terça-feira, 13 de outubro de 2009

A configuração da questão agrária brasileira

Vejamos, a título de conclusão, quais são as principais estruturas da questão agrária brasileira que pudemos apreender. O mapa acima e os modelos gráficos a seguir, desenvolvidos a partir dos diversos mapeamentos realizados no Atlas, são resultado de um esforço para compreender essas configurações no território brasileiro.
A primeira estrutura elementar é o que chamamos de três campesinatos(36) . O campesinato tem importância demográfica e ocupacional significativa em três regiões brasileiras: Sul, Nordeste e Norte. O campesinato do Sul, formado a partir da imigração européia para a colonização da região, é caracterizado por sua agropecuária diversa e dinâmica. É este campesinato que permite que o Sul faça parte da principal região agropecuária do país. A produção agropecuária do campesinato do Sul é diversificada, com alto grau de produtividade e grande produção. Dentre os três campesinatos, este é o que está inserido de forma mais contundente no mercado. Na composição da população da região Sul ele é importante, de forma que tem papel destacado na ocupação da PEA regional. Seus indicadores de qualidade de vida e renda são positivos, ultrapassando as médias nacionais. Na luta pela terra, tem grande representatividade e significado, haja vista que o campesinato da região Sul é um dos berços do MST e as ocupações de terra aí são numerosas. O segundo campesinato é o do Nordeste. Assim como a região na qual está inserido, ele é marcado pelas perdas, expressas principalmente pela baixa produtividade da agropecuária e utilização de meios de produção precários, o que tem como resultado as baixas rendas e indicadores sociais negativos. A principal causa da deficiência deste campesinato está na incapacidade do Estado em promover obras que consigam superar o clima árido da região, o que tem impossibilitado o desenvolvimento da agricultura de forma satisfatória. Na verdade, o Estado não foi capaz sequer de garantir água para o consumo humano dessa população. Os projetos localmente restritos de irrigação beneficiam, de forma geral, os produtores já capitalizados. São exemplo os projetos de irrigação para produção frutas, destinadas à exportação para EUA, Europa e Japão. O campesinato do Nordeste também é bastante representativo na composição da população regional, o que reflete na sua importância na ocupação da população. Na luta pela terra teve importância histórica com as ligas camponesas e hoje é responsável por grande parte das ocupações de terra realizadas no país. O terceiro campesinato é o amazônico. Formado a partir das investidas para a ocupação da Amazônia, tem presença marcante dos camponeses nordestinos, que migraram para a região em busca de melhores condições de produção e vida. Populações ribeirinhas caboclas e migrantes do Sul também são representativas neste campesinato. Projetos de colonização do Estado, assentamentos rurais e pequenas posses foram as principais formas pelas quais este campesinato se implantou na região. As atividades extrativistas e a pequena produção agropecuária para abastecimento regional são características marcantes. Como no campesinato do Nordeste, no campesinato amazônico os baixos rendimentos e os indicadores sociais abaixo da média expressam a qualidade de vida precária dessa população. A violência sofrida por este campesinato é intensa e é resultado da dos avanços do latifúndio sobre o território camponês.
A segunda estrutura elementar da questão agrária no Brasil é a fronteira agropecuária. A região dos cerrados e a Amazônia se tornaram, a partir do final da década de 1960 e início da década de 1970, a nova fronteira agropecuária brasileira. Esse processo não foi espontâneo, mas uma decisão da ditadura militar que, além de não realizar a reforma agrária, apresentava o discurso fantasioso e contraditório da necessidade de ocupação do território para garantir sua soberania, o que se torna cômico se observarmos o modelo alienígena de agricultura predominante nas regiões da fronteira agropecuária que conduziram. Os governos seguintes mantiveram o avanço do processo, que não demonstra sinais de estabilização. A ocupação da região é marcada por crimes contra o homem e contra a natureza, explicitados na violência contra trabalhadores rurais e camponeses, devastação ambiental, crimes na apropriação privada da terra (grilagem) e beneficiamento do grande capital na aquisição de terras públicas. Na frente pioneira, localizada nas margens da floresta amazônica, o crescimento demográfico, desflorestamento e crescimento da pecuária bovina são característicos. Ela está em constante avanço para o interior da Amazônia, onde a floresta é progressivamente suplantada. O desflorestamento apresenta sinais muito tímidos de redução. O Estado atua no incentivo à ocupação da região, mesmo sabendo que isso não contribui para o desenvolvimento socioeconômico do país. Um exemplo recente é o investimento na ampliação e consolidação da rede rodoviária na Amazônia, em especial da BR-163, que será provavelmente o mais importante eixo de destruição da floresta nos próximos anos. Não há necessidade socialmente justificável de avançar na ocupação da Amazônia, sendo que a forma ilegal, especulativa e concentradora de apropriação privada da terra que ocorre neste processo só contribui para o agravamento da questão agrária.

