Parte 1
Parte 2
Parte 3
Fonte: http://www.youtube.com/user/Latuff
Para Ricardo Antunes, humanidade deve pensar que sociedade quer: uma que destrói trabalhadores ou uma que os dignifica
Por Vinicius Mansur
O EMPRESARIADO se movimenta para obrigar os assalariados a pagar pela atual crise econômica. A principal tática é utilizar as demissões para garantir os lucros e pressionar pela flexibilização de direitos. Para resistir, os trabalhadores devem atuar de modo organizado, pautando um debate sobre qual deve ser a sociedade do século 21. Em entrevista, Ricardo Antunes, professor de sociologia da Unicamp, aprofunda essa análise, elogia os governos da Bolívia, Cuba, Equador e Venezuela e critica o brasileiro, “um partícipe da ordem”.
Brasil de Fato – O senhor tem dito que é falsa a dicotomia flexibilização dos  direitos trabalhistas e desemprego? Por quê?
Ricardo Antunes – A ideia de  flexibilizar direitos para preservar empregos é uma falácia e, no limite, uma  falsidade. Vários países, como Inglaterra, Argentina, Espanha, Itália e até  mesmo a França, tentaram flexibilizar direitos com o pretexto de melhorar as  condições de emprego e o que se vê, de todas essas experiências, é que a  flexibilização foi uma forma de precarizar os direitos. Isso porque, em  situações adversas, os trabalhadores flexibilizam os direitos e, com isso,  perdem direitos que eles não recuperam depois.
Na verdade, o empresariado  quer é fazer com que as contas nesse momento de crise sejam jogadas em cima da  classe trabalhadora. Quem deve pagar essa conta é o próprio empresariado e o seu  sistema financeiro, pois eles são os agentes partícipes e os responsáveis por  essa crise. Porém, o empresariado não diz “trabalhadores, vocês vão pagar a  conta”. Eles afirmam, “trabalhadores, vamos flexibilizar para garantir os seus  empregos”.
Ora, quem acredita que irá se fortalecer tendo os seus direitos  destruídos? É uma fala mistificadora e é muito importante que a classe  trabalhadora perceba, porque, se em um momento de crise como essa ela aceita a  redução de direitos, não conseguirá recuperá-los depois facilmente. Lembre-se  que no governo Fernando Henrique Cardoso houve, entre várias medidas para  flexibilizar o contrato de trabalho, aquela que permitia os contratos  temporários. Isso fez com que muitos trabalhadores hoje peguem empregos  temporários e, quando eles vão completar três meses de experiência para ficar no  emprego, as empresas os demitem para não configurar estabilidade. O que tenho  mostrado é que este momento que o capital chama para flexibilizar direitos é de  fato para que a conta [da crise] seja paga pela classe trabalhadora. 
Como pode acontecer essa flexibilização?
O empresariado começa a falar em  várias alternativas. Por exemplo, suspender o contrato de trabalho por um  período de dez meses. Na verdade, a suspensão do contrato é a iminência do  desemprego completo. A CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] já contempla  modalidades desse tipo de suspensão do contrato por um período de até cinco  meses. O problema é que o empresariado está fazendo várias propostas para tirar  dele o ônus da crise.
É importante ficar claro que o empresariado deve  reduzir os seus lucros. Todos falam em reduzir direitos do trabalho, por que não  falar em flexibilizar a propriedade privada? Ou seja, por que não pensar em  propriedade não inteiramente privada, mas que os trabalhadores tenham acesso à  propriedade do capital? Porque eles não flexibilizam aquilo que, para eles, é o  fundamental. Agora, é preciso que a sociedade entenda que, para a classe  trabalhadora, o trabalho é a única atividade que lhe permite sobreviver. Se não  a exerce, ele está na indigência social, está próximo da economia política do  crime, do narcotráfico.
A OIT [Organização Internacional do Trabalho] já fala  em 1,5 bilhão de trabalhadores que perderiam, em 2009, salários e viveriam em  condições de trabalho mais adversas. Essa é a dimensão do problema. E, dentro  dele, ampliar o seguro desemprego é legítimo. O Estado garantir que os  trabalhadores desempregados tenham formas de sobrevivência é legítimo. O que não  é legítimo é o empresariado, na primeira ameaça de crise, já reduzir custos  cortando trabalho para garantir que os prejuízos em seus lucros não sejam  grandes. Os trabalhadores não são os responsáveis pela crise, mas sim o próprio  sistema de competitividade destrutiva interempresa, acentuado nesse contexto de  globalização. 
E, dentro desse cenário de globalização do capital, podemos dizer que  proposições como essa do layoff (suspensão do contrato de trabalho) fazem parte  de uma movimentação global de empresários?
