sábado, 31 de outubro de 2009

Resumo - Questão Agrária

A agricultura e a pecuária no Brasil: Estrutura agrária
Latifúndio, monocultura, escravidão
O modelo implantado no Brasil no período colonial era fundamentado no trinômio: grande proprie­dade. monocultura de produtos destinados ao mercado externo e mão-de-obra escrava. Nos séculos XVI e XVII a cana-de-açúcar era o produto predominante. O algodão e o fumo destacavam-se como culturas secundárias. Outra característica marcante dessa época foi o fato de as terras serem tratadas como "produto des­cartável", pois. quando se esgotavam, eram substi­tuídas por outras. Isso ocorria porque a extensão ter­ritorial era grande, e as terras eram consideradas recurso inesgotável. Já independente, o pais conheceu a riqueza e a prosperidade da cultura do café (1870-1929), que foi a grande responsável pela ocupação de extensas áreas dos estados de São Paulo e Paraná, principalmente.

A agricultura brasileira após a industrialização
A realidade das atividades do campo reflete atual­mente a transição do modelo econômico do país de agroexportador para subdesenvolvido industrializa­do. Conforme a indústria se tornava o eixo principal da economia brasileira - processo consolidado a par­tir da década de 1950, quando a economia do país era cada vez mais controlada pelas transnacionais -, a agricultura ficava mais dependente e subordinada à indústria e aos interesses econômicos de grupos bra­sileiros e internacionais.
As tecnologias tradicionais foram substituídas por novas matrizes tecnológicas, as quais incorporaram a mecanização e a utilização abusiva de insumos químicos. Era o campo se industrializando. Alberto Passos Guimarães (1979, 222 e seguintes) denominou esse período de “Revolução Verde”. José Graziano da Silva (1980, passim) prefere a expressão “modernização dolorosa”, por revelar, de um lado, a industrialização do campo, e, de outro, os problemas dela decorrentes, como o êxodo rural, o inchaço das grandes cidades, o aumento da concentração fundiária e da pobreza etc. O resultado da “modernização dolorosa” e das políticas públicas aplicadas pelos governos militares foi à legitimação do modelo agrícola tradicional e a não realização da reforma agrária.
Podemos afirmar que a agricultura brasileira atual apresenta as seguintes características, muitas delas herdadas do período colonial:
· Industrialização da agricultura: no Centro-Sul do Brasil, grande parcela das lavouras está inserida no processo da industrialização da agricultura, em que todas as etapas da produção (o que, quando e quanto produzir, o tamanho da área a ser culti­vada etc.) são controladas pela indústria. Portan­to, o meio urbano controla o rural. Nesse proces­so que subordina o campo à cidade, é marcante a presença de grupos transnacionais. Podemos citar como exemplos a Nestlé, Cragill, Bungue (alimentos), a Monsanto (sementes) e a Massey Fergusson, Agralle, Ford (tratores e máquinas).
· Predomínio da agricultura extensiva: exploração de grandes extensões de terra, concentradas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O uso redu­zido de capital, máquinas, adubos e fertilizantes gera baixa produtividade agrícola.
· Subutilização do espaço agrícola: menos de 10% do espaço geográfico brasileiro é aproveitado economicamente no cultivo de lavouras permanentes (que durante muitos anos oferecem várias colheitas), como as de café e banana, e de lavouras temporárias (que oferecem uma única safra e por isso são cultivadas anualmente), como as de milho e cana-de-açúcar.
· Predominância da produção de gêneros agrícolas destinados à exportação, com prejuízo aos produ­tos alimentícios.

Brasil - Principais produtos agrícolas
Nossos principais produtos agrícolas para ex­portação são a soja e seus derivados, a cana-de-açú­car, o suco de laranja e o café. Essas lavouras ocupam nossos mais férteis solos cultiváveis, são dotadas das mais modernas máquinas do setor e beneficiadas por avançados estudos no campo biotecnológico. Entretanto, o lucro gerado pela exportação des­ses gêneros não é revertido para o setor. Ajuda a pagar a dívida externa e a comprar bens manufaturados de tecnologia de ponta para o nosso parque industrial. Na tabela de gêneros para o mercado interno destacam-se o feijão, a mandioca e o algodão. Além desses, são cultivados arroz, batata, cebola e milho. Nessas culturas, que ocupam muitas vezes terras de pior qualidade, não há aplicação de técnicas sofistica­das, como nas lavouras de exportação.
As condições naturais (clima, solo) em nosso país são, de modo geral, favoráveis às atividades agrárias. Como já ressaltamos, os problemas de nossa agricultura estão mais ligados à herança colonial de um modelo voltado para a exportação e à falta de uma política de apoio ao setor agrário mais eficiente. Atravessado pelo Equador e estendendo-se além do trópico de Capricórnio, o Brasil tem vocação para uma diversificação de produtos agrícolas, apesar do predomínio de produtos tropicais. Podemos classificar os tipos de lavoura pratica­ dos no Brasil de duas formas:

De acordo com o objetivo da produção:
1. Agricultura comercial: algodão, cana-de-açúcar, soja. Nos últimos anos esse modelo de produção passou a ser denominado de agronegócio – que é entendido como o monocultivo de exportação até então chamado de agribusiness, ganhou sua expressão na língua portuguesa: o agronegócio. Tratava-se de substituir e diferenciar a agri-cultura do agro-negócio. É considerada uma atividade econômica voltada para a produção de commodities (mercadorias) para o mercado mundial. Não pode ser confundido com a atividade econômica milenar de produção dos alimentos necessários e fundamentais à existência da humanidade. Mas, sim um modelo que busca incessantemente Garantir as condições de produção convenientes a acumulação ampliada, as custas da exploração do trabalho e da natureza, chancelando assim a apropriação e o controle do território.

Características do agronegócio:
· Conjunto de empresas capitalistas que estão relacionadas aos processos de produção, beneficiamento, industrialização e comercialização de produtos subprodutos de origem agrícola, pecuária, florestal e agroextrativista;
· Produção monocultora de commodities destinadas prioritariamente para exportação;
· Adição de modelo tecnológico mais avançado (mecanização e automatização da produção, sementes transgênicas, etc) adepto grande escala;
· Controle oligopolista das terras (concentração), águas, florestas, biodiversidade, recursos naturais;
· Controle das políticas publicas, dos meios de comunicações, economia, tecnologia, formação da opinião publica, etc;
· Pouca mão-de-obra ou superexploração do trabalho (neo-escravidão ou trabalho degradante);
· Maximização dos lucros.

Agricultura de subsistência: feijão, arroz, milho, mandioca, que podem também ser produzidos comercialmente. Alguns autores reelaboraram esse conceito e passaram a denominá-la de agricultura camponesa ou familiar. É entendida como aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Essa atividade não é necessariamente do adapta do produtivismo, ou seja, não está baseada na produção de uma única cultura e com exclusividade para o mercado e nem se utiliza predominantemente de insumos externos. Seu potencial de produção de alimentos está na diversidade, no uso múltiplo dos recursos naturais. Nas regiões onde há concentração de pequenos agricultores, a desigualdade é menor e, por conseguinte os índices de desenvolvimento estão entre os maiores.
Enquanto, a agricultura capitalista se realiza a partir da exploração do trabalho assalariado e do controle político do mercado; a agricultura camponesa ou familiar é intensamente explorada por meio da renda capitalizada da terra, ficando somente com uma pequena parte da riqueza que produz, a maior parte é apropriada pelas empresas que atuam no mercado.
Característica campesinato:
· Pequena propriedade;
· Trabalho familiar;
· Produção diversificada de alimentos - autoconsumo e excedentes;
· Busca pela autonomia e controle do processo produtivo;
· Produção ligada à natureza (agricultura orgânica, agroecologia, sementes crioulas); Interação entre saberes tradicionais e conhecimento científico;
· Ações comunitárias (solidariedade: mutirão, troca de dias de serviço, serviços de transporte, uso de máquinas; festividades culturais e religiosas, etc.)
· Resistência X subordinação;
· Ações coletivas (luta política);

A agricultura ainda pode ser classificada em função da periodicidade da safra:
Lavoura temporária: em que os produtos são cultivados anualmente e têm uma única safra.
Lavoura permanente: em que os produtos são plantados em determinadas épocas, oferecendo várias colheitas em anos consecutivos. São produtos quase sempre de agricultura comercial: café, cacau, laranja, maçã, banana e uva.

Estrutura agrária brasileira
À forma como as propriedades rurais estão distribuídas segundo suas dimensões denominamos estrutura fundiária. A principal característica da estrutura fundiária brasileira é o predomínio de grandes propriedades. As origens dessa distribuição desigual de terras em nosso país estão em nosso passado colonial. As capitanias hereditárias que inseriram o Brasil no sistema colonial mercantilista, foram os primeiros latifúndios brasileiros: a colônia foi dividida em quinze grandes lotes entre doze donatários.
A expansão da lavoura açucareira no litoral manteve o latifúndio como uma de suas características, ao lado da monocultura e da escravidão da mão-de-obra africana no sistema de plantation, voltado para a exportação. Portanto, a ocupação das terras brasileiras aponta para uma acentuada concentração de terras.
Foi a Lei de Terras, promulgada em 18 de agosto de 1850, que praticamente instituiu a propriedade privada da terra no Brasil. Ao determinar que as terras públicas ou devolutas (ociosas) só poderiam ser adquiridas por meio de compra, essa lei limitou o acesso à posse de terras a quem tivesse recursos para satisfazer essa condição.
Dessa forma, imigrantes europeus recém-chegados, negros libertos e pessoas sem recursos ficaram sem direito às terras livres, que foram compradas por abastados proprietários rurais.
Com o passar do tempo, essa desigual distribuição de terras acabou gerando conflitos cada vez mais violentos e generalizados entre proprietários e não proprietários, As décadas de 1950 e 1960 marcaram o surgimento de organizações que lutavam pelos direitos dos trabalhadores rurais. Entre elas, podemos citar as Ligas Camponesas e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
Membros do regime militar (1964-1985), preocupados com o descontentamento social no campo, elaboraram um conjunto de leis para tentar controlar os trabalhadores rurais e acalmar os proprietários de terras. Essa tentativa deu-se por meio de um projeto de reforma agrária para promover uma distribuição mais igualitária da terra, que resultou no Estatuto da Terra, cujos pontos principais veremos a seguir.

Estatuto da Terra - Lei n° 4 504, de 30 de novembro de 1964

Os objetivos finais dessa lei eram a execução da reforma agrária e a promoção da política agrícola. Os principais pontos do Estatuto da Terra consistiam em classificar os estabelecimentos rurais por sua "função social".
O primeiro parágrafo da lei diz o seguinte: a pro­priedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e os que a cultivam.
No texto da lei foram considerados os seguintes tipos de estabelecimentos rurais:
I. Imóvel rural. Área que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, seja pela iniciativa privada seja pela iniciativa pública.
II. Propriedade familiar. O imóvel rural explorado pelo agricultor e sua família e que lhe garanta trabalho e subsistência com área máxima estabelecida por região.
III. Minifúndio. O imóvel rural de área e possibilidades inferiores à propriedade familiar.
IV.
Latifúndio:
a) Por dimensão. Propriedades com área superior a seiscentas vezes o módulo rural fixado para a região onde se localiza.
b) Por exploração. Propriedades que tenham área menor do que o estabelecido, mas que esteja sendo mantida inexplorada ou deficientemente explorada, para fins especulativos, não podendo ser considerada uma empresa agrária.
V. Empresa rural. É o imóvel rural explorado econômica e racionalmente por pessoa física, jurídica, pública e privada. Entre as atividades realizadas no estabelecimento estão as áreas de cultura, reflorestamento, matas, pastagens e benfeitorias. Possui de 1 a 600 módulos rurais de área.
VI. Módulo rural. É o modelo ou padrão que deve corresponder à propriedade familiar. A área do módulo rural vai depender das características ecológicas e econômicas de onde está localizado. É claro que as dimensões do módulo rural em áreas de pecuária extensiva vão ser bem maiores do que em áreas de policultura comercial.

O módulo fiscal
Em 1993, durante o governo do presidente Ita­mar Franco, a Lei n° 8 629 reafirmou que a terra tem de cumprir uma função social. Foram definidos novos conceitos referentes às dimensões e classificações dos imóveis rurais. Com base no conceito de módulo rural foi utilizado o conceito de módulo fiscal.
Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (lncra), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, entende-se por módulo fis­cal a unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada região, considerando os seguintes fatores:
· Tipo de exploração predominante no município;
· Renda obtida com a exploração predominante;
· Outras explorações existentes no município que, embora não sejam predominantes, são significati­vas em função da renda e da área utilizada;
· Conceito de propriedade familiar.
O tamanho do módulo fiscal varia de região para região, pois depende de alguns fatores, como as características do clima de cada área ou região. Ainda segundo a Lei n° 8629, ficou assim a clas­sificação dos imóveis rurais quanto ao tamanho:
a) Minifúndio: o imóvel rural com área inferior a um módulo fiscal.
b) Pequena propriedade: o imóvel rural de área compreendida entre um e quatro módulos fiscais.
c) Média propriedade: o imóvel rural de área superior a quatro e até quinze módulos fiscais.
d) Grande propriedade: o imóvel rural de área superior a quinze módulos fiscais.

