez mais distantes. Com isso se valoriza a terra, e por intermédio de processos diversos que incluem inclusive a grilagem, posse ilegal, loteamentos clandestinos. A especulação imobiliária também lucra com essa expansão desordenada do espaço urbano por conta não só de mecanismos de mercado mas também por conta da ausência de instrumentos mais eficazes de instituições mais efetivas do poder público que regulem essa expansão desordenada.

Brasil de Fato - Em relação às ocupações policiais principalmente em áreas pobres, o senhor avalia que tem sido um fenômeno crescente?
Ricardo Gaspar -Ele [mecanismo] sempre existiu, em alguns casos com um grau de repressão maior, inclusive como em Salvador, com um enorme componente racial. Muda de figura com a evolução dos tempos, mas infelizmente, no nosso país, a questão social ainda continua sendo um caso de polícia. Eu não sou pessimista nesse aspecto, acho que há grandes avanços, acho que até o próprio governo federal hoje faz muito no sentido de tentar reverter isso, mas é uma situação histórica. Não vai ser revertido em dois, três ou quatro mandatos presidenciais ou três ou quatro governos. É uma mudança de orientação muito de longo prazo e que precisa de desenvolvimento. Isso que é muito importante. Não adianta só a intenção, a vontade de construir habitações melhores, ter planos urbanísticos democráticos e participativos. É preciso desenvolver o país, retomar de maneira sustentável o desenvolvimento, equilibrar melhor no território nacional o desenvolvimento econômico, ter um desenvolvimento econômico de um novo tipo. É um conjunto de ações que fariam no médio e no longo prazo reverter ou, pelo menos, uma tendência muito forte de reverter esse tratamento policialesco da questão social. Caso contrário, isso vai continuar sempre assim. Um município até pode ter uma política muito desenvolvimentista, pode fazer muito, construir equipamentos, melhorar significativamente seu espaço mas, na sua fronteira, estão legiões de pessoas que serão até atraídas por essas melhorias, pelo aumento de oportunidades. Em último caso, se não houver ações mais abrangentes para reverter essa situação, isso vai fazer com que as próprias melhorias verificadas em um município isolado se revertam por conta da pressão externa que lhe é desfavorável.
Brasil de Fato - Em que outras cidades também se verifica essa tendência de valorização de alguns espaços (inclusive de áreas centrais) e, em contrapartida, de remoção de populações pobres para as periferias?
Ricardo Gaspar - As cidades apresentam aspectos dos mais diferenciados. Hoje o fenômeno da pobreza e da expansão periférica está em cidades do Primeiro Mundo que antes não viviam fenômenos dessa natureza, pelo menos com tamanha gravidade. Qualquer cidade hoje da Europa, grandes cidades como Paris e Roma têm localidades que são verdadeiros guetos, com difícil entrada até da própria polícia. A suburbanização nas cidades norteamericanas seguiu um efeito diverso, mas é um problema seríssimo lá também. A suburbanização dos Estados Unidos levou para a periferia os segmentos de alta renda, extratos sociais dos mais "endinheirados" é que foram morar mais distante, aí surgiram condomínios, shopping centers, cidades muradas e assim por diante. Mas em quase todas as grandes cidades do planeta, principalmente nos países em desenvolvimento, esse fenômeno é hoje avassalador. Tem até um livro, com o qual até não concordo talvez no tom, mas a tese é inegável, de um famoso investigador chamado Mike Davis, "Planeta Favela", ("Planet of Slums"), onde ele mostra, com muitos dados e evidência, que as favelas têm se tornado a característica mais importante da expansão urbana, que é reconhecida por todos os organismos internacionais. Hoje a maioria da população do mundo é urbana, e a favelização tem sido a característica principal, infelizmente, dessa expansão. Em suma, o que o próprio Mike Davis diz, as pessoas acorrem hoje às grandes cidades não mais em busca do sonho, do eldorado do emprego, mas para buscar abrigo contra a miséria.

Brasil de Fato - Qual deve ser o futuro de São Paulo se continuar neste ritmo de ocupação e crescimento?
Ricardo Gaspar -Como eu disse, apesar dessa visão que privilegiou um aspecto mais pessimista, eu sou otimista, mas não de um otimismo ingênuo. Nós temos uma cidade como São Paulo, por exemplo, que tem um dinamismo impressionante. Problemas ficaram, com a fuga de indústrias e a decadência nos anos 80, depois a recessão econômica, mas na realidade São Paulo se reciclou e hoje continua sendo, até de uma maneira renovada, um centro econômico de primeiríssima grandeza. Perdeu alguns setores, alguns ramos industriais, ganhou outros, mas ela tem uma centralidade muito provavelmente mais reforçada até do que já teve em outros momentos históricos, na medida em que hoje a centralidade não é apenas industrial, mas comercial, financeira, cultural e até política. Então eu acredito que a humanidade, a sociedade brasileira e a pressão das forças sociais deve ser suficiente pelo menos para afastar as tendências mais perniciosas e construir uma cidade mais justa. Acho que há muitas evidências nesse sentido, as próprias populações ditas periféricas, que vivem em habitações subnormais, favelas etc dão mostras de uma excepcional vitalidade. Se há governos que muitas vezes não favorecem essas tendências, por sua vez essas tendências são renovadas em futuros governos, de caráter mais democrático, tanto no ponto de vista municipal quanto estadual, federal e até global. Há uma tendência muito forte no sentido de renovação urbana e melhoria ambiental e isso, acredito eu, tem boas chances de prevalecer. Haverá eleições no ano que vem, depois outras eleições no próximo ano, e esses são sempre momentos importantes de se debater não apenas o problema de São Paulo, de Santo André, de Osasco, de São Bernardo, de Diadema, mas o problema metropolitano em geral, porque os problemas estão interligados. Um se vincula ao outro, então é importante que a gente comece a preencher essa lacuna terrível que não foi preenchida por nenhum dos últimos governos estaduais e comecemos a pensar os nossos problemas de forma mais coletiva, mais agregada e mais solidária.

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