Um traço muito importante da  mundialização ou globalização é que o capital se transnacionalizou e, nesse  sentido, o seu receituário. Não é por acaso que as propostas de flexibilização  atingiram praticamente todos os países do mundo que têm um certo tipo de  atividade econômica industrial e de serviços forte. Todos os países sofreram  isso: Inglaterra, França, Itália, Estados Unidos, Alemanha e até a China.
E  como as empresas são transnacionais, ainda que marcadas pelas particularidades  de cada país, elas têm um receituário que é geral. Uma das receitas mais gerais  agora é usar o momento para dar um outro salto no sentido de precarizar as  condições de trabalho. Por isso que a ideia de que o negociado se sobreponha ao  legislado é uma imposição global. Ou seja, vale o que se negocia em cada espaço  de trabalho, e não o que diz a lei. Isso porque os empresários estão achando  que, em uma situação adversa para os trabalhadores, estes aceitariam negociar  situações piores do que aquelas que estão estabelecidas na legislação.
Mas,  por outro lado, é muito importante nós percebermos que as lutas dos  trabalhadores também são globais.
Uma resistência no Brasil, no México, nos  Estados Unidos, dos trabalhadores chineses, na Alemanha, na Bolívia, na  Venezuela, na Coreia, no Japão, enfim, essas lutas que nós estamos presenciando  hoje têm uma dimensão mundial. 
Quais os caminhos práticos a se trilhar para responsabilizar os verdadeiros  responsáveis?
A primeira coisa é que mais uma vez querem responsabilizar os  migrantes pela crise. Esses trabalhadores já estão comendo o pão que o diabo  amassou. Porque, evidentemente, a primeira tacada, o fechamento dos trabalhos  mais precarizados, mostra o fundo do poço para vários setores dos trabalhadores.  Por exemplo, os decasséguis brasileiros que estão no Japão são mandados embora  de suas empresas e não têm mais onde dormir, pois, no geral, moram em  alojamentos das companhias.
O primeiro desafio então é resistir e impedir que  essas mudanças sejam impostas agora nessa situação de crise. E só há um jeito de  impedir essa medidas, entre aspas, de flexibilização: resistir de modo  organizado, nos locais de trabalho, com apoio do sindicato. E também com apoios  de todo tipo, que permitam mostrar para a sociedade que não é justo a classe  trabalhadora pagar pela crise.
O empresariado tem uma visão microcósmica. Ele  pensa assim, “tem crise, eu vou arrochar, diminuir os custos da minha empresa e,  então, desempregar”. Só que essa racionalidade empresarial gera uma monumental  irracionalidade na sociedade.
Porque explode e aumentam os bolsões de  desempregados, de precarizados, de miseráveis e isso cria uma sociedade na qual  não é mais possível viver.
Não adianta o empresariado andar de carro blindado  ou morar em condomínios fechados ultrassecretos quando, em algum momento, ele se  torna vulnerável, dada essa verdadeira guerra civil latente que existe nas  grande capitais do mundo. Assim, o desafio, agora, é questionar que sociedade  nós queremos. Faz sentido uma sociedade que, numa primeira crise, penalize os  que não são culpados por ela? Faz sentido jogar bolsões de trabalhadores nas  ruas, na medida em que eles não terão outra alternativa de trabalho? Ou não será  o momento do empresariado pensar num plano de sociedade e não no seu plano  microcósmico e dizer: “Agora é o momento do empresariado pagar por  isso”?
Sabe por que, nos Estados Unidos, uma parte importante do Congresso  não concedeu recursos para as montadoras? Pois disseram que os recursos eram  para desempregar trabalhadores e os altos gestores não teriam nenhuma redução  nos seus monumentais ganhos. Ou seja, eles foram os responsáveis pela crise e  não foram penalizados. Por isso, uma parte dos que disseram não a esse subsídio  para General Motors, Ford e Chrysler perguntaram: “qual vai ser a contrapartida  que essas empresas vão dar? Elas vão tocar nos seus ganhos, nos seus lucros, nos  seus benefícios?” 
E a crise abre uma possibilidade real da sociedade fazer esse  debate?
Claro, primeiro porque uma grande parte da esquerda acreditou que o  capitalismo era a única alternativa e está há décadas tentando consertar o  inconsertável. Mas agora o capitalismo está numa crise profunda. A sociedade  está em ebulição e uma parte importante dos movimentos sociais e dos partidos de  esquerda tem a consciência de que o capitalismo não é o remédio. E é nesse  momento de tensão, de crise profunda, que nós somos chacoalhados a buscar a  alternativa.
A virada do século 19 para o 20 foi um momento de turbulência. A  guerra mundial, a disputa interimperialista. Naquele momento se viveu uma era  turbulenta que balançou os alicerces da sociedade instaurada. Fazendo as devidas  diferenciações, nós estamos também numa época assim. O que está acontecendo na  Venezuela? Na Bolívia? No Equador? São exemplos alternativos, são movimentos  populares fortes, há uma impulsão da luta social dizendo, “não queremos a mesma  resposta”. Diferente do caso brasileiro, no qual o governo é um partícipe da  ordem.