Características da estrutura fundiária brasileira


Existe uma concentração muito grande de ter­ras em nosso país, onde poucos latifúndios ocupam a maior parte da área total brasileira. A desigualdade na distribuição de terras no país permaneceu inalterada nos últimos 20 anos. Segundo o senso agropecuário do IBGE de 2006, enquanto as unidades rurais com até 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total dessas unidades, a fatia ocupada pelas propriedades com mais de mil hectares concentram mais de 43% da área total. Esses dados revelam uma realidade rural semelhante aos últimos censos produzidos pelo órgão, em 1996 e 1985.
Como conseqüência temos um grave quadro socioeconômico:
· Poucas propriedades rurais com 1 000 hectares ou mais concentram mais de 40% da área total do país, geralmente, uma grande concentração fun­diária pode gerar terras ociosas e improdutivas por­que seus donos aguardam melhores preços para ar­rendá-las ou vendê-las (estão concentradas nas regiões Norte e Centro-Oeste).
· Muitas propriedades rurais não chegam a possuir 3% da área total, inviabilizando, muitas ve­zes, o plantio de algum produto. A despesa com se­mentes pode ser maior que o montante obtido com a colheita.
· Êxodo rural como conseqüência da mecanização em algumas grandes propriedades rurais no Centro­Sul e entre os pequenos proprietários, porque pro­duzem pouco, ficam endividados e não têm capital para investir.
· Aumento do número de desempregados e subem­pregados que migram para as periferias das cida­des e acabam ocupando áreas de mananciais.
E o fato mais grave: o aumento dos conflitos so­ciais no campo. Mais de 50% dos conflitos no Brasil ocorrem. respectivamente, nas regiões Nordeste e Norte. São regiões de grande concentração de propriedades ru­rais e de imóveis improdutivos, onde muitas vezes a polícia é mal preparada e mal equipada e os latifun­diários impõem sua vontade às leis.
Outro triste exemplo da violência no campo são os inúmeros assassinatos e conflitos entre 1991 e 1998, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Incra e o MST. Soma-se a esse quadro brutal e desu­mano o uso improdutivo de muitas propriedades ru­rais que geram o ciclo: êxodo rural-desemprego-vio­lência. A porcentagem dos imóveis improdutivos no Brasil mostra a necessidade urgente de uma política agrícola e de uma reforma agrária que contemplem os trabalhadores rurais excluídos. A forma de obter a propriedade da terra fez sur­gir duas figuras que estão freqüentemente envolvi­das nos conflitos pela terra: o posseiro e o grileiro.
Posseiro. Indivíduo que tem a posse da terra e nela trabalha sem. porém, possuir o título de pro­priedade.
Grileiro. Pessoa que toma posse da terra de outros, usando para isso falsas escrituras de propriedade. A Amazônia é a região que mais sofre a ação de grileiros; na maior parte do território amazônico não existem títulos válidos de propriedade de terras.

Tensão no campo
Nos anos 1950, os trabalhadores rurais começa­ram a organizar sindicatos que tiveram sua expressão máxima nas Ligas Camponesas de Francisco Julião, na região Nordeste, duramente combatidas pelo regime militar.
Entretanto foi no Rio Grande do Sul. na década de 1970, que surgiram os primeiros movimentos dos trabalhadores rurais sem terra. Esses movimentos se espalharam por outros estados e reuniram um núme­ro cada vez maior de adeptos. Em 1984, foi criada a entidade que tem por objetivo fazer uma reforma agrária rápida e justa - o MST.
Entretanto, a interpretação do que é "função so­cial" da terra é feita de modo diferente pelo governo e pelos proprietários rurais. Os invasores do MST ar­gumentam que estão tomando posse de terras improdutivas e o outro lado considera essa atitude um ato que fere o direito de propriedade.
Esses diferentes pontos de vista têm causado vio­lentos conflitos com baixas em ambos os lados, embora o número de trabalhadores rurais mortos nesses emba­tes seja bem maior que o de policiais ou de homens con­tratados por fazendeiros para defender suas terras. Muitas vezes, grileiros que pretendem lucrar com a especulação imobiliária promovem verdadeiras chacinas de posseiros e famílias que ocupam a terra para produzir.

As relações de trabalho no campo
Geralmente encontramos entre os trabalhadores rurais brasileiros baixos indicadores socioeconômicos, como altas taxas de natalidade, elevado analfabetismo pequena qualificação profissional e baixa remuneração. Além disso eles sofrem com a falta de cumprimento da legislação trabalhista por parte de alguns patrões e o elevado número de acidentes com ferramentas, como facões. Quanto mais distantes das principais cidades e capitais mais tensas são as relações sociais no campo.
O trabalho assalariado temporário é a forma predominante no Brasil. Esse predomínio é conseqüência do processo capitalista (capitalização da atividade agrícola) que por um lado aumenta a produtividade rural (máquinas, irrigação, sementes selecionadas) e por outro dispensa o trabalhador residente ou permanente (aumento do número de assalariados). Tivemos no Brasil uma grande redução das modalidades tradicionais de trabalhadores rurais (permanentes, residentes colonos e parceiros) e o aumento de trabalhadores temporários sem vínculo empregatício.
Geralmente, eles recebem no fim do dia pelo serviço prestado trabalhando no plantio ou na colheita de cana-de-açúcar, laranja ou café. Moram na periferia das cidades onde os aluguéis são menores., recebem a denominação de peões na região Norte co­rumbás nas regiões Centro-Oeste e Nordeste, e bóias-­frias nas regiões Sul e Sudeste.

Outras formas de trabalho no campo
Trabalho familiar. Realizado geralmente nas pe­quenas e médias propriedades rurais de subsistência. A falta de capital para investir na lavoura e as secas periódi­cas têm aumentado o número de trabalhadores familia­res que abandonam o campo e migram para as periferias das cidades. onde se tomam trabalhadores temporários. Uma exceção entre os trabalhadores familiares é encon­trada nas áreas vizinhas dos grandes centros urbanos (cinturões verdes). porque eles conseguem vender sua produção para os centros de abastecimento. redes de supermercados, feiras livres e até em carros ou cami­nhões que percorrem as ruas dessas cidades.
Arrendamento: Forma de utilização da terra destinada ao cultivo ou à pastagem que o proprietário arrenda (aluga) a quem tem capital para explorá-la. É comum no interior de São Paulo um grande proprietário arrendar propriedades menores vizinhas para o cultivo da cana-de-açúcar.
Parceria: Forma de utilização da terra em que o proprietário dispõe de sua terra para um terceiro (o parceiro), que a cultiva. Em troca, o parceiro entrega ao proprietário parte de sua colheita.
Posseiro: agricultor pobre que ocupa terras abandonadas; legalmente, pode valer-se do usucapião para reclamar a posse definitiva das terras após ocupá-las por certo tempo (quinze, dez ou cinco anos, dependendo dos casos estabelecidos em lei).
Meeiro: trabalhador, geralmente desprovido de terras, que oferece sua mão-de-obra e seus equipamentos em troca de metade da produção, conforme acordo firmado com o proprietário d terra a ser trabalhada.
Trabalho infantil: O censo de 2006 revelou que havia mais de 1 milhão de crianças com menos de 14 anos trabalhando na agropecuária.
Trabalho escravo: Infelizmente no Brasil ainda persiste uma moda­lidade desumana de trabalho em áreas agrícolas - o trabalho escravo. Segundo a Organização Mundial do Trabalho, o país está entre os que apresentam mais problemas relacionados a essa questão. Uma forma ainda comum em algumas regiões do país é a prestação de serviços ao proprietário para saldar dívidas (escravidão por dívidas).


Questão Agrária

A questão agrária pode ser explicada pelo movimento do conjunto de problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações capitalistas de produção.
Nesse contexto a Geografia estuda e explica as forma como as sociedade utiliza os bem da natureza - que é a terra . Portanto é o processo de ocupação humana no território. A História estuda e explica a evolução das lutas políticas e da luta de classe para o domínio e o controle dos territórios e da posse da terra.

Problemática da questão agrária:
§ Concentração da estrutura fundiária;
§ Processos de expropriação, expulsão e exclusão dos trabalhadores rurais: camponeses e assalariados;
§ Luta pela terra, pela reforma agrária e pela resistência na terra;
§ Produção, abastecimento e segurança alimentar;
§ Políticas agrícolas;
§ Acesso ao mercado;
§ Campo e a Cidade;
§ Qualidade de vida e a dignidade humana.
§ Renda capitalizada da terra;
§ Superexploração do trabalho e trabalho degradante;
§ Agronegócio e agricultura de precisão;
§ Impactos ambientais;

Sendo a questão agrária um elemento estrutural do capitalismo, ou seja, um conjunto de problemas constantes, não é possível ser solucionada. Podemos amenizá-la, diminuir suas escalas através de medidas de caráter político e socioeconômico para amenizar a intensidade dos problemas. Nesse sentido temos: As políticas públicas por parte do Estado (reforma agrária, subsídios para a agricultura camponesa) e a luta dos trabalhadores como catalizadores do processo de “amortecimento” da questão agrária.

Porque não é possível eliminar os problemas agrários?
O pequeno agricultor, o camponês está em constante processo de destruição e recriação dentro do sistema capitalista.
Se por um lado ao entrar na competição do mercado os arrendatários ou os camponeses, pequenos produtores acabam ou sendo expropriados de suas terras se transferindo para as cidades se transformando em assalariados urbanos ou sendo assalariados do campo. Por outro lado nesse processo de diferenciação ao mesmo tempo em que o capital destrói uma parcela do campesinato em um lugar recria-o em outro lugar e em outro tempo. Seja através da resistência as tentações do mercado, produzindo somente para a subsistência ou buscando inserir-se novamente na terra por meio da luta.

Medidas de caráter político e socíoeconômico para amenizar a intensidade dos problemas:
Políticas públicas por parte do Estado;
Luta dos trabalhadores.

Pulíticas Públicas estatais
Nesse contexto o Estado vem amenizar as escaramuças entre o capital e os trabalhadores.
O estado tem o papel determinante na elaboração de políticas públicas que garantam a diminuição das desigualdades geradas pelo processo de diferenciação.
Nos países que o estado cumpre seu papel (Europa), com políticas públicas de controle fundiário, crédito, e subsídios para os camponeses, o processo de expropriação é menos intenso.
O Estado e o Congresso são controlados pelos interesses do empresariado e dos ruralistas, são raríssimas as políticas públicas que contribuam para o desenvolvimento da agricultura camponesa.
Reforma agrária – Mecanismo capitalista para amenizar as mazelas da reprodução ampliada do capital.


Política Fundiária
A política fundiária deve visar e promover acesso à terra daqueles que saibam produzir, dentro de uma sistemática moderna, especializada e profissionalizada. E, nesse contexto, a terra tem uma função social, que é justamente a produção agrícola para alimentar a população humana e a sociedade urbanizada. E a redistribuição das terras é normalmente um dos principais objetivos de qualquer programa de reforma agrária.

Função Social
O Estado mesmo reconhecendo o direito à propriedade privada tem o poder de intervir em todos os bens que se encontram em seu território. São meio de intervenção na propriedade: a desapropriação, a servidão administrativa, a ocupação, a requisição e a limitação administrativa. Esses pressupostos estão plenamente amparados nos preceitos constitucionais. O Estado tem o dever constitucional de realizar uma ampla reforma agrária.

Reforma agrária é “Conjunto de medidas que visa a promover uma melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”. (Estatuto da Terra, art. 1º, § 1º).
A reforma agrária não é contra a propriedade privada no campo. Ao contrário, descentraliza-a democraticamente, favorecendo as massas e beneficiando conjunto da nacionalidade. É um imperativo da realidade social atual, devendo atender a função social da propriedade, evitando-se assim, as tensões sociais e conflitos no campo. Uma no País, moderada e sábia, será uma das causas principais do progresso nacional

A lei não ampara reforma agrária em:
Pequena e média propriedade rural, respectivamente), desde que proprietário não possua outra;
A propriedade produtiva, desde que esteja em cumprimento a função social;
Os requisitos exigidos, para que a função social da propriedade rural seja cumprida são:
· aproveitamento racional e adequado;
· utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
· observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
· exploração que favoreça bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

Nesse sentido a interpretação constitucional leva concluir que os elementos que constituem a função social da propriedade agrária, quais sejam, o elemento econômico, o elemento ambiental e o elemento trabalhista integram o conceito de propriedade produtiva. Propriedade produtiva é, pois, propriedade socialmente produtiva.

Paises que realizaram reforma agrária
EUA – 1862 – 65 ha de terras para cada colono;
Japão – feita pelos EUA depois da 2ª Guerra Mundial;
Coréia – Década de 1950;
México – O único país que realmente fez a reforma agrária: 1910, 1934, 1940 e 1960.
Egito – 1952, 1942 fixação do limite máximo de propriedades (42 ha)

Obs: Alguns países que realizaram a desconcentração fundiária: è importante observar que a reforma agrária deve ser uma política constante, pois sabemos que os mecanismos de mercado se não for controlado pelo Estado provoca a reconcentração da terra em pouco espaço de tempo, mesmo que realize uma ampla desconcentração fundiária. (veja o caso do México)

Luta dos Trabalhadores

  • As políticas estatais de distribuição de terras são insuficiente;
  • Novas relações de poder - participação dos trabalhadores nas políticas públicas.
  • Na inexistência dessa condição ou na implantação de projetos unilaterais, as lutas populares sempre foram fundamentais para o enfrentamento e as conquistas dos trabalhadores rurais.
  • A territorialização do capital é muito mais intensa que a sua recriação. Mas para os trabalhadores expropriados, que são a maior parte, e vivem na miséria e lutando contra a fome, só lhes resta lutar para mudar esse “destino”.
  • Em sua reprodução ampliada, o capital não pode assalariar a todos, sempre excluindo grande parte dos trabalhadores.
  • A manutenção do exercito de reserva, por meio do controle do desemprego , e o interesse do capital em se apropriar da renda da terra ocasionam as condições de luta contra o capital.
  • Organização dos camponeses expropriados ou em processo de exclusão – (movimentos socioterritoriais de luta pela terra)

Resumindo
Não é possível explicar a crise agrária sem consultarmos os anais da história, principalmente os fatos contribuíram para a perpetuação da concentração fundiária no Brasil. Nesse sentido os processos de ocupação do território são essenciais para tal entendimento. A organização das Capitanias Hereditárias, as sesmarias, o aspecto excludente da Lei de Terras (1850), a não distribuição terra aos escravos libertos e a expulsão dos colonos imigrantes das fazendas de café são fatos que corroboraram no aprofundamento da crise agrária. Sua face atual está voltada ao desamparo da agricultura familiar por parte dos Estado que sofre os efeitos da concorrência globalizada, subordinação da renda da terra aos oligopólios industriais e agroindustriais e da sucção de recursos pelo sistema financeiro. A ruína em massa de pequenos produtores alimenta a roda da concentração fundiária, do êxodo rural, do subemprego rural e urbano e do trabalho escravo em pleno século XXI.