Associada à fronteira agropecuária está outra estrutura elementar da questão agrária brasileira: o processo migratório. A migração para a fronteira agropecuária a partir do final da década de 1960 e início da década de 1970 foi ocasionada principalmente pela modernização da agricultura e conseqüente êxodo rural, pela não realização da reforma agrária nas áreas já densamente ocupadas e pela não solução do problema da seca e da pobreza no Nordeste. Existem duas frentes fundamentais de migração para a região da fronteira agropecuária: uma é proveniente do Sudeste e majoritariamente do campesinato do Sul, de onde partiram camponeses em busca de novas terras, seja pelo processo de expropriação ou pelo extremo parcelamento das propriedades. Esta frente se estabeleceu principalmente em Rondônia, Mato Grosso e oeste da Bahia, sendo pouco intensa na atualidade. A segunda frente é proveniente do campesinato do Nordeste, importante principalmente para trabalhar nos seringais na Amazônia e para colonizar a porção oriental da região, que compreende parte do estado do Maranhão. Esses camponeses nordestinos, empobrecidos ou expropriados, assim como os do Sul, são atraídos pela fronteira na busca de novas terras, mas também de trabalho. Esta frente migratória é mais ativa na atualidade e a migração dos trabalhadores tem como destino principal o sudeste do Pará. Além das duas frentes, é possível verificar um fluxo migratório interno na fronteira agropecuária, que parte de Mato Grosso em direção a Rondônia e ao Pará. A migração para a fronteira agropecuária e na fronteira agropecuária constitui um indicador que a ocupação da região é um processo em marcha.

Quando analisamos a produção agropecuária brasileira, verificamos uma região que concentra diversidade, dinamismo e produtividade, de forma que constitui mais uma estrutura elementar para entender o Brasil agrário. Compreendendo a região Sul, o estado de São Paulo, a metade sudoeste de Minas Gerais e o Sul de Goiás, esta região é responsável por grande parte da produção agropecuária brasileira, tanto em quantidade quanto em diversidade; para o mercado interno e para exportação. Na metade sul desta região predominam as relações camponesas de produção e, na porção norte, as relações de assalariamento. Nesta principal região agropecuária do país também se verifica a maior difusão da mecanização e das práticas modernas em relação ao restante do Brasil, salvo em comparação com a região do agronegócio especializado dos cerrados. Na sua porção norte, apesar da grande produção, produtividade e diversidade, é inegável a existência de terras ociosas ou com prática pecuária muito extensiva, além da maior concentração da terra. Porém, mesmo com sua importância, devido à proximidade com grandes centros consumidores e pela intensa atuação dos movimentos socioterritoriais, a reforma agrária necessária nesta região não é realizada. O que acompanhamos atualmente é a transformação dessas áreas ociosas e subutilizadas em lavouras de cana-de-açúcar, sendo que mesmo as áreas desta região utilizadas com outras culturas têm sido transformadas em canaviais. A não realização da reforma agrária no norte desta importante região agropecuária do país reserva as terras ao capital, o que dificultará ainda mais a sua realização através dos princípios constitucionais.

O agronegócio, em especial aquele desenvolvido no Centro-Oeste brasileiro, constitui outra estrutura elementar da questão agrária brasileira. A produção agropecuária na região é determinada pela demanda e mando internacional, refletindo o caráter neoliberal do sistema. Em especial na região da fronteira agropecuária, o agronegócio atua de forma cooperativa com o latifúndio, que é responsável pela apropriação fraudulenta e/ou injusta da terra e pela destruição da floresta em parceria com madeireiras e carvoarias, sendo associado a este processo uma pecuária bovina extremamente extensiva. O agronegócio sucede o latifúndio ocupando as áreas com a produção de grãos. A produção do agronegócio na região dos cerrados e, já atualmente em áreas da Amazônia, é desenvolvida segundo os padrões determinados pelas tradings do agronegócio. Apesar do sistema agronegócio estar presente em todo o país, inclusive cooptando a agricultura camponesa, é no Cerrado que este sistema apresenta sua forma mais contundente, estabelecendo um território absoluto. Os estados do Centro-Oeste, em especial Mato Grosso, o oeste da Bahia e, mais recentemente, o sul do Maranhão e do Piauí (os dois estados com as piores condições de vida do país), formam os territórios do agronegócio no Brasil. Nesses territórios, o capital determina o sentido do “desenvolvimento” e sucumbe a natureza, o homem e a nação. A territorialização deste sistema sobre a Amazônia já é uma realidade. A maior parte da produção do agronegócio é exportada para alimentar rebanhos nos países desenvolvidos, enquanto que no Brasil existem cerca de treze milhões de seres humanos desnutridos. Isso demonstra o caráter alheio aos interesses sociais do país segundo o qual opera o agronegócio. Esse sistema é totalmente contrário à soberania alimentar, que pressupõe que um povo deve ter as possibilidades de produzir seu próprio alimento e somente o excedente ao atendimento das necessidades deste povo deve ser exportado. O agronegócio pode não ser tão problemático nos países desenvolvidos, mas nos países subdesenvolvidos onde se instala só contribui para aumentar a desigualdade e é mais uma forma de reafirmar a divisão internacional do trabalho, que afronta a inteligência dos povos até recentemente colonizados de forma declarada. O agronegócio é mais uma faceta da globalização perversa e deve estar no centro das discussões para o estabelecimento de um mundo mais igualitário.