Mas há na luta latino-americana sinais do novo, contra a privatização  do petróleo, da água, dos recursos naturais. Lutas sociais pedindo mudanças  políticas mais profundas. A América Latina está vivendo novas experiências. Há  também no mundo asiático uma tensão diária, lutas sociais. É evidente que nós  estamos presenciando no mundo hoje algo muito diferente do que [Jürgen] Habermas  chamou há 20 e tantos anos de “pacificação das lutas sociais”. Nós estamos  vivendo um momento de tensão das lutas sociais. E isso é muito importante,  porque é nesse quadro de tensões que, por exemplo, um lema que estava  completamente abandonado voltou a ser lema inclusive de alguns governos: o  socialismo do século 21. Você deve se recordar que há dez anos se dizia que o  socialismo tinha morrido. 
Só que mesmo esses governos ainda não apontaram saídas para a  crise.
Certamente. O quadro de crise, dessa vez, começou nos Estados Unidos  há pelo menos um ano, mas a sua forma avassaladora, intensa, se desenvolveu nos  últimos cinco, seis meses. Agora, veja, esses governos estão, ao seu modo, há  anos, tomando medidas preventivas importantes.
Quando o governo [Hugo] Chavéz  impediu a privatização da PDVSA, há 10 anos, ele estava tomando uma medida  decisiva para que o futuro da Venezuela não fosse leiloado, como havia sido o do  México na crise dos anos de 1990. Na ocasião, uma parte do petróleo mexicano se  tornou de utilização direta dos EUA. A saída não tem um receituário. Até porque  ninguém sabe, com todas as letras, qual é a sua amplitude e fundamentação mais  estrutural. Há reflexões importantes nessa direção, mas nós estamos carentes de  estudos mais aprofundados na perspectiva crítica.
De todo modo, é muito  importante saber que a saída é a auto-organização popular, não uma série de  medidas. Não adianta o governo dos EUA estatizar os bancos, isso é chafurdar o  Estado em um sistema financeiro que ele não controla. Os desafios são mais  profundos. Em um segundo plano, [a saída para a crise] passa por preservar os  direitos até aqui conquistados e não permitir que eles sejam destruídos. Em  terceiro lugar, é preciso avançar e fazer com que qualquer penalização sobre os  trabalhadores seja, na medida do possível, impedida. Essas são as medidas que  podem ser tomadas.
É evidente o esforço da Venezuela, da Bolívia, do Equador  e de Cuba, que sabem que é mais fácil sair desse quadro crítico em bloco. Essa é  uma diferença muito clara entre o governo Lula e o governo venezuelano. O  primeiro imagina que é possível sair dessa crise integrando- se com alguma  autonomia no mundo globalizado, ao passo que Venezuela, Bolívia, Equador etc.  estão buscando uma forma de integração que não seja dependente das regras  destrutivas do mercado. 
Alguma consideração ainda a fazer?
Quem sabia, no início do século 20,  quais seriam as alternativas possíveis? Ninguém. E olha que se tinha uma camada  de intelectuais revolucionários que era majestosa, brilhante. Quer dizer, no  século 21, a humanidade tem que trazer para si o desafio de pensar que sociedade  ela quer. Ela quer manter essa sociedade destrutiva como está, na qual todas as  penalizações incidem sobre as classes que vivem do trabalho? Ou vai buscar uma  alternativa na qual a dignidade do trabalho será dotada de sentido contra as  regras destrutivas do mercado? 