PROGRAMAÇÃO
Local: Anfiteatro I – FCT/Unesp



02/11
Manhã:
(09:00) Abertura – 10 anos de Jornada: “O que fica e marca para as próximas gerações?” Marcelo Carvalhal; Fernanda Ikuta; Ana Maria Soares de Oliveira; Marcelo Mendonça; Renata Medeiros.
(10:00 – 12:00) Conferência de Abertura: “Práxis e Emancipação da Classe Trabalhadora do Capital: Atualidade do debate teórico-político”. Marildo Menegat (UFRJ); Valério Arcary (Cefet/SP). Coordenador: Fernanda Ikuta.

Tarde: (14:00 – 17:00) Sessão de Comunicações

Noite: (19:30 – 22:00) Mesa 1: “Trabalhadores e Classe Trabalhadora na Contemporaneidade: Teoria(s), Conceito(s) e Ação(es)”. Giovanni Alves (UNESP/Marília); Bernardo M. Fernandes FCT/UNESP). Coordenador: Jorge Montenegro.

03/11
Manhã: (09:00 – 11:00) Mesa 2: “O campo, a luta pela terra, as ações de resistência na América Latina: luta de classes e a construção revolucionária”. Marcelo Mendonça UFG/Catalão); Ariovaldo Oliveira Santos (UEL). Coordenadora: María Franco.

Tarde: (14:00 – 17:00) Mesa 3: "A Enfermidade do Trabalho no Século XXI. Conceitos, Desafios e Alternativas". Iracimara de Anchieta Messias (FCT/Unesp); Luiz Antonio Barone (FCT/Unesp); Cristiano Lourenço Rodrigues (Ministério Público do Trabalho). Coordenador: Thomaz Jr.

Noite: (19:30 – 22:00) "Trabalho e Cinema – Apresentação do Projeto Tela Crítica". Exibição do filme "Ladrões de Bicicleta", de Vittorio De Sica e a seguir, análise critica do filme. (Prof. Dr. Giovanni Alves – UNESP/Marília)

04/11
Manhã: (09:00 – 11:00) Seminário sobre a tese de livre docência do professor Antonio Thomaz Junior

Tarde: (14:00 – 17:00) Reunião do CEGeT.

Encerramento: 17:30 horas

05/11: Trabalho de Campo: Acampamentos e Assentamentos no Pontal do Paranapanema.
Obs.: Vagas limitadas. De acordo com o número de interessados, será fretado um ônibus ou uma van. Os custos do frete serão rateados entre os participantes.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Cadê o agronegócio? Cadê os alimentos?


Por Bernardo Mançano Fernandes
A crise atual da inflação dos preços de alimentos na maior parte do mundo derruba dois mitos.
1) O agronegócio é o grande produtor de alimentos;
2) A fome e a desnutrição são causadas pelo fato de a população não ter dinheiro para comprar alimentos, não pela falta de alimentos, que estariam sobrando.

O agronegócio produz apenas uma parte dos alimentos. A outra parte é produzida pela agricultura camponesa ou familiar, ou ainda por pequenos produtores e sitiantes, como possam ser chamados os produtores não capitalistas. Essa parte, no geral, significa metade; no particular significa mais ou menos da metade. O agronegócio pode produzir mais cana, mas são os camponeses que produzem mais café e leite. O agronegócio pode produzir mais soja, mas são os camponeses que produzem mais feijão, mandioca, cebola e banana.
Para esconder essas diferenças, os ideólogos do agronegócio construíram a imagem do agronegócio como totalidade e, nesta lógica, o campesinato seria parte disso. Ainda nesta lógica perversa, o agronegócio controla 70% dos territórios produtivos, 90% dos recursos públicos para financiamento e produz somente 50 %. E mesmo assim se projeta como mais competitivo que o campesinato, que controla somente 30% dos territórios produtivos, apenas 10% dos recursos públicos de crédito e produz 50% dos alimentos. Na verdade, agronegócio e campesinato são sistemas distintos definidos por relações sociais diferentes: capitalistas e não capitalistas. Enquanto o agronegócio concentra, o campesinato distribui.
A crise atual derruba dois mitos e revela que o agronegócio é uma farsa. A lógica das empresas capitalistas, autodenominada agronegócio, é produzir mercadorias e não alimentos. Se as mercadorias podem ser também alimentos, nem sempre os alimentos podem ser mercadorias. Não se pode pensar a soberania alimentar a partir da lógica das empresas capitalistas, porque elas não têm a preocupação de garantir o direito à alimentação. Essa preocupação é do Estado e da sociedade.
A falta de alimentos no mundo tem duas razões: aumento do consumo maior que o aumento da produção de alimentos. Não estou ressuscitando a teoria de Malthus, da progressão geométrica do crescimento da população e da progressão aritmética do crescimento da produção de alimentos. Temos terra, gente e tecnologia para produzir alimentos em abundância para todos. Todavia, o grau de concentração da riqueza, das terras, das tecnologias e dos conhecimentos é tão intenso que produziu a crise atual.
E a crise atual é resultado de quase duas décadas de políticas neoliberais que controlam o Estado, dominam ministérios e defendem os interesses das empresas capitalistas em detrimento dos interesses da sociedade. É preciso recuperar o Estado, os ministérios e as secretarias das mãos dos tecnocratas do neoliberalismo para que possamos desenvolver políticas de interesses da nação, não as políticas de interesse do patrão. A implantação de uma política de soberania alimentar é urgente para que os efeitos da crise atual sejam minimizados. O agronegócio controla hoje no Brasil 300 milhões de hectares, todavia utiliza apenas 120 milhões. Restam 180 milhões de hectares para serem utilizados na reforma agrária voltada para a produção de alimentos.
A crise atual tende a aumentar com a ampliação das monoculturas para a produção de agrocombustíveis. O planejamento territorial é urgente para evitar um colapso. É preciso definir limites para as diferentes culturas e garantir o desenvolvimento. Estamos diante de um grande desafio: romper com as políticas que promovem a concentração da população nas grandes cidades e concentram as terras no campo.
É preciso defender políticas que democratizem o acesso à terra, ao conhecimento e às riquezas. Esse desafio possui diferentes escalas. Na escala nacional as políticas de soberania alimentar garantem o abastecimento interno e na escala internacional as políticas protecionistas precisam ser equivalentes entre os países pobres e os países ricos. Isso significa o fim da Organização Mundial do Comércio, que não tem competência para defender os interesses das nações. Os interesses do comércio não podem estar acima dos interesses da soberania.
A crise atual é um indicador de uma nova etapa da história. A etapa pós-neoliberal. Como afirmou o líder camponês francês José Bové: o mundo não é uma mercadoria.
Bernardo Mançano é professor de geografia dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde preside o conselho editorial da coleção Geografia em Movimento, publicado pela Editora Expressão Popular.

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Trabalho fora da aldeia desestrutura comunidades Guarani (Parte 2)

Expansão da fronteira agrícola levou ao confinamento dos guaranis
em pequenas reservas, desarticulando a forma tradicional de vida e
organização do povo (Foto: André)


Por André Campos
Leia matéria de abertura:
Diante de um quadro de áreas exíguas, superpovoadas e desgastadas, o corte da cana ganha força como alternativa para indígenas do Mato Grosso do Sul. Como conseqüência, a própria mobilização por territórios é enfraquecida
Nas usinas de Mato Grosso do Sul, a mão-de-obra indígena é recrutada entre os índios Terenas e, principalmente, em comunidades de povos Guaranis - cujos membros se subdividem em dois grupos étnicos, Nhandevas e Kaiowás, perfazendo cerca de 40 mil pessoas. Trabalhar fora das aldeias é realidade antiga para os Guaranis. No fim do século XIX, instalou-se em seu território tradicional, no sul do estado, a Companhia Matte Laranjeira, que utilizou indivíduos da etnia - então atraídos por roupas e ferramentas, ainda em estágio inicial de contato - na coleta da erva-mate nativa.A partir da década de 1940, destaca-se a participação deles na derrubada de matas e no roço de pastagens, num sistema que ficou conhecido como "changa". Tal situação começaria a mudar 30 anos depois, quando a expansão do agronegócio mecanizado e a quase extinção de áreas ainda por desmatar reduziram a oferta de trabalho no campo. É quando surge o setor sucroalcooleiro, de longe a principal alternativa de assalariamento atual.
As causas e as conseqüências
Para Antônio Brand, coordenador do Programa Kaiowá/Guarani da Universidade Católica Dom Bosco, não é apenas dinheiro que atrai os indígenas. Num contexto de crise cultural - em que a perda de territórios levou a uma desarticulação de relações tradicionais de organização, trabalho e cooperação dentro dos grupos indígenas -, o aspecto coletivo das atividades tem, segundo o pesquisador, um apelo significativo. "É uma aventura, de certa forma, especialmente para os mais jovens", observa. "Além de ser o único jeito de conseguir alguns objetos importantes para seu prestígio dentro da reserva, é certamente a melhor forma de quebrar a monotonia e vivenciar novas experiências".
O corte de cana, no entanto, difere de outras atividades agrícolas do passado, conforme explica o acadêmico. Quando voltam das usinas, não raro os indígenas ficam apenas alguns dias nas aldeias, partindo logo em seguida para uma nova empreitada. "Antes, iam trabalhar uma semana, dez dias, e depois voltavam. Agora, é cada vez mais uma dedicação exclusiva".
Um dos efeitos mais evidentes desse "distanciamento" é a diminuição das roças internas, já combalidas por décadas de políticas assistencialistas caóticas e mal planejadas - com freqüentes atrasos na chegada das sementes fornecidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), por exemplo. Além disso, o próprio superpovoamento das terras indígenas (TIs), que impossibilita a rotatividade do cultivo, torna o solo cada vez menos produtivo devido ao uso excessivo.

Em Dourados, dificuldades na roças internas reforçam opção pelo assalariamento rural (Foto: André Campos)
A combinação desses fatores reforça a opção pelo assalariamento em tempo integral, assim como a dependência de outros elementos externos às aldeias. Dependência essa que se manifesta, por exemplo, em relação às cestas básicas, principal resposta do poder público frente às mortes por subnutrição infantil de Guaranis que sazonalmente retornam ao noticiário nacional.
A distribuição da renda da cana-de-açúcar, por sua vez, também é problemática. Muitas vezes, o dinheiro permanece apenas nas mãos dos homens, financiando um consumo de álcool que, com freqüência assustadora, surge associado a brigas, assassinatos e desestruturação familiar. A violênciaEm 2007, de acordo com o levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) - entidade ligada à Igreja Católica - foram 53 os Guaranis assassinados em Mato Grosso do Sul, a maioria devido a desentendimentos entre eles próprios. Somente entre os 13 mil moradores da TI Dourados, a maior do estado, localizada no município de mesmo nome, foram 21 as pessoas mortas. Caso fosse um município independente, seria certamente o mais violento do Brasil. Como se não bastassem elos já existentes, o facão usado nos canaviais surge com freqüência como a arma utilizada nos crimes.
Egon Heck, coordenador do Cimi no estado, é ainda mais incisivo. Ele vê uma conexão entre o trabalho nas usinas e os casos de violência que hoje assolam as comunidades Guaranis - famosas também pelos alarmantes índices de suicídios, muito maiores do que a média nacional. "Não é uma alternativa de vida, é uma alternativa que mata". Há ainda o próprio impacto físico da atividade. De acordo com Zelik Trajber, coordenador técnico da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) em Dourados (MS), problemas de coluna e outras patologias ósseas e musculares - sem mencionar os acidentes e casos de tuberculose nos alojamentos - são uma rotina entre os trabalhadores indígenas. "É muito violento, o cortador não agüenta 35 anos para depois se aposentar", atesta. Para piorar, segundo ele, o acesso à aposentadoria por invalidez praticamente inexiste.
Nos últimos anos, houve melhorias nas condições de trabalho nas destilarias, de acordo com o "cabeçante" (espécie de líder que faz a intermediação com os contratantes) L. R., da TI Dourados. Ele reitera, porém, a opinião comum de que a opção pelo corte da cana é, na verdade, uma falta de opção. "Não temos escolha. Quase não temos terra", argumenta. Os territóriosE, quando o assunto é terra, a própria vida nos canaviais coloca-se, de certo modo, como entrave às mobilizações políticas. "Levar o índio para a usina é um jeito de tirá-lo da luta por demarcação", coloca o nhandeva Otoniel Ricardo, liderança comunitária na aldeia de Caarapó (MS).