As ocupações de terra e os assentamentos rurais são estruturas elementares da questão agrária brasileira. As ocupações de terra, principal forma de luta dos movimentos socioterritoriais camponeses no Brasil, é uma ação que caracteriza e particulariza a questão agrária no país. O objetivo das ações dos movimentos socioterritoriais é denunciar os problemas agrários e reivindicar soluções. Sem essas ações a configuração da questão agrária brasileira seria certamente ainda mais perversa do que a atual. A luta pela terra ocorre nas regiões de ocupação consolidada, principalmente Sul, Sudeste e em regiões do Nordeste, onde o desenvolvimento da agricultura camponesa de forma autônoma seria mais bem sucedido, pois são áreas com maior mercado consumidor potencial e com melhor infra-estrutura e acesso a serviços básicos. Os assentamentos rurais são as principais conquistas da luta dos movimentos socioterritoriais e constituem a política através da qual os governos têm desenvolvido ações de reforma agrária no país. Embora os assentamentos rurais estejam concentrados na região da fronteira agropecuária, a sua superfície em relação à área total dos imóveis rurais nessa região não é predominante, de forma que a ocupação de novas áreas na fronteira agropecuária é efetivada predominantemente por ações de particulares e não por assentamentos rurais. O assentamento das famílias nem sempre resolve os problemas agrários locais, pois os governos têm utilizado a fronteira agropecuária como região privilegiada para a criação de assentamentos rurais não reformadores. Isso permite manter concentrada a estrutura fundiária das regiões de ocupação consolidada, cujas potencialidades para o desenvolvimento da agricultura camponesa são maiores. Os modelos gráficos das ocupações de terra e dos assentamentos rurais demonstram a oposição territorial entre essas duas etapas da luta pela terra. A geografia dessas ações desvenda a ineficácia regional da política de assentamentos rurais para a solução dos problemas da questão agrária. Assim, fica claro o objetivo dos governos em utilizar os assentamentos rurais como uma resposta simplesmente quantitativa à sociedade frente às ações dos movimentos socioterritoriais. Apesar de tudo, os assentamentos representam algum grau de reforma da estrutura agrária do país, mas uma reforma conservadora. É preciso que eles sejam instrumentos de uma real reforma que desterritorialize o latifúndio e territorialize o campesinato; o último deve suplantar o primeiro. Só assim e, privando pela qualidade dos assentamentos, é que esta opção política de “reforma” p
ode surtir algum efeito na resolução dos problemas agrários e promoção do desenvolvimento.
A última estrutura elementar que destacamos é a violência contra camponeses e trabalhadores rurais, o que sem dúvidas confirma de forma mais contundente que a questão agrária brasileira se caracteriza como um problema a ser urgentemente resolvido. A violência contra os camponeses e trabalhadores rurais é deflagrada por fazendeiros e grileiros. A violência física e/ou direta contra a pessoa, caracterizada por assassinatos, ameaças de morte, tentativas de assassinato e agressões físicas é a forma mais grave, porém as posses e propriedades de camponeses e trabalhadores rurais também sofrem violência, seja através das expulsões, feitas pelos mesmos fazendeiros e grileiros, seja pelos despejos, executados pelo Estado. Embora possa ser verificada por todo o Brasil, a fronteira agropecuária, em especial o sudeste do Pará e o leste do Maranhão, concentram a maior parte dessas violências. É aí que os territórios do campesinato e do latifúndio e agronegócio competem mais diretamente. O campesinato, formado por pequenos posseiros e pelos assentados, sofre violência dos fazendeiros e grileiros, que os expulsam da terra para dela se apropriarem com fins especulativos. Contra os trabalhadores rurais a violência se manifesta também na forma de trabalho escravo, escancarando a contradição do capitalismo agrário brasileiro. Esta forma de exploração do trabalho é emprega principalmente em atividades características da fronteira agropecuária, contudo não raro é a verificação de casos no “moderno” agronegócio do sudeste. A questão é que a violência contra os mais fracos é parte integrante questão agrária brasileira, que espelha os valores e práticas das classes dominantes que têm se apropriado da riqueza do país e utilizado o grande exército de reserva formado pelos trabalhadores brasileiros. Não bastassem os baixos salários, a escravidão é mais comum do que se imaginava no campo brasileiro.
Para entender a questão agrária brasileira é indispensável ter em mente as oito estruturas elementares que destacamos, pois elas indicam a essência territorial e estrutural do problema. As discussões teóricas e análises desenvolvidas no Atlas indicam que a promoção de um desenvolvimento amplo no Brasil passa pelo equacionamento dos problemas da questão agrária que, juntamente com outros problemas estruturais do país, constituem a base da desigualdade e concentração socioterritorial que caracteriza o Brasil. A natureza estrutural dos problemas da questão agrária exige ações que vão além do desenvolvimento permitido pelo modelo capitalista neoliberal, adotado na política agrária brasileira. Desta forma, para o estabelecimento de um programa de desenvolvimento agrário no Brasil, é preciso reconhecer e centralizar as ações em dois elementos estruturais para a resolução da questão. A primeira assumpção é reconhecer que a terra, por seu interesse social, se diferencia dos outros bens passíveis de apropriação privada. Ela constitui a base para a existência humana e, por isso, sua detenção (posse ou propriedade) só pode ser legitimada aos que façam cumprir o seu papel social. O uso da terra com reserva de valor para fins especulativos deve ser abolido e o respeito ao cumprimento da função social deve ser determinante. Com a consolidação desta assumpção, no Brasil, onde as terras subutilizadas ou não utilizadas perfazem milhões de hectares, o acesso à terra como um dos problemas da questão agrária deixaria de existir. A segunda assumpção passa pelo reconhecimento do fato de que a agricultura camponesa permite o estabelecimento da função social da terra de forma mais adequada, pois a tem como local de vida, produção e reprodução social. Além disso, está comprovado que a agricultura camponesa é mais importante, pois produz a maior parte dos produtos agropecuários consumidos internamente e ainda contribui para a produção para exportação. Reconhecer a importância social da agricultura camponesa implica em direcionar esforços para sua consolidação e expansão em detrimento do latifúndio e agronegócio. Só desta forma os problemas da questão agrária serão minimizados e o desenvolvimento poderá realmente ocorrer com a superação dos conflitos.