FOnte: Jornal Brasil de Fato
Foto: http://www.gutierrez.pro.br/im/charge_fabrica.jpg

| Por Immanuel Wallerstein | 
| Algo estranho está a acontecer na América Latina. As forças de direita na região têm condições de obter um melhor desempenho durante a presidência de Barack Obama do que durante os oito anos de George W. Bush. Este liderava um regime de extrema-direita que não tinha qualquer simpatia pelas forças populares latino-americanas. Pelo contrário, Obama lidera um regime centrista que tenta replicar a "política de boa vizinhança" que Franklin Roosevelt proclamou como forma de sinalizar o fim da intervenção militar directa dos Estados Unidos na América Latina. Durante a presidência de Bush, a única tentativa séria de golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos ocorreu em 2002 contra Hugo Chávez na Venezuela, mas falhou. Foi seguida por uma série de eleições em toda a América Latina e nas Caraíbas, quase todas ganhas por candidatos de centro-esquerda. O ponto alto foi uma reunião no Brasil em 2008 - para a qual os Estados Unidos não foram convidados e onde o presidente de Cuba, Raúl Castro, recebeu tratamento de herói. Desde que Obama assumiu a presidência, houve um golpe de Estado bem sucedido em Honduras. Apesar da condenação de Obama, a política norte-americana tem sido ambígua, e os líderes do golpe ganharam a aposta de se manter no poder. Há pouco tempo, no Paraguai, o presidente católico de esquerda Fernando Lugo conseguiu evitar um golpe militar. Mas o seu vice-presidente, Federico Franco, de direita, está a manobrar para obter de um Parlamento nacional hostil a Lugo um golpe de Estado que assuma a forma de impedimento (impeachment). E os dentes militares estão a cerrar-se numa série de outros países. Para entender esta aparente anomalia, devemos observar a política interna dos Estados Unidos e como ela afecta a sua política externa. Era uma vez - e não há muito tempo - um país onde os dois principais partidos representavam coligações de forças sociais sobrepostas, na qual a balança interna era de certa forma à direita do centro no caso do Partido Republicano e à esquerda do centro no caso do Partido Democrata. Como os dois partidos se sobrepunham, as eleições tendiam a empurrar mais ou menos para o centro os candidatos presidenciais de ambos os partidos, para conquistar a pequena fracção de eleitores "independentes" no centro. Já não é assim. O Partido Democrata é a mesma coligação ampla que sempre foi, mas o Partido Republicano foi mais para a direita. Isso significa que os republicanos têm uma base menor. O lógico seria que isso significasse muitos problemas eleitorais. Mas, como estamos a ver, não é exactamente assim que funciona. As forças da extrema-direita que dominam o Partido Republicano estão muito motivadas e são bastante agressivas. Procuram afastar todos e cada um dos políticos republicanos que considerem demasiado "moderados" e procuram forçar os republicanos no Congresso a uma atitude uniformemente negativa em relação a todas as propostas do Partido Democrata, e particularmente do presidente Obama. Os compromissos políticos já não são vistos como politicamente desejáveis. Pelo contrário. Os republicanos são pressionados a marchar ao ritmo de um único tamborileiro. Entretanto, o Partido Democrata age como sempre agiu. A sua ampla coligação vai da esquerda ao centro-direita. Os democratas no Congresso investem quase toda a sua energia política na negociação uns com os outros. A consequência é que é muito difícil aprovar legislação significativa, como vemos actualmente na tentativa de reformar as estruturas de saúde norte-americanas. Qual o significado para a América Latina (e para outras partes do mundo)? Bush podia obter quase tudo o que quisesse dos republicanos no Congresso, no qual tinha uma clara maioria nos primeiros seis anos do seu regime. Ocorriam debates reais no círculo executivo interno de Bush, que era basicamente dominado pelo vice-presidente Cheney nos primeiros seis anos. Quando Bush perdeu as eleições para o Congresso de 2006, a influência de Cheney entrou em declínio e a política mudou ligeiramente. A era Bush ficou marcada por uma obsessão pelo Iraque e, numa extensão menor, pelo resto do Médio Oriente. Ainda sobrou alguma energia para lidar com a China e a Europa ocidental. A América Latina ficou para trás na perspectiva do regime Bush. Para a sua frustração, a direita da América Latina não teve o habitual compromisso a seu favor, que esperava e queria, por parte do governo dos EUA. Obama enfrenta uma situação totalmente diferente. Tem uma base diversa e uma agenda ambiciosa. A sua postura pública balança entre uma firme posição centrista e gestos moderados de centro-esquerda. Isso torna a sua posição política essencialmente frágil. Obama desilude os eleitores de esquerda, e a realidade de uma depressão mundial faz com que alguns de seus eleitores centristas independentes se afastem dele por medo de uma dívida nacional crescente. Para Obama, tal como para Bush, a América Latina não está no topo das prioridades. Contudo, Obama (diferente de Bush) está a lutar muito para manter a cabeça à tona da água política. Está muito preocupado com as eleições de 2010 e de 2012. Compreende-se. A sua política externa é consideravelmente influenciada pelo seu potencial impacto nestas eleições. O que a direita latino-americana faz é tirar vantagem das dificuldades políticas internas de Obama para pressioná-lo. Dão-se conta de que ele não tem a energia política disponível para frustrá-los. Além disso, a situação económica mundial tende a prejudicar os regimes no poder. E na América Latina de hoje são os partidos de centro-esquerda os que estão no poder. Se Obama conseguisse algum triunfo político importante nos próximos dois anos (uma legislação de saúde decente, uma retirada real do Iraque, a redução do desemprego), isso complicaria, realmente, o retorno da direita latino-americana. Mas conseguirá ele esses triunfos? Immanuel Wallerstein Comentário nº. 269, 15 de Novembro de 2009 Tradução de Luis Leiria | 





 
 