Reunião para discutir a realidade dos Guaranis: luta por mais terrirórios é questão central (Foto: André Campos)

Para o pesquisador Antônio Brand, por trás desse arranjo há um projeto político visando contornar o conflito fundiário. "O direcionamento da mão-de-obra para fora das aldeias ocorre hoje de forma mais elaborada, com as destilarias se localizando mais próximas das comunidades", exemplifica.
Entre 1915 e 1928, foram criadas no Mato Grosso do Sul oito reservas para os Guarani Kaiowás e os Guarani Nhandevas. O objetivo, pautado pela lógica de integrar os índios à sociedade, era ali reassentar os nativos espalhados pela região - e tornar tais locais verdadeiros bolsões de mão-de-obra. Dessa forma, liberavam-se as demais terras para a colonização.
De fato, nas décadas seguintes, para lá foram sendo gradualmente levados os Guaranis que ainda viviam nas florestas, removidos quando sua presença esbarrava na expansão da fronteira agrícola. Anos e anos deste processo tornaram tais reservas as áreas demarcadas com maior concentração de indígenas no país. A comunidade indígena de Dourados, pressionada pela expansão urbana, convive lado a lado com a cidade de mesmo nome.
Jorge da Silva, de 53 anos, rezador kaiowá nascido em Dourados, relata a transformação do cotidiano local. "Antigamente, a gente comia as coisas da nossa origem, caça e peixe. Agora, isso acabou", reflete. A disposição atual da aldeia, quase uma favela rural, é, segundo ele, razão de muitos conflitos - motivados inclusive pela convivência imposta com etnias distintas, como a dos Terenas, que também tiveram que se instalar na mesma área. "Agora é parede com parede, e o índio não gosta. Assim começam as brigas".
A desarticulaçãoNa cultura kaiowá, a figura do rezador desempenha papel fundamental em rituais como, por exemplo, o batismo das crianças e a bênção das sementes. Jorge da Silva conta que o dom da reza é algo que passa de pai para filho, sendo a quebra dessa transmissão, atualmente, um dos elementos que revelam a desarticulação da organização tradicional. "Tem muita gente que não quer mais, já largou porque começou a ter vergonha", conta. "O meu sogro rezava todo dia, e o filho dele acabou por aí andando de motoca igual branco." Para Antônio Brand, o agrupamento nessas reservas criou uma "realidade inadministrável" sob a ótica guarani. "Toda a organização tradicional, da economia e da religião, está centrada em núcleos macrofamiliares de 200 ou 300 pessoas no máximo", descreve. "É impossível para um guarani pensar em se organizar num ajuntamento tão grande."

Conflito de gerações reflete dilema sobre o futuro dosGuaranis no Mato Grosso do Sul (Foto: André Campos)

Além das oito reservas demarcadas até 1928 - que perfazem um total de 18 mil hectares, onde vivem mais de 80% dos guaranis do estado - há outros 22 mil hectares conquistados em mobilizações a partir da década de 1980. Existem, também, 63 mil hectares já identificados em favor desses índios, mas cuja posse ainda não ocorreu devido a impedimentos como ações na Justiça contra a demarcação. A título de comparação, a TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, possui 1,7 milhão de hectares, onde vivem cerca de 18 mil índios.
A disputa políticaO diretor-secretário da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Dácio Queiroz, classifica como "nada mais que ideológica" a atuação da Funai na identificação de TIs. "São pessoas comprometidas em ver os índios, a qualquer preço, retomando o Brasil", vocifera. Ex-prefeito de Antônio João (MS), ele próprio é parte em litígio que envolve guaranis - a área kaiowá Ñande Ru Marangatu, homologada pelo presidente Lula em 2005, incide sobre fazenda de sua posse, mas uma decisão judicial mantém as terras com os fazendeiros. A Famasul afirma que, à luz da lei, não podem ser reconhecidos como TIs aldeamentos desfeitos antes da Constituição de 1988, mesmo que em passado recente - fato que inviabilizaria diversas reivindicações atuais.Dácio Queiroz contesta ainda a política indigenista brasileira. "A Famasul entende que o índio está sendo reduzido à condição de uma sub-raça, uma espécie de reserva humana para estudos antropológicos", afirma. Na esteira do setor sucroalcooleiro, ele defende a expansão da mão-de-obra indígena para outras atividades, dentro de uma política de inclusão. "O que eles não merecem é o que o Cimi e a Funai praticam, o segregacionismo e a subcondição."
"Esperamos a capacitação e a integração de índios na agricultura brasileira", reforça Leôncio Brito, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários e Indígenas da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Em solo sul-mato-grossense, ele cita a área homologada aos Kadiwéus - 538 mil hectares onde vivem cerca de 1,2 mil índios - para questionar a relação entre terras e qualidade de vida. "Será que o índice de desenvolvimento humano deles condiz com a riqueza da qual são donos?", indaga.Há quem veja com desconfiança a idéia de que o mercado de trabalho é a saída para as comunidades Guaranis. "Considerando o preconceito contra os povos indígenas, eles estarão sempre em uma situação muito inferior nessa disputa", acredita Antônio Brand. E como atividades de monocultura tendem, no longo prazo, à mecanização, ele teme também que tal mentalidade aprofunde ainda mais a já frágil dependência externa das aldeias em relação a políticas assistenciais e trabalhos pouco qualificados. "A meu ver, se quisermos pensar na autonomia dos povos indígenas, mais do que nunca se afirma a necessidade de garantir seus territórios", declara.
Egon Heck, por sua vez, enfatiza que políticas públicas não podem se opor ao legítimo desejo de autonomia dos índios, que anseiam pela reconstrução do tekoha - palavra da língua Guarani que designa o território onde é possível viver o modo de ser da etnia, preservando relações familiares, econômicas e culturais. Enquanto o homem repensa sua relação com o planeta, ele defende a importância de respeitar modelos distintos de desenvolvimento. "Em vez de torná-los como nós, deveríamos aprender com os Guaranis."

Fonte:http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1388

Exploração de indígenas nos canaviais do MS é histórica (Parte 1)

Por André Campos
Desde o Proálcool, índios Terenas e, principalmente, Guaranis cortam cana para a indústria sul-mato-grossense. Pacto do Trabalhador Indígena, de 1999, regula a atividade, mas não garante condições dignas reais de trabalho.

Alimentação deficiente, banheiros entupidos e alojamentos precários. Esse foi o panorama encontrado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na Fazenda e Usina Debrasa, em Brasilândia (MS), durante fiscalização coordenada pelo órgão em novembro de 2007. Nos dormitórios dos cortadores de cana, havia superlotação, mofo e restos de comida pelo chão. Segundo os fiscais, também faltava água para o banho e os salários estavam atrasados. Mais de mil trabalhadores tiveram seus contratos rescindidos.Oito meses antes, o MTE já havia encontrado problemas em outra usina de Mato Grosso do Sul. Na Destilaria Centro-Oeste Iguatemi (Dcoil), em Iguatemi (MS), pertencente ao médio do trabalho Nelson Donadel, uma diligência flagrou trabalhadores sem carteira assinada, sem equipamentos de segurança e, mais uma vez, em alojamentos superlotados. Os dois casos - que apareceram com destaque entre as operações de 2007 - foram incluídos na atualização semestral da "lista suja" do trabalho escravo (veja a relação completa), divulgada semana passada. A "lista suja" congrega infratores de todo o território nacional que exploraram pessoas em condição análoga à de escravos - crime que, no Código Penal, abrange tanto situações de trabalho degradante, como as descritas, quanto de restrição à liberdade de ir e vir.
Além da localização geográfica, outra característica une as duas usinas: o emprego maciço de mão-de-obra indígena. Na Dcoil, 150 dos resgatados eram dos povos Terenas ou Guaranis. Já na Debrasa, quase todos eram índios. O Ministério Público do Trabalho (MPT) estima em 10 mil os aldeados que labutam nos canaviais do estado. Juntamente com bóias-frias trazidos - quase sempre de forma irregular - da Região Nordeste, são a principal força de trabalho utilizada pelo setor sucroalcooleiro em plena expansão.Passado e presenteA história dessa relação, porém, remonta à década de 1980, quando o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) alavancou a produção de cana-de-açúcar em terras sul-mato-grossenses. Já naquela época, havia índios cortando cana-de-açúcar nas lavouras, capinando a terra para o plantio ou trabalhando como "bituqueiros" - encarregados de recolher a matéria-prima cortada. Desde então, a regulação dessa mão-de-obra específica desafia o poder público. Trata-se de uma empreitada complexa, devido principalmente às peculiaridades culturais e jurídicas da situação dos indígenas.
E, para além das questões trabalhistas, permanece um debate mais profundo e incômodo: a atividade consiste em alternativa de emancipação ou em parte dos problemas que hoje assolam essas comunidades indígenas?
A informalidade e o improviso marcaram o recrutamento no início do Proálcool. Eles partiam das aldeias em grandes grupos rumo aos canaviais, distantes centenas de quilômetros, e lá trabalhavam por cerca de dois meses. A contratação era negociada verbalmente pelo líder do grupo, o "cabeçante" - em geral, um índio mais versado na cultura do homem branco. Em alguns casos, os postos da Fundação Nacional do Índio (Funai) estabeleciam regras pontuais e cobravam taxas comunitárias sobre os contratos.
Cícero Rufino Pereira, procurador do Trabalho no estado, descreve como "verdadeiro trabalho escravo" a situação desses indígenas na década de 1980. Ficavam, diz ele, em barracões de lona, onde bebiam água dos rios junto com os animais. Além disso, era rotina também a presença de crianças no corte da cana. "Em diversas ocasiões, a usina pagava e o cabeçante desviava o dinheiro. E muitas vezes a usina não pagava, enrolava mesmo".
Devido a pressões, houve algumas melhorias na década seguinte. Mas a carteira de trabalho só viria em 1999, ao ser firmado o Pacto do Trabalhador Indígena no estado. Alvo de muita polêmica, o registro formal teve resistência de setores da Funai e de usineiros, interessados, à época, em viabilizar um sistema de contratação dos índios por intermédio de "cooperativas". O questionamento da plena autonomia individual desses trabalhadores, amparado no próprio Estatuto do Índio - que sujeita à tutela da União aqueles "ainda não integrados à comunhão nacional" -, embasou argumentos de quem se opôs à adoção pura e simples da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Por fim, prevaleceu a carteira assinada, adotada junto com um modelo de contrato
por equipe, que prevê no máximo 70 dias para o retorno dos índios às aldeias, de modo a favorecer a continuidade da vida comunitária. Também ficou estabelecido o pagamento dos ganhos apenas no final da empreitada - para garantir, em tese, que o dinheiro chegue às famílias, face à realidade de alcoolismo e outros excessos, freqüentes nessas jornadas.
Equipamentos deproteção inadequados: um dos problemas verificadosnaDebrasa (Foto: Divulgação)
Outro ponto reiterado foi a obrigação de respeito às normas de conforto, higiene e segurança que regem as relações laborais envolvendo os demais trabalhadores rurais.
De acordo com Cícero Pereira, no entanto, o cumprimento do pacto ainda hoje é deficiente. Nos últimos anos, diligências do MPT têm gerado indenizações por danos morais quando constatadas irregularidades na contratação, segurança e alojamentos. No entanto, o procurador não generaliza os problemas do setor. Segundo ele, destilarias recém-chegadas têm mostrado boa vontade em se adequar à realidade do trabalho indígena. "Tanto é que o índio prefere trabalhar nas usinas novas", argumenta. Devido à proximidade de algumas delas às aldeias, os cortadores voltam diariamente às suas casas - novidade que, via de regra, agrada os moradores das comunidades.
Em novembro, quando a Debrasa foi autuada, a Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool (CBAA) - que faz parte do Grupo José Pessoa, dono da destilaria - questionou os procedimentos da fiscalização. "Estranhamente, os representantes da empresa foram impedidos de acompanhar a ação", afirma nota da companhia, que negou a existência de indícios de trabalho análogo à escravidão. "É válido lembrar, ainda, que a usina é a maior empregadora de mão-de-obra indígena do Mato Grosso do Sul, estado que possui a segunda maior população de índios do Brasil."
No final da década de 1990, as novas regras trabalhistas levaram a Debrasa a intensificar a mecanização das colheitas. "Diante do apelo das autoridades, voltamos a contratar índios justamente por nossa preocupação social. Estamos pagando o pato por causa disso", afirmou à época à Repórter Brasil o presidente da CBAA e do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool de Mato Grosso do Sul (Sindal/MS), José Pessoa de Queiroz Bisneto.
Sete meses depois, em junho deste ano,
55 trabalhadores foram resgatados em outra destilaria do Grupo José Pessoa - a Usina Agrisul, no município de Icém (SP). Após o episódio, o grupo foi excluído definitivamente do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne mais de 180 empresas e associações setoriais. Em ambos os incidentes, foram consideradas insatisfatórias pelo Comitê de Monitoramento do Pacto Nacional as justificativas apresentadas pelos controladores das usinas.
A reportagem procurou a CBAA e representantes do Sindal/MS para ouvir mais detalhadamente a versão dos usineiros sobre a evolução do trabalho indígena no setor, mas não obteve retorno.