O estabelecimento de um outro modelo de desenvolvimento rural passa pela adoção de uma entre duas formas de intervenção do Estado. Na primeira possibilidade o Estado, por optar em não alterar as regras e ações do modelo agrícola dominante na agricultura, a exemplo do que ocorre nos países desenvolvidos, interferiria na economia agrícola, dominada pelo sistema do agronegócio de caráter neoliberal, para resolver os problemas sociais por ele causados no campesinato, impedindo desta forma a sua pauperização e a conseqüente desintegração. Para esta primeira opção é necessário conceber a agricultura camponesa como prioritária e dirigir as ações exclusivamente para esses estabelecimentos, já que os grandes estabelecimentos são “aptos” para atuar no sistema do agronegócio. Isso proporcionaria maior estabilidade, desempenho da agricultura e qualidade de vida para os camponeses e, por conseqüência, para toda a sociedade brasileira. Os investimentos do Estado são direcionados à correção das perdas dos camponeses na concorrência direta com o sistema do agronegócio. Por isso, esta opção, por não se desvencilhar do capitalismo neoliberal e exigir investimento constante e crescente do Estado, caracteriza ônus à sociedade em favor dos lucros exploratórios obtidos pelo complexo de sistemas do agronegócio. A segunda opção seria mais drástica e consistiria na ruptura com o sistema agrícola neoliberal e na regulação restritiva das ações do complexo de sistemas do agronegócio na agricultura, tendo como objetivo, assim como na primeira opção, impedir a pauperização e desintegração do campesinato. Esta opção, de base estrutural, certamente implicaria na retirada dos grandes agentes internacionais do complexo do agronegócio, já que seu objetivo primordial é o lucro. Com isso, além de interventor na economia através de subsídios, caberia também ao Estado aumentar sua atuação na estruturação do modelo agrícola. Esta concepção traz para o Estado o que é lhe cabe por princípio: a distribuição das riquezas do país e a garantia do bem-estar comum.
Na atual conjuntura, nenhuma dessas duas possibilidades de desenvolvimento rural tem indícios de ser adotada no Brasil. Isso, porém, não é motivo para não reconhecê-las como as mais eficazes e necessárias para o desenvolvimento do país. Concordar com o que está posto e propor remendos sociais é uma opção, da qual não compartilhamos. É certo e inegável que o sistema estabelecido, porém nunca definitivo, deve ser alterado profundamente e da forma mais abrupta possível. A mudança gradual é fantasiosa, basta pensarmos no que se progrediu no último século a respeito da equidade social no Brasil e, mais especificamente, na questão agrária. Quem aguarda a mudança progressiva prometida vai sempre esperar. A questão é quem espera e como espera. Uma boa referência é tomar um casebre ou uma barraca de lona (preta), a fome, a sede e o maltrapilho. Não podemos aceitar que outras tantas gerações de brasileiros, com direitos iguais sobre a riqueza da terra, sejam condenadas à sobrevivência e à pobreza enquanto a riqueza é apropriada por um pequeno grupo de favorecidos. É neste contexto que a Geografia, ciência social, ganha importância com suas “invenções”: formas mais adequadas e eficientes de organizar e reorganizar de maneira mais justa o espaço geográfico. Apenas diagnosticar não basta, é necessário se posicionar frente ao problema - só assim a Geografia faz sentido.
Todos os governos brasileiros ignoraram, por opção política, as indicações dos camponeses, trabalhadores rurais e estudiosos da questão que demonstram ser indispensável realizar a reforma agrária no país. Esta opção tem como objetivo manter as características estruturais de concentração de poder econômico e político. O resultado é a continuação da exploração, violência e devastação ambiental que configuram a questão agrária brasileira, que é cada vez mais grave. Além da reforma agrária não ser realizada nas regiões já densamente ocupadas do país, uma outra frente de problemas é aberta na fronteira agropecuária em intensa expansão. A ocupação da Amazônia merece reflexão e ação destacada no contexto da questão agrária brasileira, pois até então só tem apresentado aspectos negativos. O espaço é produzido nessa região sem um planejamento efetivo voltado ao desenvolvimento social e se configura como um espaço ainda mais desigual do restante do país. A adoção do agronegócio como sustentador da inserção do Brasil no capitalismo mundial é uma situação subordinada que implica no agravamento da questão agrária no país, pois prevê a territorialização constante deste sistema em detrimento da agricultura camponesa. Assim, na conjuntura atual, é nítido que a questão agrária se agrava a cada dia. Temos um processo inverso ao que consideramos adequado, pois os problemas no campo se agravam e a realização da reforma agrária se torna cada vez mais conflituosa, e por isso, também mais importante para promover o desenvolvimento brasileiro.