Incentivo público e recrudescimentoAtualmente, cerca de dez usinas sucroalcooleiras estão em plena atividade no Mato Grosso do Sul. Em dezembro de 2007,
o governo estadual anunciou benefícios fiscais a 43 novos empreendimentos do gênero - 16 dos quais já estão sendo implantados. Essas iniciativas serão responsáveis, de acordo com o Executivo, por 76 mil novos empregos até 2012.
Fiscais autuaram alojamentos irregulares no Mato Grosso do Sul (Foto: Divulgação)
Determinado a cercear o direcionamento de recursos públicos a empresas com problemas trabalhistas, o deputado estadual Pedro Kemp (PT-MS) apresentou este ano um projeto de lei que impede a concessão de benefícios fiscais a empregadores flagrados usando mão-de-obra análoga à escravidão. Como parte do pacote de incentivos, o orçamento estadual prevê, já para 2008, uma renúncia de R$ 48,5 milhões em impostos sobre empresas de álcool combustível.
"O estado precisa de um instrumento jurídico para inibir o trabalho escravo, já que estamos em vias de receber muitas indústrias", alega Kemp. Em abril, a proposta do deputado foi rejeitada pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Assembléia Legislativa. Agora, ele estuda alternativas para conseguir aprovar um novo marco legal sobre o tema.
A reportagem procurou a Secretaria de Desenvolvimento Agrário, da Produção, da Indústria, do Comércio e do Turismo do MS (Seprotur) para saber se as empresas flagradas empregando mão-de-obra análoga à escravidão no estado beneficiam-se de incentivos fiscais. Também indagou se há, no âmbito da Seprotur, alguma orientação visando vetar tais benefícios a empregadores envolvidos com problemas do gênero. A Secretaria Estadual, no entanto, não se manifestou.
Nesse ciclo expansionista, o recrudescimento de antigas formas de exploração, alimentado pela disputa de mão-de-obra, preocupa o procurador Cícero. "Há denúncia de cabeçantes que estariam aliciando menores de idade para que peguem a carteira de outros índios, troquem a foto e vão cortar cana".
Um crime nas dependências da Dcoil, em dezembro de 2006, trouxe novamente à tona a questão do trabalho infantil - alvo de intensas campanhas na década de 1990. Na ocasião, após uma discussão, um rapaz registrado na usina como Devir Fernandes, de 24 anos, morreu após ser atingido por golpes de facão desferidos por outro indígena.
Posteriormente, descobriu-se que a vítima era outra pessoa - um jovem de 15 anos. Seus familiares ainda buscam algum tipo de reparação. A destilaria, por sua vez, nega responsabilidade sobre o caso. "Se houve crimes de falsificação de documentos e falsidade ideológica, estes não foram cometidos pela empresa", alega Wilson Marques, assessor jurídico da Dcoil. "O caso já está sendo analisado pelo Poder Judiciário, a quem compete julgar e punir o efetivo responsável, sendo certo que não fomos intimados a nos manifestar."
Fonte:
http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1387

Ignorado direito à terra inflama protesto indígena


Por Milagros Salazar
Nas duas últimas décadas, a América Latina avançou na assinatura de instrumentos internacionais e nacionais para reconhecer e proteger direitos dos indígenas. O problema é que não são cumpridos, reavivando a chama do protesto. Para os indígenas, o território está associado ao alimento vital, e também à forma como vêem o mundo, à cultura e à herança dos antepassados e à que deixarão aos seus descendentes. Com importante população aborígine, México, Colômbia, Equador e Peru ratificaram o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotado em 1989 para garantir os direitos territoriais,
sociais, culturais e econômicos dos povos indígenas e tribais. Todos, menos a Colômbia, votaram em 2007 a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. “Teoricamente, há um reconhecimento importante, mas na prática não existe”, disse ao Terramérica o senador colombiano Jesús Enrique Piñacué, da Aliança Social Indígena. O maior “vazio” na Colômbia é que o Estado não submete à consulta dos indígenas suas normas e decisões que podem afetar as comunidades, como aprovar investimento privado em seus territórios, apesar de isso ser exigido pelo artigo sexto do Convênio 169, disse Piñacué. Desde 12 de outubro, organizações indígenas colombianas protagonizam uma inusitada mobilização, em aberto desafio às políticas do presidente Álvaro Uribe e em apoio aos seus direitos coletivos.
Nesse país de 44,6 milhões de habitantes, dos quais 1,6 milhão são aborígines, a guerra interna mata um indígena a cada 53 horas, e desde 2002 pelo menos 54 mil foram expulsos de suas terras ancestrais, segundo a Organização Indígena da Colômbia. A Constituição colombiana, de 1991, reconheceu as populações nativas como autônomas, com direito à propriedade coletiva de seus territórios e a manter suas crenças, língua e formas de justiça. A Colômbia não votou a favor da Declaração da ONU, alegando problemas de segurança nacional, pois o documento recomenda que não sejam desenvolvidas atividades militares em territórios indígenas. Para elas acontecerem, as etnias devem ser consultadas.
Na Amazônia peruana, os aborígines também protagonizaram maciços protestos em agosto, exigindo a revogação de vários decretos que promovem o investimento privado em suas terras. O Congresso concordou em revogar dois decretos mais polêmicos, aprovados dentro do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos. Porém, o governo insiste que o Convênio 169 da OIT, ratificado em 1994, não dá às comunidades direito de vetar atividades em suas terras e, portanto, apenas estabeleceu, como consulta aos povos, reuniões informativas sobre concessões de exploração de minas e petróleo já consumadas. “Muitos funcionários nem mesmo conhecem o conteúdo dos convênios e outros os interpretam de maneira errada”, disse ao Terramérica Graham Gordon, da nãogovernamental Associação Paz e Esperança, que participou da elaboração do informe alternativo da sociedade civil sobre o cumprimento do Convênio. O Peru foi um dos principais defensores da Declaração da ONU, mas agora enfatiza seu caráter não vinculante. O artigo 42 desse documento diz que as Nações Unidas e os Estados “promoverão o respeito e a plena aplicação das disposições”, o que está longe de ser uma disposição jurídica de caráter obrigatório.
A Constituição peruana de 1993 reconhece a diversidade cultural e a participação política dos aborígines em cotas, mas se refere a comunidades nativas e camponesas, que ocupam 55% das terras agrícolas, e não aos povos indígenas, o que implicaria reconhecêlos além de uma delimitação territorial. O Equador conseguiu importantes avanços. Depois do levante do Inti Taymi, em junho de 1990, dirigido pela Conferência de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), o movimento indígena se converteu em um ator-chave.
Assim, os deputados que chegaram ao Congresso pelo Movimento Unidade Plurinacional Pachakutik-Novo País, conduziram a ratificação do Convênio 169 em 1997 e, no ano seguinte, o reconhecimento constitucional da consulta prévia às comunidades antes de iniciar a exploração de recursos naturais em seus territórios. Este ano, com a nova Constituição aprovada no dia 28 de setembro, o Equador se declara Estado plurinacional e intercultural e já não apenas multiétnico. Segundo as organizações nativas, 35% da população é aborígine.
Entretanto, o líder indígena Luis Macas, ex-presidente da Conaie, explicou ao Terramérica que na nova Constituição deveria estar estabelecido não a consulta prévia às etnias, mas o consentimento prévio, porque só assim o governo seria obrigado a cumprir.
As comunidades anunciam um levante se tiver início uma projetada exploração mineral em grande escala em seus territórios, mas o presidente Rafael Correa insiste em dizer que os planos permitirão obter recursos para o desenvolvimento social dos nativos. Em 1990, o México foi um dos primeiros países a ratificar o Convênio 169, mas suas medidas “não aterrissaram frente aos problemas gigantes e ancestrais” pendentes, disse ao Terramérica o indígena nahua Matias Trejo, sociólogo da Universidade Nacional Autônoma do México.
Por pressão da guerrilha zapatista no sul do país, na Constituição de 2001 se reconheceu “a composição pluricultural do país”, sustentada em povos indígenas “que conservam suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas ou parte delas”. Mas o Estado continua a determinar o que fazer com os territórios das 62 etnias do México, onde são indígenas 11 milhões dos 104 milhões de habitantes. Ao contrário de outros países, no México não há sinais de mobilizações maciças. Dos indígenas mexicanos de 15 anos ou mais, 45% não concluíram o ensino fundamental e, destes, 18% não têm nenhum grau de instrução. Mais de 40% de suas casas possuem chão de terra batida e não oferecem resistência diante de fenômenos naturais como terremotos e inundações. No Peru, o distrito mais pobre é o amazônico Balsapuerto.
Mais de 90% das comunidades nativas que vivem ali não têm serviços básicos.
Milagros Salazar - A autora é correspondente da IPS. Com as colaborações de Helda Martinez (Bogotá), Kintto Lucas (Quito) e Diego Cevallos (México). (FIN/2008)

Questão Indígena : A descolonização da América Latina e os direitos indígenas


Por Boaventura de Sousa Santos
Se revisarmos a história, recordaremos que, no período colonial, os colonizadores diziam que os índios não tinham alma. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente.
O Equador, no momento atual, se caracteriza pelo fato de que as forças progressistas assumiram a bandeira empunhada pelo movimento indígena na década de 90 para a elaboração de uma nova Constituição, que reconheça a diversidade de uma maneira profunda através da plurinacionalidade. Os avanços nos últimos 20 anos permitiram passar da invisibilidade à visibilidade, da resistência à proposta e agora da interculturalidade à plurinacionalidade. É importante levar isso em conta para se analisar o atual processo constituinte. A Constituição é simplesmente um papel que foi fonte de frustração durante muito tempo. Vários direitos foram incluídos, porém, os povos continuam sendo excluídos, empobrecidos, invisibilizados e oprimidos. Estamos diante de um novo tipo de constitucionalismo, que implica um diferente projeto político de país, outra forma de cultura, de convivência, de territorialidade, de institucionalidade do Estado.
Trata-se de uma nova época, interessante, mas muito difícil, já que existem muitos inimigos internos e externos que estão muito bem organizados. Lamentavelmente, as forças progressistas não se organizam tão bem como seus opositores. O atual modelo de Estado é homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Essa idéia de homogeneidade predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Daí a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja simplesmente aceita, senão celebrada.
A unidade não tem porque ser homogênea e tampouco a diversidade tem que significar desintegração. Esses são os desafios que deve enfrentar a nova Constituição, para que efetivamente o atual processo político implique uma importante ruptura com o colonialismo que não terminou com as independências. As diversas iniciativas políticas que estão emergindo no continente só podem ser entendidas reconhecendo a existência de um profundo racismo na sociedade. Por exemplo, não podemos entender os conflitos na Bolívia sem antes recordar que, para suas elites, um índio é só um índio, e não concebem que tenha chegado a ser presidente, pois, segundo elas, não é competente. Se revisarmos a história, recordaremos que na colônia acreditavam que os índios não tinham alma, e foi um papa, em 1537, quem teve de reconhecer que tinham. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente.
Na Venezuela também existe racismo, basta observar muitas das críticas lançadas contra o presidente Hugo Chávez, que o chamam de macaco e de não pertencer às elites brancas da sociedade dominante. Por isso a importância do reconhecimento da continuidade do colonialismo e de que, no processo constitucional, a plurinacionalidade é um ato de póscolonialismo que rompe com essa herança colonial. A independência foi dada, concebida, conquistada pelos descendentes dos colonizadores, não pelos povos originários, quer dizer, não foi realmente descolonizadora. Na África, aconteceu o contrário, as independências se deram por territórios, pelos povos originários, com exceção da África do Sul, que conquistou sua independência em meados dos anos 90.
Esse novo tipo de constitucionalismo é importante, porém não é exclusivo da América Latina. No mundo existem vários países, como Canadá, Suíça, Bélgica e Espanha, que se reconhecem como plurinacionais. Não se entende, portanto, por que o drama, o enfrentamento e as dúvidas. Em uma reunião do SENPLADES (Secretaria Nacional do Planejamento e Desenvolvimento), à qual fui convidado, ficaram preocupados que a plurinacionalidade desintegrasse e destruísse o país, como também ficou um jornal de grande circulação no Equador, e lhes expliquei porque não devem ter medo. Primeiro, a plurinacionalidade tem como objetivo descolonizar o país, devido a essa herança colonial.
Segundo, exige outra concepção do território e do controle dos recursos naturais. É ali que surgem os temores com respeito à propriedade da terra, o controle dos benefícios e lucros que produzem os recursos naturais.
Esse processo político significa uma nova visão de país, uma refundação do Estado equatoriano. Bolívia e Equador estão inventando outro tipo de Estado, um modelo que merece novas instituições e novos territórios com um marco político diferente, que permita passar do discurso à prática e cujas mudanças se reflitam de maneira visível.
A plurinacionalidade é um ato fundacional ou de refundação do Estado e todos os outros atos fundacionais são de transição. Passar das velhas estruturas à construção de novos estados é um processo de transição que não é unicamente político, senão cultural e que pode provocar enfrentamentos, como está acontecendo no Equador e na Bolívia. São choques de memória entre aqueles que não podem esquecer e os que não querem lembrar. Esta confrontação, que não é política, mas também cultural, exige que se construa outro tipo de memória.
O novo modelo de Estado implica uma nova institucionalidade, outra territorialidade, mas também outro modelo de desenvolvimento. Daí a importância das concepções indígenas, que estão ganhando terreno porque vão além das reivindicações puramente étnicas. Hoje em dia, o ponto de vista dos povos indígenas é importante no continente e não somente para eles, como também para todo o país, pois o atual modelo de desenvolvimento está destruindo os recursos naturais, o meio ambiente, contaminando a água, particularmente no Equador, como é o caso da Texaco, que durante 30 anos causou pobreza, destruição ambiental e contaminou as águas.
Este é um velho modelo e é possível que as palavras do ‘desenvolvimento’ não sejam as mais adequadas. Então, por que não utilizar a palavra ‘reviver’, que tem uma conotação muito mais profunda e que significa uma relação diferente com Pacha Mama? O conceito de natureza é muito pobre comparado com o de Pacha Mama, mais profundo e rico, pois implica harmonia e cosmovisão. Os indígenas colombianos costumam dizer "o petróleo é sangue da terra, é nosso sangue, nossa vitalidade, se nos tiram o sangue, nos matam". Esta concepção, que para os povos indígenas é muito natural, começa a ter outra aceitação. Não está em jogo só uma crise do capitalismo, mas também a sobrevivência da humanidade, caso se mantenha o atual modelo de desenvolvimento.
Este ato refundacional tem uma enorme potencialidade para o estabelecimento de relações mais amplas e o movimento indígena tem de estar preparado para a construção de novas alianças. Trata-se também de outro modelo de democracia, porque a atual é muito excludente e marginalizou as grandes maiorias da mesa de negociações e decisões.
Portanto, é necessário democratizar a democracia com novas formas de participação, mais inclusivas, podendo ser de origem ocidental, como a democracia participativa, ou de origem comunitária, como as formas indígenas. A Constituição boliviana, por exemplo, distingue entre democracia representativa e democracia partidária e comunitária.
A democratização da democracia vem acompanhada de outro processo interessante que é o da ‘cidadanização’ da cidadania, ou seja, a ampliação da cidadania a formas de cidadania intercultural junto de diferentes formas de pertencimento.
Quando me perguntam se a plurinacionalidade pode colocar em risco a unidade do país, respondo rotundamente que não, pois essa é minha larga experiência com os movimentos indígenas deste continente, que, basicamente, mostram duas coisas: os povos indígenas são originariamente transnacionais, como é o caso dos aymaras, quéchuas, mapuches, que foram divididos em vários países e agora são chilenos, argentinos, peruanos, equatorianos ou bolivianos. Em segundo lugar, eles reconhecem simultaneamente sua identidade nacional indígena e também a cidadania de seu país. Além do mais, mantiveram lealdade a seus países em guerras fronteiriças, participando com muita valentia de exércitos nacionais. Um exemplo desse duplo pertencimento podemos observar no Canadá, onde não é o mesmo ser canadense para um branco e para um indígena. Mesmo assim, todos, de maneira muito distinta, são canadenses.
Existem várias maneiras de pertencimento e, portanto, formas de convivência. A unidade na diversidade é uma nova solidariedade social, que pode ter um impacto muito forte nos territórios e recursos naturais. Podem produzir-se enfrentamentos, porém nas rupturas também existe continuidade. Por isso é importante que esses conflitos sejam controlados dentro de um marco pacífico e democrático.
Passar da interculturalidade à plurinacionalidade é um salto muito grande, mas também nisso se dá uma continuidade. A atual Constituição Política do Equador estabelece as circunscrições indígenas, porém estas, lamentavelmente, não foram regulamentadas.
Quando insistem no risco de que a plurinacionalidade pode enfraquecer a unidade nacional, pergunto-me: aonde estão as provas, os resultados desses fenômenos? Pelo contrário, o agronegócio e grandes latifundiários de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, que defendem o separatismo, é que constituem um grave perigo para a unidade do Estado.
Portanto, a desintegração não vem dos povos indígenas.O objetivo da plurinacionalidade não é somente a idéia do consenso, mas também do reconhecimento das diferenças, de outra forma de cooperação nacional com unidade na diversidade. É um ato de justiça histórica que não pode ser resolvido como um problema de geometria da democracia representativa. Qual a quantidade de indígenas neste país, 30, 20, 7 mil pessoas? Quanto menor a quantidade, mais demonstrado fica o nível de extermínio e, portanto, que a plurinacionalidade tem de ser mais profunda. Um desafio para a institucionalidade é compatibilizar a igualdade com a diferença. Difícil, mas não impossível.
* Originalmente publicado em:
http://alainet.org/ -
Traduzido por Gabriel Brito. Intervenção realizada no Encontro Internacional "Povos Indígenas, Estados Plurinacionais e Direito à Água", em março de 2008, Quito, Equador.
Fonte: Agencia Carta Maior , Por Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

GESTAÇAO E NASCIMENTO DO MST ( 1979 -1985)

Por Bernardo Mançano Fernandes
A natureza e a formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
O MST é fruto do processo histórico de resistência do campesinato brasileiro. Nesse processo, os fatores econômicos e políticos são fundamentais para a compreensão da natureza do MST. Na década de 1970, os governos militares implanta­ram um modelo econômico de desenvolvimento agropecuário que visava acelerar a modernização da agricultura com base na grande propriedade, principalmente pela criação de um sistema de créditos e subsídios. Esse sistema financiou a modernização tecnológica para alguns setores da agricultura, de forma que esta passou a depender menos dos recursos naturais e cada vez mais da indústria produtora de insumos. Esse modelo causou profundas transformações no campo. De um lado, aumentou as áreas de cultivo da monocultura da soja, da cana-de-açúcar, da laranja entre outras; intensificou a mecanização da agricultura e aumentou o número de trabalhadores assalariados. De outro lado, agravou ainda mais a situação de toda a agricultura familiar: pequenos proprietários, meeiros, rendeiros, parceiros etc., que continuaram excluídos da políti­ca agrícola. Essa política que ficou conhecida como modernização conservadora promoveu o crescimento econômico da agricultura, ao mesmo tempo que concentrou ainda mais a propriedade da terra, expropriando e expulsando mais de 30 milhões de pessoas que migraram para as cidades e para outras regiões brasileiras.
Mesmo com a repressão às formas de organização camponesas pelo regime mili­tar, a luta pela terra continuou em todo o território nacional. Um fator essencial que contribuiu para o desenvolvimento e crescimento da luta foi a participação da Igreja Católica, por meio da Comissão Pastoral da Terra. A CPT foi a articuladora das dife­rentes experiências que construíram uma nova realidade no campo. Durante o regime militar, as Comunidades Eclesiais de Base foram os espaços de socialização política que permitiram a recriação da organização camponesa. A Igreja Católica vinha pas­sando por profundas mudanças e era cada vez maior o envolvimento de religiosos com a realidade dos trabalhadores. Essa postura era resultado de decisões tomadas na Igreja após o Concílio Vaticano II (1965), e posteriormente na II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín, Colômbia (1968), e na III Conferên­cia em Puebla, México (1979). Por meio desse movimento de renovação da Igreja pela Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base tomaram-se espaços de re­flexão e aprendizado de como transformar a realidade, por intermédio da luta pela terra, recusando a condição imposta pela política da modernização conservadora.
A gênese do MST aconteceu no interior dessas lutas de resistência dos trabalha­dores contra a expropriação, a expulsão e o trabalho assalariado. O Movimento come­çou a ser formado no Centro-Sul, desde 7 de setembro de 1979, quando aconteceu a ocupação da gleba Macali, em Ronda Alta no Rio Grande do Sul. Essa foi uma das ações que resultaram na gestação do MST. Muitas outras ações dos trabalhadores sem-terra, que aconteceram nos Estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, fazem parte da gênese e contribuíram para a formação do Movimento. Assim, a sua gênese não pode ser compreendida por um momento ou por uma ação, mas por um conjunto de momentos e um conjunto de ações que duraram um período de pelo menos quatro anos.
De 1979 a 1984 aconteceu o processo de gestação do MST. Chamamos de gesta­ção o movimento iniciado desde a gênese, que reuniu e articulou as primeiras expe­riências de ocupações de terra, bem como as reuniões e os encontros que proporcio­naram, em 1984, o nascimento do MST ao ser fundado oficialmente pelos trabalhado­res em seu Primeiro Encontro Nacional, realizado nos dias 21 a 24 de janeiro, em Cascavel, no Estado do Paraná. Em 1985, de 29 a 31 de janeiro, os sem-terra realiza­ram o Primeiro Congresso, principiando o processo de territorialização do MST pelo Brasil. Portanto, neste capítulo analisamos algumas das experiências construídas no período 1979-1985 nos estados onde se desenvolveram as lutas que geraram o MST.

A luta dos colonos de Nonoai
Os lugares e os momentos formam a realidade. As pessoas fazem os momentos, transformam os lugares e constroem a realidade. Foi assim que trabalhadores sem-terra de vários estados começaram a formar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A expropriação, a expulsão das famílias camponesas e a usurpação do território indígena geraram uma das condições que levaram à luta os camponeses que iriam realizar a ocupação de terra, que também inaugurou o processo de formação do MST, na região noroeste rio-grandense.
Maio de 1978 é um marco histórico dessa luta. Foi quando os índios Kaigang da Reserva Indígena de Nonoai, que vinham lutando desde 1974 com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), iniciaram as ações para recuperar seu território e resolveram expulsar as 1.800 famílias de colonos-rendeiros que viviam naquelas ter­ras. A Reserva Indígena de Nonoai foi criada em 1847 e a entrada na área das primei­ras famílias sem-terra começou na década de 1940, sendo que em 1962 já existiam 400 famílias que arrendavam lotes de até 20 ha. Em 1963, em tomo de 5.000 famílias do MASTER que estavam acampadas na fazenda Sarandi, e em outros acampamen­tos da região, foram despejadas. Para parte das famílias que resistiram, o governo es­tadual ofereceu a condição de se tomarem rendeiros do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ocupando as terras da área indígena. Somente 15 anos depois, com a sua orga­nização, os Kaigang, cessaram essa relação de exploração.
Em maio de 78, em menos de um mês, os Kaigang expulsaram os colonos. Para esses trabalhadores restavam três alternativas: 1) migrar para os projetos de coloniza­ção da Amazônia; 2) tomar-se assalariados de empresas agropecuárias ou de indústri­as, migrando para as cidades, e 3) lutar pela terra no Estado do Rio Grande do Sul.
Esta última alternativa era a aspiração da maior parte dos colonos sem-terra. A questão é que não existia nenhuma forma de organização social de que pudessem se valer para realizarem os seus intentos. Dessa forma, ocorreu a dispersão da maior parte das famílias que passaram a vagar pelos municípios do noroeste rio-grandense. Algumas acamparam nas beiras das estradas, outras foram morar em paióis, porões e casas de parentes e camaradas, outras passaram mesmo a viver em chiqueiros junto com os animais, e, ainda, muitas famílias perambulavam pela região sem terem onde ficar. Todavia, como já disse o poeta, por mais que se queira transformar em nada, saibam que a história é como a madrugada. quem acorda cedo faz o amanhecer (Bogo, s.d.), de modo que, menos de dois meses depois de terem saído da Reserva indígena de No­noai, os colonos sem-terra começaram as primeiras ocupações.
Era junho de 1978, alguns grupos de famílias isolados e sem uma forma de organização definida entraram nas Glebas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, e na Reser­va Florestal da fazenda Sarandi, em Rondinha. As glebas eram terras públicas que es­tavam arrendadas para empresas. As ocupações começaram com 30 famílias e chega­ram a quase 300. Essa ação tem um importante significado histórico, porque a luta re­começava exatamente onde havia sido interrompida em 1963. Frente ao fato, o Go­verno do Estado enviou o secretário da agricultura para cadastrar estas famílias, pro­metendo assentá-Ias "quando fosse feita a reforma agrária". Com esse ato, os colonos foram convencidos a retomarem para as casas de amigos e familiares, onde estavam abrigados. Desse modo, se por um lado o governo tentou se livrar do problema, por outro lado, surgiram muitas outras famílias querendo se cadastrar, com a esperança de serem assentados no Rio Grande do Sul.
Outra parte das famílias de Nonoai foi transferida para o Parque de Exposições de Esteio, próximo a Porto Alegre. O governo estadual propôs assentar uma parte em Bagé, ao sul do estado. O governo federal propunha assentá-Ias em Mato Grosso, em um projeto de colonização denominado Terranova. Para Bagé foram 128 famílias e para Terranova foram 550 famílias.

O Povo de Deus
Nesse entretanto, na Paróquia de Ronda Alta, chegaram 5 famílias, em torno de 50 pessoas, e pediram pousada ao pároco, padre Arnildo, que trabalhava na Comissão Pastoral da Terra e, por meio da Bíblia, procurava conscientizar os colonos expulsos. Os sem-terra argumentavam que já haviam buscado apoio em várias paróquias de municípios da região, nos sindicatos, nas prefeituras e a resposta que obtiveram foi que o problema era do governo. Padre Arnildo ofereceu abrigo na casa paroquial. À noite, fizeram uma reflexão sobre o capítulo terceiro do livro do Êxodo, que relata o sofrimento e a libertação do Povo de Deus em busca da terra prometida. As pessoas disseram que aquela também era a sua história e o padre Arnildo perguntou, então, o que eles pretendiam fazer. As famílias decidiram participar dos diversos acampamen­tos que existiam na região. Por meio dessa reflexão, ficara entendido que a solução te­ria que partir da ação e da organização dos próprios trabalhadores. Essa era a única forma de mudarem as suas realidades. Cada família tinha um trabalho a realizar: de­veria discutir com as outras famílias acampadas qual seria a saída, e voltar um mem­bro de cada família para se reunirem e decidirem o que fazer. Quinze dias depois, en­contraram-se na casa paroquial e resolveram realizar assembléias nos acampamentos para construírem uma forma de organização e lutarem pelos seus direitos.
Até esse momento, frente aos limites das três experiências: a ocupação e o cadastramento, o assentamento em Bagé e a migração para o Mato Grosso, os trabalhado­res resolveram criar uma forma de organização para fazer avançar a luta. Em julho de 1979, depois de um intenso trabalho de base, em torno de 1.100 famílias reuniram-se no salão do Centro de Tradição Gaúcha de Nonoai, onde os colonos realizaram uma assembléia para decidirem sobre os seus destinos: lutar pela terra no estado ou migrar para o Mato Grosso. Deliberaram que as soluções para os seus problemas deveriam ser a1cançadas em comum e não de forma individualizada. Tomaram mais duas deci­sões: fazer um abaixo-assinado ao governador, reivindicando o assentamento no esta­do e, senão fossem atendidos, ocupariam a fazenda Sarandi novamente. Assim, ger­minava a organização dos colonos e se solidificava pela sua própria legitimação.
No dia primeiro de agosto de 1979, os colonos conseguiram uma audiência com o governador e reivindicaram o assentamento nas Glebas Macali e Brilhante. O gover­nador pediu trinta dias de prazo para dar uma resposta. Foi quando um colono pergun­tou o que o governo faria, se eles ocupassem a terra. Numa atitude demagógica, o go­vernador respondeu que iria junto para a ocupação. No dia primeiro de setembro, ven­ceu o prazo de trinta dias, e o governo não deu nenhuma resposta. Os colonos se reu­niram e discutiram a situação. Chegaram ao acordo que o governo não iria resolver o problema deles e que o único jeito seria a ocupação da terra.