NOTAS(36) O modelo das cinco regiões foi proposto por Théry (2004). Este modelo é exibido em primeiro lugar e ao lado do modelo dos cinco campesinatos para que o leitor possa tomá-lo como referência para a leitura dos oito modelos gráficos propostos neste capítulo conclusivo do Atlas.


A questão agrária

Através do paradigma da questão agrária, analisamos a questão agrária a partir de dois territórios distintos: o campesinato e o latifúndio e agronegócio. Latifúndio e agronegócio são compreendidos no trabalho como um único território, pois suas ações são coordenadas e cooperadas na concorrência com o campesinato. Esses dois territórios, o campesinato e o latifúndio e agronegócio, apresentam dois diferentes modelos de desenvolvimento para o campo e se confrontam no processo de territorialização-desteritorialização-reterritorialização.

Tomamos o conflito e o desenvolvimento como processos indissociáveis e indispensáveis ao entendimento da questão agrária. Para esta compreensão, apresentamos a seguir uma discussão sobre o conceito de camponês, os elementos que configuram a atualidade da questão agrária e a característica dos dois territórios que a compõem. Nestas discussões, apresentamos nossos posicionamentos conceituais utilizados nas análises da questão agrária.

A questão agrária na Geografia Agrária

A questão agrária, compreendida como o conjunto de problemas inerentes ao desenvolvimento do capitalismo no campo, passou a ser abordada na Geografia Agrária principalmente após o surgimento da Geografia Crítica. Foi no final da década de 60 que “procurou-se avançar em direção a uma posição mais crítica na Geografia Agrária brasileira frente à questão agrária.” (OLIVEIRA, 2001, p.10). O professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira participou deste processo com a defesa, em 1978, de sua tese de doutorado intitulada "Contribuição para o estudo da Geografia Agrária: crítica ao “Estado isolado” de Von Thünen". O professor Ariovaldo também contribuiu com a inserção, no debate da Geografia Agrária, de temas como a luta pela terra e a lógica do sistema capitalista. Como assinala Ferreira (2002), no final da década de 1970 o estudo da questão agrária passou a fazer parte das preocupações da Geografia Agrária como forma de contribuição para a resolução do problema. A ênfase da Geografia Agrária no estudo das relações sociais no campo fez com que Sociologia e Economia se tornassem as principais referências para explicar a realidade do campo “mesmo em detrimento da espacialização.” (FERREIRA, 2002, p.297).
O uso do mapa foi praticamente abandonado. De um modo geral, o referencial teórico dos trabalhos de Geografia Agrária da atualidade ainda continua sendo majoritariamente da Sociologia. Tal fato foi alvo de uma crítica feita por Fernandes (informação verbal) no XVII Encontro Nacional de Geografia Agrária, realizado em Gramado - RS. Fernandes ressaltou que, para que a Geografia Agrária brasileira ganhe espaço no debate nacional sobre o campo, é necessário que tenha como referência trabalhos geográficos; é necessário que a Geografia se consolide com um pensamento próprio acerca do campo brasileiro.
Fernandes (1999b, p.15-16), a partir da análise de alguns anais de eventos, apresenta os temas mais estudados na Geografia Agrária, sendo eles: camponeses, modernização da agricultura, questão socioambiental e agricultura, assentamentos, produção/comercialização agrícola, MST, assalariados, questão fundiária, técnicas de pesquisa no campo, políticas de colonização, relação cidade-campo, questões teórico-metodológicas em Geografia Agrária, atingidos por barragens, políticas públicas, posseiros, extrativismo vegetal na Amazônia e renda da terra. Outros temas freqüentemente abordados são a questão de gênero, a relação entre a agropecuária e a questão ambiental e os complexos agroindustriais. A diversidade de temas encontrados na Geografia Agrária atual representa o esforço no estudo da questão agrária brasileira pela Geografia. A abordagem da questão agrária pela Geografia Agrária está relacionada a uma nova forma de pensar o campo, surgida com a Geografia Crítica. O professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, precursor desta nova forma de pensar, afirma que “é pois urgente produzir uma Geografia sobre o campo que possibilite o seu entendimento; ou, mais que isto, uma Geografia que possa servir de instrumento para a transformação do campo, e se possível também, da cidade”. (2001, p.7).
Nossa concepção de Geografia Agrária vai ao encontro das leituras do campo brasileiro a partir de uma visão crítica da realidade, que está inserida no interior da Geografia Agrária formada pela influência da Geografia Crítica. É neste contexto que se insere a análise da questão agrária dentro da Geografia Agrária, pois procuramos ressaltar as contradições do campo brasileiro, que expropria, explora e subordina para que manter a alta produtividade e a concentração de terra e renda. Procuramos analisar como esses processos de expropriação e exploração se manifestam no território nacional. Esta concepção de Geografia Agrária tem como referência autores que priorizam os conflitos da questão agrária a partir do paradigma da questão agrária, cuja definição apresentamos a seguir.