A ocupação como forma de luta
Resolveram realizar a ocupação na noite do dia 6 e madrugada do dia 7 de setembro. A data escolhida possibilitava um maior tempo para organizar a ocupação e a resistência. As lideranças dos acampamentos espalhados pela região iniciaram os traba­lhos de mobilização e na noite do dia 6, os caminhões transportando 110 famílias de colonos sem-terra entraram pela Gleba Brilhante e acamparam na Gleba Macali. Era a madrugada do dia 7 de setembro de 1979, a lua cheia clareava o caminho da terra prometida e em pouco tempo a Macali era terra ocupada. Haviam decidido nas reu­niões que assim que entrassem na terra fincariam uma cruz, que significa tanto o so­frimento quanto a conquista. E na cruz colocaram a bandeira do Brasil, porque era o dia da pátria e porque lutavam para serem cidadãos.
Na tarde do dia 7 realizaram a primeira celebração. Recordaram a caminhada, passo a passo, como quem reconstrói a própria história, leram os versículos do livro do Êxodo, que descrevia a caminhada do Povo de Deus em busca da terra prometida. no dia 8, chegou a Brigada Militar e montou acampamento próximo à área e no dia 9 reforçaram o pelotão com um número maior de soldados. O acampamento dos colo­nos era um espaço de luta e de resistência, de modo que estavam dispostos ao enfren­tamento. As mulheres pegaram seus filhos e formaram uma barreira em torno do acampamento. Esse enfrentamento fez os brigadianos recuarem de suas posições e começaram as negociações com o governador. Algumas lideranças foram cobrar do governador se ele iria ou não ocupar também aquela terra. Levaram como prova um recorte de jornal, em que havia a declaração que ele tinha feito há 40 dias atrás. O go­verno autorizou os colonos a plantarem na área e retirou a Brigada Militar do local. Iniciava a primeira experiência de organização do trabalho e da produção na terra conquistada. A conquista da Macali fortalecia a decisão dos colonos de serem assen­tados no próprio estado.
Nesse entretanto, começou a formação de um novo grupo de famílias para realizarem nova ação. No dia 25 de setembro, cento e setenta famílias ocuparam a Brilhante. A terra estava arrendada e cultivada com soja e milho. A repressão policial foi mais intensa, mas a luta pela terra ganhava o apoio da sociedade, de modo que o go­verno não se atreveu a usar de violência. Também um grupo de oitenta famílias, mo­bilizadas por vereadores do Partido Democrático Social (PDS), ocuparam outra par­te da gleba Brilhante e formaram o acampamento 2. Essa ocupação era uma reação isolada dos políticos locais, que "defendiam" o assentamento de filhos de agriculto­res dos municípios de Sarandi, Ronda Alta e Rondinha. Essa atitude oportunista tinha como objetivo se aproveitar das ações iniciadas pelos colonos de Nonoai. Todavia, essas famílias foram abandonadas pelos vereadores, muitas desistiram e outras per­sistiram juntando-se aos colonos.
No desenrolar das negociações, que não se concluíam, novamente as mulheres partiram para o enfrentamento. Na época da colheita, fizeram um cordão de isola­ mento em tomo das máquinas, impedindo o trabalho dos empregados do arrendatá­rio. Essa ação resultou na resolução parcial da questão, as famílias foram assentadas e também colheram parte do milho e da soja. Contudo, como havia aumentado o núme­ro de acampados, a área não era suficiente para assentar todas as famílias. Depois das conquistas das Glebas Brilhante e Macali, as famílias remanescentes ocuparam a Fa­zenda Anoni, em outubro de 1980. A Polícia Federal interveio imediatamente, reali­zou o despejo e prendeu doze trabalhadores, desmobilizando o grupo de famílias. Embora essa ocupação tivesse sido derrotada, ela reforçava a luta que originaria a conquista da Anoni, na segunda metade da década de 1980. Outra ocupação também havia sido frustrada. Ela aconteceria em Campinas do Sul, próximo à Barragem de Passo Fundo. Todavia, a Brigada Militar foi informada do planejamento da ação e en­trou na área antes que os sem-terra chegassem.
No dia 4 de novembro de 1980, um grupo de sem-terra acampou no centro de Porto Alegre para reivindicar do governo estadual o assentamento das famílias rema­nescentes. Depois de duas semanas de negociações, os colonos conseguiram um acordo com o governo, que cedeu uma área do Estado, de 240 ha, no município de Rondinha, e comprou uma área de 1.049 ha, no município de Palmeira das Missões, para assentar parte das famílias. Todavia, ainda ficaram famílias acampadas. Dessa forma, os trabalhadores sem-terra retomavam as suas forças, inaugurando um novo movimento social que germinava em vários lugares do Brasil.

As encruzilhadas da história
A encruzilhada é o lugar onde se cruzam os caminhos. A luta que nasceu com o acampamento na Encruzilhada Natalino se opunha à política fundiária do governo. Era, também, um conflito entre o modelo econômico agropecuário implantado pelos militares, com a política de desenvolvimento para a agropecuária que os camponeses vêm construindo por meio de suas lutas. Aquela ação representava, igualmente, o momento e o lugar do cruzamento de dois projetos políticos para o campo brasileiro. Essa forma de luta significa a recusa dos camponeses à modernização conservadora. Essa política do governo privilegia o grande capital e tem conduzido os camponeses à expropriação, à expulsão da terra, à exclusão, à miséria e à fome. A política dos traba­lhadores leva à resistência na conquista da terra e do trabalho, da dignidade, da cida­dania, com a ressocialização dos camponeses sem-terra. Esse conflito tem um caráter histórico, porque a encruzilhada se tomaria o espaço político em que se encontram os sem-terra e os governos estadual e federal. E neste cruzamento de políticas opostas, buscam soluções para os conflitos fundiários, desde a desapropriação da terra até as políticas de desenvolvimento da agricultura camponesa, como por exemplo: o crédito agrícola, a educação, o cooperativismo etc. Todavia, ambos continuam seguindo ca­minhos políticos distintos. E neste sentido, a luta pela terra toma-se uma ação funda­mental para fazer crescer a luta pela reforma agrária.
Na luta pela terra, a encruzilhada também tem o sentido do cruzamento dos caminhos construídos durante a resistência. Cruzam-se os caminhos da vitória e da derro­ta. A encruzilhada é o lugar e o momento da tomada de decisão para qual direção deve se seguir, com o objetivo de conquistar a terra. É, portanto, um lugar onde se pára, re­flete e olha, procurando visualizar qual o melhor caminho a percorrer. E muitas ve­zes, se o caminho ainda não existe, é preciso fazê-lo. Foi assim que aconteceu na En­cruzilhada Natalino, ali também foi o ponto de partida para a construção do caminho da luta pela terra. Montar o acampamento foi uma decisão tomada na encruzilhada da luta. E na encruzilhada são muitos os caminhos possíveis. Desde os existentes até os que estão por construir, porque abrir caminhos na realidade é fazer história. Foi assim que esta luta tomou-se uma das principais referências da História do MST.




O acampamento Encruzilhada Natalino

Na luta pela terra, acampar é determinar um lugar e um momento transitório para transformar a realidade. Quando os sem-terra tomam a decisão de acampar, estão desafiando o modelo político que os exclui da condição de cidadãos. A resistência no acampamento é a façanha. A persistência é o desafio. Para sobreviver, os acampados depen­dem de sua organização, do trabalho e do apoio dos que defendem a reforma agrária. O acampamento da Encruzilhada Natalino era resultado das experiências das lutas anteriores. Começou quando um colono, expulso da Reserva Indígena de Nonoai, montou seu barraco próximo ao encontro das estradas que levam a Ronda Alta, Sarandi e Passo Fundo. Esse fato aconteceu no dia 8 de dezembro de 1980. O lugar se chama Encruzi­lhada Natalino, porque havia uma casa comercial, cujo proprietário chamava-se Natá­lio. O primeiro colono que acampou também se chamava Natálio. Foi seguido de outras famílias de Nonoai e de famílias remanescentes da ocupação da Gleba Brilhante. Da mesma forma, vieram outros camponeses sem-terra de toda a região. Eram rendeiros, parceiros, agregados, peões, assalariados e filhos de pequenos proprietários.
Na tentativa de desmobilizar o acampamento, o governo estadual mandou uma comissão oferecer empregos aos sem-terra. Acompanhada do bispo de Passo Fundo, D. Cláudio Colling, os representantes do governo procuraram convencer os acampa­dos. Frente à recusa incondicional das famílias, a comissão e o bispo desistiram do in­tento. Superando desafios, persistia o processo de gestação do acampamento, que era resultado da consciência construída pelos camponeses, de que somente por meio da luta mudariam suas realidades, e também pela articulação feita pela CPT e pelo Mo­vimento de Justiça e Direitos Humanos, que ajudavam na organização dos sem-terra. Começaram a fazer o levantamento dos latifúndios nos municípios próximos, classi­ficados pelo Incra como latifúndios por exploração, provando ao governo que a ques­tão poderia ser resolvida na própria região. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana fez um levantamento e mostrou que, próximo ao acampamento, havia 4.000 ha de terras à venda, contrariando os argumentos do governo que continuava afirmando não haver terras disponíveis no Rio Grande do Sul e, portanto, era necessário transfe­rir as famílias para outros estados do Norte e Nordeste.
O acampamento localizava-se num lugar estratégico, porque ficava próximo da Anoni, bem como da Macali e da Brilhante. Em abril de 1981, havia 50 famílias acampadas. Em junho havia 600 famílias, reunindo mais de 3 mil pessoas que habita­vam em barracos de lona, de capim, de madeira, de sacos de cimento ou adubo. Os barracos estendiam-se por quase dois quilômetros da estrada. Com base nas experiên­cias anteriores, as famílias começaram a se organizar em grupos, setores e comissões. A coordenação era formada por lideranças escolhidas entre os sem-terra. Essas pesso­as mais alguns assessores formavam a Comissão Central, responsável pela direção política da luta. Era o embrião de uma forma de organização social que seria referên­cia nas novas lutas animadas pela Encruzilhada. Criaram as comissões de saúde, de alimentação, de negociação. Também criaram um boletim informativo denominado Sem Terra, que viria a se tomar o Jornal do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Com o apoio da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, montaram uma secretaria em Porto Alegre. As condições do acampamento eram pre­cárias: faltavam utensílios, acomodações, agasalhos, alimentação, condições de higi­ene etc. Ainda, as famílias viviam sobre pressão do governo que não oferecia uma so­lução concreta voltada para as reivindicações dos trabalhadores. Sofriam intimida­ções da Brigada Militar que sobrevoava o acampamento constantemente, na tentativa de desanimar os camponeses para que desistissem da resistência.

A intervenção militar-federal na Encruzilhada Natalino
A luta pela terra ensina. Cada família da luta tem uma história rica em acontecimentos que marcam para toda a vida. Não há como esquecer, tanto pelo sofrimento na caminhada, quanto pela alegria da chegada, na conquista da terra. Nesse sentido, Natalino foi uma escola. Muitas das ações de resistência construídas nessa luta foram referências principais na troca de experiências com outras lutas que aconteciam em todo o Brasil. Foi um exemplo de luta e resistência que animou os trabalhadores. Como símbolo de resistência, os sem-terra fizeram uma cruz rústica. Começaram a receber apoio e contribuições de sindicatos de várias categorias de trabalhadores, de comunidades de diversas paróquias, de alguns prefeitos, de agricultores e de estudan­tes. De modo que na festa da Páscoa comemoraram a caminhada e colocaram escoras na cruz, que tinham os nomes das entidades que auxiliavam na luta. No princípio, a cruz era fincada na terra. Depois, com as ajudas que receberam, a cruz passou a ser sustentada pelas escoras que simbolizavam os apoios. Assim, sempre que havia uma manifestação, a cruz era transportada e era mantida em pé pelas escoras. Durante o período do acampamento morreram cinco crianças e as famílias colocaram cinco fai­xas brancas, representando as suas presenças na luta pela terra. No dia 21 de junho foi realizada uma missa com o bispo D. Pedro Casaldáliga, de São Félix do Araguaia (MT), que veio trazer sua solidariedade aos acampados. A ce­lebração reuniu 6 mil pessoas e a luta ganhava conotação nacional, sendo divulgada em quase todo o Brasil. Com o crescimento da organização, o governo federal apre­sentou uma proposta, que foi recusada pelos sem-terra, de transferir as famílias para projetos de colonização em Roraima, Acre, Mato Grosso e Bahia. No dia dos traba­lhadores rurais (25 de julho) fizeram uma grande comemoração com mais de 10 mil pessoas e que teve a participação de D. Tomás Balduíno, bispo de Goiás Velho (GO), que denunciou a miséria em que viviam os colonos que haviam se deslocado para o Projeto de Colonização em Canarana (MT). O bispo defendia a resistência e o assen­tamento das famílias no estado. D. Tomás prenunciou o significado histórico daquela luta, ao afirmar que ela representava para o campo o que as greves do ABC significa­ram para a organização dos trabalhadores da cidade. O governo temia que neste dia fosse feita uma grande ocupação na Fazenda Anoni. Por essa razão, mandou a Briga­da Militar cercar a Anoni.
Como o governo sempre apresentava a mesma proposta, os acampados decidi­ram, em assembléia, que acampariam na frente do Palácio do Governo, na Praça da Matriz, em Porto Alegre para o pressionar. Quatro ônibus saíram em direção à capi­tal. Encontraram várias baneiras pelo caminho. Em Sarandi foram barrados pela Bri­gada Militar. Chegando em Porto Alegre, enfrentaram outro batalhão da Brigada com mais de cem brigadianos e vinte viaturas que fizeram os ônibus desviarem da rota. Os sem-terra resolveram seguir a pé até o local da manifestação. Com o apoio da CPT, da Comissão de Direitos Humanos e de dois deputados, conseguiram uma audiência com o governador, que reproduziu a mesma proposta. Se os trabalhadores não viam perspectivas junto ao governo estadual, a situação era pior com relação ao governo federal. Logo depois da reunião com o governador, a comissão de negociação rece­beu a informação que o Exército iria invadir o acampamento e quem estava fora não entrava, e quem estava dentro não saía. Os sem-terra voltaram rapidamente para a En­cruzilhada e chegaram um pouco antes do Exército. Com a intervenção, o acampa­mento foi declarado Área de Segurança Nacional.
A espionagem no acampamento vinha sendo praticada pelos militares há algum tempo. Diversas vezes os sem-terra expulsaram suspeitos do acampamento, que eram infiltrados da Polícia e do Exército. De modo que estes já possuíam muitas informa­ções a respeito da situação dos colonos. No dia 30 de julho de 1981, o acampamento sofreu intervenção militar federal, com a presença do Exército, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Estadual. O comando da intervenção estava a cargo do major Curió, especialista em desmobilizar ações de resistência popular e garantia que em 15 dias ele resolveria aquele caso. Ele já havia atuado em áreas de conflitos nas Regiões Norte e Nordeste. O cerco ao acampamento consistia no fechamento de todas as entradas. Os interventores alugaram um pavilhão em uma fazenda vizinha ao acam­pamento, montaram uma barraca na entrada principal e colocaram alto-falantes em torno do acampamento. Proibiram a entrada de religiosos e de todas as pessoas que apoiavam a luta. Atendendo à pressão dos acampados, que exigiam o direito de entra­rem e saírem do acampamento, implantaram um sistema de controle por meio de fi­chas, que registrava a movimentação dos sem-terra. Nem para celebrar a missa, os pa­dres podiam entrar.
Neste estado de isolamento, os interventores começaram a perseguir os colonos. As pessoas que já haviam trabalhado na cidade, com carteira registrada, eram consi­deradas sem vocação para a agricultura e, portanto, não teriam direito à terra. Alertavam as famílias que tinham ido para o Mato Grosso e retomado, que também não teri­am mais direito à terra. Exigiram de todas as famílias, que trouxessem uma certidão negativa para provar que não eram proprietários de terra. Passaram a entregar alimen­tos às famílias, mas para isso faziam com que ficassem muitas horas nas filas. Con­centravam as pessoas e utilizavam uma perua com alto-falante para divulgarem notí­cias voltadas para a desmobilização das famílias: um exemplo era a repetição de uma entrevista de D. Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, afirmando que os sem-ter­ra não tinham direito de exigir o assentamento no Rio Grande e que o governo não ti­nha obrigação de atendê-Ios. Informavam que estava ali a pedido do presidente da República, João Batista Figueiredo, e Curió se envaidecia por ter sido vitorioso em 16 casos de tensão social. Ameaçava dizendo que aqueles que não aceitassem ir para os projetos de colonização não iriam mais receber alimentos. Enfim, utilizaram de todos os artifícios para desfazer o acampamento.

Em terra de quero-quero, Curió não canta
O major tornou-se conhecido entre os acampados. Havia um trabalhador que o conhecia de Serra Pelada, no Pará, e divulgava suas práticas e táticas. Também um acontecimento notável possibilitou maior conhecimento das táticas do interventor. Numa ocasião, quando um acampado tentava sintonizar uma estação de rádio, captou a freqüência na qual os interventores se comunicavam com Brasília. Desse dia em di­ante, os acampados passaram a acompanhar suas conversas e a se anteciparem às suas tentativas de cooptação, como por exemplo quando Curió chamou a imprensa para distribuir doces às crianças. Como os pais estavam informados, orientaram seus fi­lhos para aceitarem o presente, agradecerem e pedirem terra para plantar.
A missão de Curió era desmanchar o acampamento e levar as famílias para os projetos de colonização. Montou uma grande barraca onde mostrava slides e filmes acerca dos projetos de colonização no Acre, em Roraima, Mato Grosso e Bahia. Pro­pôs levar uma comissão de sem-terra para conhecer o projeto Serra do Ramalho, na Bahia. Vieram dois aviões Búfalo da Força Aérea e transportaram os colonos para a área. Chegando numa agrovila do projeto, foram recepcionados com uma churrasca­da. Contudo, quando a comitiva começou a lavar as mãos acabou a água. E não tinha mais água. De volta, a maior parte da comissão declarou que o projeto era inviável, porque o solo era muito arenoso e pela falta de água. Uma pequena parte, que Curió tentou convencer, chegou a afirmar que o lugar era bom. Na polêmica, os intervento­res conseguiram reunir 87 famílias tendentes a aceitarem a proposta do governo. Contudo, quando tomaram conhecimento da cooptação e por causa de um dossiê da CPT baiana, que informava a insustentabilidade do projeto, pouco a pouco foram de­sistindo e por fim nenhuma família aceitou ir para a Bahia.
Diante da recusa, aumentava a violência. Passaram a transitar continuamente com os caminhões, de ponta a ponta do acampamento, levantando poeira. Destruíram as fontes de água, colocando os cavalos para pisotearem, criando pavor. Depois fez outra proposta, levar as famílias para o projeto de colonização Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso, criado exclusivamente para assentar os acampados da Encruzilha­da. Diante da pressão, os interventores conseguiram dividir o acampamento e 137 fa­mílias aceitaram partir para a área. A maior parte recusou. Além da repressão, outros fatores que levavam as famílias a aceitarem a mudança para o projeto de colonização eram a situação precária em que se encontravam e o desespero. Estes mesmos fatores também causariam o retorno da maior parte dessas famílias. Os interventores criaram outro acampamento e transferiram as famílias aceitantes. Esse acampamento foi de­nominado de Quero-Quero. No acampamento Natalino, os barracos dessas famílias fo­ram queimados, ameaçando os que não aceitaram a proposta de transferência. Impedi­ram totalmente visitas ao acampamento Natalino. Várias entidades de apoio denuncia­ram na imprensa que o acampamento fora transformado num campo de concentração. Entraram com um pedido de salvo-conduto para que uma comitiva visitasse o acampa­mento. Realizaram uma grande manifestação com a participação de 137 padres do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, de membros da Ordem dos Advogados do Brasil, de deputados federais e estaduais. Quando outros visitantes foram impedidos de entrar pe­los soldados do Exército, os acampados pegaram a cruz com as escoras e romperam a barreira militar, possibilitando a entrada. O ato marcou a reviravolta da situação e os sem-terra recobraram as esperanças. Começava, assim, a derrota dos interventores fe­derais. A resistência dos sem-terra e o apoio das entidades foram determinantes.
No dia 31 de agosto, os interventores se retiraram do acampamento Encruzilhada Natalino. Curió foi derrotado. Passaram-se 30 dias da sua chegada e a maior parte das famílias permanecia no acampamento, recusando a proposta do governo. Ao sair do acampamento, o major recebeu de presente dos colonos um cipó com 16 nós e meio, significando que depois de 16 vitórias em outras regiões do Brasil, na Encruzilhada ele perdeu. Embora vencidos, os interventores devastaram parte do acampamento. Por meio da cooptação, da ameaça, da exploração da miséria dos acampados e de ou­tros modos menos aceitáveis, eles tentaram desenraizar a luta. A vitória dos acampa­dos da Encruzilhada demarcou a história das lutas camponesas. Foi uma prova con­creta de que a resistência e a persistência eram as armas que o modelo econômico e a política dos militares não puderam vencer. O governo federal intensificou os ataques. Ameaçou prender padre Arnildo e expulsar uma freira italiana, irmã Aurélia, que também trabalhava no acampamento. O arcebispo de Porto Alegre negociou com o governo uma medida paliativa: proibiria o padre de rezar missa no acampamento e solicitaria à superiora da freira que a "convidasse" para retomar à Itália. Assim foi fe­ito, a irmã voltou ao seu país, mas padre Arnildo, mesmo proibido de rezar a missa. continuou freqüentando o acampamento e seguiu seu trabalho, realizando novas for­mas de celebração, criando uma mística popular. Os bispos do Rio Grande do Sul se reuniram em Passo Fundo e elaboraram um documento defendendo os interesses dos acampados. Propunham a compra de terras no estado para assentar as famílias acam­padas, inclusive na Fazenda Anoni.

Nova Ronda Alta: terra prometida
Com a saída dos interventores, os acampados retomaram a forma de organização de Natalino, recriando as comissões e retomando as atividades. De outubro a dezem­bro de 1981, os sem-terra procuraram o governo estadual por diversas vezes para ne­gociar o assentamento no estado. Em dezembro algumas famílias começaram a voltar de Mato Grosso, informando que o projeto Lucas do Rio Verde não oferecia condi­ções de sobrevivência e que o governo federal não cumprira com as promessas. Para divulgar a luta, alguns acampados viajaram para São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, onde participaram de eventos de apoio à luta pela reforma agrária. Todavia, a situação das famílias no acampamento continuava crítica. Era necessário criar um fato novo, que fizesse avançar a luta. No Natal de 1981, a tristeza e a perseverança foram as mar­cas principais da celebração e já indicavam o esgotamento da resistência.
Em fevereiro de 1982, num encontro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), os acampados propuseram à Igreja que comprasse uma área em Ronda Alta, para onde as famílias pudessem ser transferidas provisoriamente. Era uma forma de retomar a luta e continuar o enfrentamento com o governo, exigindo o assentamento no estado. Nesse mês, a CPT realizou a V Romaria da Terra e reuniu mais de 20 mil pessoas. A CNBB atendeu o pedido dos sem-terra, contribuiu e coordenou uma campa­nha nacional de arrecadação nas paróquias, para comprar a terra e transferir os acampa­dos. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana também contribuiu e realizou a campa­nha em suas paróquias. Foi comprada uma área de 108 ha, próxima à Barragem do Rio Passo Fundo, no município de Ronda Alta, destinada ao assentamento provisório das famílias da Encruzilhada. A área foi denominada de Nova Ronda Alta.
No dia 12 de março, as famílias começaram a ser transferi das para o assentamen­to provisório. Em Nova Ronda Alta, organizaram-se em equipes de trabalho e comis­sões para continuar a pressão contra o governo. Todavia, mesmo dentro de seu territó­rio, os sem-terra continuaram a ser perseguidos pela Brigada Militar. No começo de abril, em torno de vinte brigadianos acamparam em uma ilha, a trezentos metros de Nova Ronda Alta e observavam o movimento do assentamento provisório. Durante mais um ano e meio, os sem-terra persistiram na luta. Com as eleições para governa­dor, discutiram com os candidatos a solução que defendiam para a questão da terra. Em setembro de 1983, o governador eleito autorizou a compra de 1.870 ha para o as­sentamento definitivo das famílias, nos municípios de Ronda Alta, Cruz Alta e Pal­meira das Missões. Também foram assentadas no estado 30 famílias que aguardavam no acampamento Quero-Quero, mas que desistiram de ir para Lucas do Rio Verde (MT). Terminava aquela ação dos sem-terra, mas a luta pela terra continuava com os sentidos e significados da resistência e da persistência que marcaram a Encruzilhada. O governo militar foi derrotado e os camponeses deram uma lição de organização, contribuindo para a construção da democracia.
O Acampamento Natalino chegou a ter 601 famílias. Sendo que 142 desistiram e 252 foram para Mato Grosso. Para Nova Ronda Alta foram, provisoriamente, 207 fa­mílias, onde permaneceram dez famílias em uma área de 105 ha. As outras foram as­sentadas no município de Ronda Alta, nos assentamentos Nossa Senhora Conquista­dora da Terra e Vitória da União, e no assentamento Rincão do Ivaí, no município de Salto do Jacuí. Das famílias que foram para o projeto Lucas do Rio Verde (MT), em 1986 restavam apenas 15. As outras venderam os lotes e migraram para outras re­giões ou voltaram para o Sul. Desde a beira da estrada até o assentamento, os sem-ter­ra aprenderam a resistir. A resistência foi alimentada pelo apoio constante e pela or­ganização. O aprendizado da resistência foi uma das mais importantes lições de cida­dania na formação do Movimento.
Fonte: FERNANDES, Bernardo Mançano. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000 (páginas 49-60)