Questão agrária e campesinato

A definição do conceito de campesinato é indispensável para o entendimento da questão agrária. É a partir desta definição que os trabalhos sobre a questão agrária são orientados segundo os diferentes paradigmas. Fernandes (2001) define a questão agrária como “o movimento do conjunto de problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações capitalistas de produção.” (p.23). Em outro trabalho, Fernandes (2005a) identifica dois principais paradigmas na análise do campo: o paradigma da questão agrária (PQA) e o paradigma do capitalismo agrário (PCA). Assim como o autor, tomamos para a análise desses dois paradigmas os trabalhos de Kautsky (1986 [1899]), Lênin (1985 [1899]) e Chayanov (1981[1924] e 1974 [1925]), que são relativos ao PQA, e o trabalho de Abramovay (1992), relativo ao PCA.
O PQA analisa o campo a partir da teoria marxista e o eixo central de discussão é a renda da terra, o processo de diferenciação e de recriação do campesinato, o conflito e as conseqüências negativas ao campesinato decorrentes do desenvolvimento do capitalismo no campo. Para o PQA, o desenvolvimento da agricultura camponesa depende da solução desses problemas, o que requer ir contra as leis gerais do capitalismo. Contrariamente, o PCA, cuja obra referencial que adotamos é o trabalho de Abramovay (1992), propõe uma ruptura com o paradigma marxista e afirma que a importância da agricultura familiar nos países desenvolvidos é resultado da metamorfose do camponês em agricultor familiar. O problema da agricultura de base familiar seria resolvido a partir do desenvolvimento do capitalismo até um grau ótimo, tal como nos países desenvolvidos.
Ambos os paradigmas concordam atualmente que o trabalho assalariado não se tornou majoritário no campo com o desenvolvimento do capitalismo, sendo a agricultura de base familiar importante. O principal ponto de discussão entre os dois paradigmas é o posicionamento em relação ao capitalismo. O PQA busca analisar os conflitos e as desigualdades geradas pelo capitalismo no campo, enfatizando a luta contra o capital como forma de sobrevivência e desenvolvimento do campesinato. Para este paradigma os problemas no campo são estruturais e inerentes ao capitalismo. A única forma de resolvê-los é com a superação do próprio sistema capitalista. Inversamente, o PCA busca entender as melhores formas dos agricultores familiares se integrarem ao sistema capitalista, sendo inútil a luta contra ele. Os problemas do campo são conjunturais, solucionáveis pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Este “desenvolvimento” prevê a intervenção massiva do Estado na agricultura para anular os efeitos negativos do capitalismo no setor e contribuir para o desenvolvimento capitalista em outros setores.
O primeiro trabalho que analisamos é A Questão Agrária, de Kautsky (1986 [1899]). A obra foi escrita no contexto das discussões sobre a questão agrária realizadas no interior do partido social-democrata alemão. Essas discussões procuravam uma forma de contemplar o camponês na condução da passagem do capitalismo para o socialismo, o que garantiria o apoio do campesinato ao partido. É certo que dentre os temas explorados pelo autor existem situações particulares ao seu contexto temporal e espacial, contudo, diversos elementos estruturais do trabalho são fundamentais para o entendimento da questão agrária ainda hoje.
Kautsky (1986 [1899]) analisa as conseqüências do desenvolvimento do capitalismo no campo em um período de intensificação das relações campo-cidade por meio da crescente industrialização. Para ele, a mudança do sistema feudal para o sistema capitalista apresentava progressos, tanto nas relações sociais, com o fim da servidão, quanto no aumento da produtividade, tão necessária para o período. Por isso, Kautsky apresenta elementos que demonstram a superioridade produtivista(1) do grande estabelecimento em relação ao pequeno. Contudo, apesar desses avanços, Kautsky ressalta as limitações da exploração agrícola capitalista, as quais são importantes para o entendimento da questão agrária ainda hoje. Esses problemas da exploração agrícola capitalista são principalmente a concentração fundiária, proletarização, expropriação e submissão do campesinato. Kautsky considera que o capitalismo é uma fase transitória para o socialismo, de forma que os problemas apresentados pelo capitalismo na agricultura seriam solucionados com necessária evolução para um estágio superior: os grandes estabelecimentos agropecuários socialistas. Para Kautsky, tanto a produção capitalista quanto a camponesa seriam suplantadas através de sua evolução para formas socialistas.
Outra constatação importante de Kautsky para o entendimento da questão agrária no capitalismo é o caráter contraditório deste sistema, que, ao mesmo tempo em que destrói as relações não-capitalistas (camponesas), as recria e as utiliza para o seu desenvolvimento. Kautsky utiliza como exemplo o fato de que no período analisado, o estabelecimento capitalista, ao promover intensa concentração fundiária pela expropriação dos camponeses vizinhos, tinha a necessidade de reverter o processo, dando suas terras em arrendamento aos camponeses, ou então vendendo partes delas. Isso ocorria por que o estabelecimento capitalista, ao expulsar o camponês, também expulsava a mão-de-obra que empregava para a produção, formada pelos camponeses que tinham a necessidade de desenvolver trabalho assessório para suprir as necessidades de sua família. Desta forma, o campesinato, antes desapropriado, também é recriado pelo próprio capital. Segundo Kautsky (1986 [1899]) “o grande estabelecimento pode expulsar quantos camponeses quiser que uma parte destes voltará sempre a ressuscitar como pequenos rendeiros. [...]. O modo de produção capitalista não nos promete nenhum fim do grande estabelecimento agrícola, nem promete o fim do pequeno.” (p.145, grifo nosso). Este processo é indispensável para a análise da questão agrária atual, porém é causado por situações diversas além da apresentada por Kautsky(2). A recriação do campesinato pelo capital foi mais tarde estudada e aprofundada por Luxemburgo (1985 [1913]).
O trabalho de Kautsky (1986 [1899]) também auxilia no entendimento da diferença entre a produção capitalista e a camponesa. Quanto à fonte de renda do camponês, o qual cultiva a terra com sua família, ela provém do mais-produto e não da mais-valia, como na produção capitalista. Vejamos o trecho em que Kautsky aborda este tema com detalhe:
O fato do qual resulta a mais-valia é o seguinte: a partir de certo nível de desenvolvimento técnico, a força humana de trabalho é capaz de produzir o excedente necessário à manutenção e ao prosseguimento da produção. Esse tipo de excedente – o mais-produto – resulta, desde tempos imemoráveis, do trabalho humano e todo o progresso da civilização baseia-se no gradual aumento desse excesso por meio do aperfeiçoamento da técnica empregada na produção.Sob o regime da produção simples de mercadorias o mais-produto assume a forma de mercadoria e um valor que não pode ser chamado ainda de mais-valia, porque nesse estágio da força humana de trabalho, se bem que ela produza valores, ainda não acusa nenhum valor próprio (pelo fato de não constituir mercadoria).O valor decorrente do mais-produto então reverte ao trabalhador; ele pode utilizá-lo para melhorar o bem-estar de sua família, para adquirir bens de consumo mais ou menos refinado6s, para acumular reservas, ou mesmo para formar um tesouro, ou para aperfeiçoar, ainda, seus meios de produção.[...]Parece óbvio, no entanto, que o comerciante, ao invés de extorquir a mercadoria do produtor livre, de obtê-la dele por um preço abaixo do valor da mesma, prefira aproveitar-se na situação difícil do trabalhador, e o transforme em produtor a serviço do capitalismo, em assalariado que não produz em sua própria empresa, mas na empresa do capitalista; que o transforme em assalariado que não vive da venda do seu produto, mas da venda da própria força de trabalho.Essa força de trabalho se transforma, assim, em mercadoria e, como tal, adquire um valor equivalente ao valor dos alimentos necessários à manutenção e à propagação dessa força.Reverter integralmente para o industrial capitalista o produto criado pelo trabalhador assalariado a seu serviço. O valor desse produto é equivalente ao do valor dos meios de produção manipulados – matérias primas, desgaste de maquinaria, instalações e correlatos – mais o valor da força de trabalho do operário, ou seja, em termos bem populares, o salário do trabalhador acrescido da mais-valia. É esta última que constitui o lucro. (p.63-64).
Isso explica o fato do camponês poder estar inserido no mercado e ainda assim não ser capitalista. O que define o capitalista é a fonte da mão-de-obra e a apropriação da mais-valia no processo de produção. Enquanto o camponês produz majoritariamente com a mão-de-obra própria, o capitalista compra a mão-de-obra de trabalhadores expropriados dos meios de produção e produz majoritariamente com mão-de-obra assalariada, gerando e se apropriando da mais-valia. O camponês tem a produção e o consumo coletivos, já no sistema capitalista a produção é coletiva, mas o fruto desta produção é apropriado individualmente pelo capitalista. Em um trecho em que define o camponês Kautsky afirma que o camponês é o trabalhador que
vende produtos agrícolas, mas não emprega assalariados, senão em pequeno número, por vezes algum camponês que não seja capitalista, mas simples produtor de mercadorias. Este é um trabalhador que não vive da renda que traz sua propriedade; vive do seu trabalho [...]. Ele necessita da terra como meio de transformar o seu trabalho em garantia de sua existência e não para a obtenção de lucro ou renda fundiária. Posto que o resultado de sua produção lhe reembolse as despesas e também lhe pague o trabalho investido, ele terá a sua condição de existência garantida. (p.151).
Kautsky abordou em seu trabalho outros temas importantes para o entendimento da questão agrária, tais como a migração, a renda fundiária, o mercado internacional (agravado atualmente pelo processo de liberalização dos mercados) e a cooptação dos camponeses pelo capital. A partir do exposto sobre o trabalho de Kautsky (1986 [1899]), podemos concluir que o autor, mediante o processo de subordinação ao capital sofrido pelo camponês, verifica a existência de um intenso processo de desintegração do campesinato no interior do capitalismo, mas não seu desaparecimento, pois ele é recriado. O capitalismo fez desaparecer o camponês feudal, auto-suficiente, mas garante a existência de um campesinato subordinado e em constante processo de desintegração e recriação. O desaparecimento do campesinato, assim como da forma capitalista, se daria no socialismo, através da implantação dos grandes estabelecimentos agropecuários socialistas. Neste sentido, o fim do campesinato no trabalho de Kautsky é condicionado à implantação do socialismo.
A segunda obra que analisaremos e que também faz parte do PQA é O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, escrita por Lênin (1985 [1899]) no contexto dos debates da social-democracia. As análises de Lênin são realizadas na Rússia, onde o capitalismo encontrava-se menos desenvolvido do que no oeste europeu. O autor analisou o processo de formação do mercado interno para a grande indústria, que segundo ele ocorre através da diferenciação do campesinato. A formulação do conceito de diferenciação do campesinato é a maior contribuição deste trabalho de Lênin, sendo indispensável para entendimento da questão agrária hoje. No momento em que Lênin escreveu este trabalho a Rússia ainda apresentava fortes traços feudais e as relações servis ainda eram fortes, mas em franca transição para o capitalismo. Neste contexto, sua obra é desenvolvida como resposta aos populistas, que aspiravam uma transição direta do feudalismo para o socialismo. Lênin discorda desses teóricos e afirma que o capitalismo é um estágio transitório para o socialismo. Da mesma forma como Kautsky, apesar de considerar o socialismo um sistema de produção mais evoluído, Lênin também reconhece o caráter progressista do capitalismo na agricultura e o melhor desempenho econômico da grande propriedade. Para Lênin o capitalismo, apesar de seu caráter concentrador e segregador, contribuía na aniquilação das relações feudais na Rússia e para o desenvolvimento de uma agricultura mais eficiente em relação à produtividade de alimentos. Sobre isso o autor afirma que
O reconhecimento do caráter progressista [do papel histórico do capitalismo no desenvolvimento econômico da Rússia] é perfeitamente compatível com o pleno reconhecimento dos aspectos negativos e sombrios do capitalismo, com o pleno reconhecimento das contradições sociais profundas e multilaterais que são inevitavelmente próprias do capitalismo e revelam o caráter historicamente transitório desse regime econômico. (p.372, grifos nossos).
Lênin destaca a situação subordinada e de dependência em que o campesinato se encontra no capitalismo. Para ele, o modo de produção capitalista forma o seu próprio mercado(3) através do processo de diferenciação do campesinato. A diferenciação do campesinato consiste na divisão do camponês em três grupos: ricos, médios e pobres. Os camponeses ricos são aqueles com grandes possibilidades de se tornarem capitalistas, pois sua produção lhe proporciona retornos suficientes para expandir sua exploração. Os camponeses médios são os que possuem retorno suficiente para manter o seu estabelecimento e atender as demandas de sua família, podendo ou não empregar mão-de-obra assalariada por algum período. Este grupo vive sempre em uma situação de instabilidade que pode o tornar um camponês rico ou pobre. Por fim, os camponeses pobres são aqueles que não têm retorno suficiente das atividades que realiza no estabelecimento e são obrigados a buscar outras formas de trabalho para completar a demanda de sua família e para continuar a exploração do seu estabelecimento. Esta renda é obtida a partir do trabalho acessório assalariado, seja em estabelecimentos rurais vizinhos ou na cidade. O camponês pobre tende a ser desintegrado e transformar-se em proletário. De acordo com Lênin, os três tipos podem ser divididos “entre os estabelecimentos agrícolas que fornecem mão-de-obra assalariada, [os] que não fornecem nem empregam e [os] que empregam.” (p.72).
Lênin utilizou diversas dimensões da vida e produção agropecuária para mensurar e demonstrar o processo de desintegração. A sua definição de camponês (e de agricultura camponesa) também é baseada na utilização de mão-de-obra familiar ou assalariada, vejamos:
essa agricultura mercantil já se transforma em agricultura capitalista, porque a área semeada pelo campesinato rico excede a norma de trabalho de uma família (ou seja, a quantidade de terras que uma família pode cultivar com seu próprio trabalho, o que o obriga a recorrer à mão-de-obra assalariada. (p.36).
Lênin e Kautsky, em sua época e espaços específicos analisados, ressaltam o mais importante elemento da questão agrária: o problema da pobreza e da desigualdade social gerado pela desintegração do campesinato com desenvolvimento do capitalismo no campo. Este é ainda hoje o problema fundamental da questão agrária, que é tratada pelos dois autores como um processo conflitivo (no caso estudado por ambos os autores, entre capital e trabalho), permeado por problemas a serem resolvidos com o objetivo de diminuir a pobreza e a desigualdade social. A contribuição dos dois autores diz respeito ao entendimento da relação capitalismo-campesinato, de forma que os eles discutem amplamente os princípios que regem o capitalismo. Para uma compreensão mais completa da questão é necessário entender os princípios de funcionamento do campesinato, o que pode ser encontrado no trabalho de Chayanov.
Chayanov (1981 [1924] e 1974 [1925]) apresenta uma análise da estrutura interna do campesinato que auxilia no estabelecimento do conceito de camponês. O autor afirma que, embora o modo de produção capitalista seja predominante, ele não é o único, sendo o campesinato um importante modo de produção não-capitalista. O autor deixa claro que uma unidade de produção camponesa não é uma empresa capitalista, mas sim uma unidade onde se produz e consome familiarmente; é um sistema de produção não capitalista, portanto a produção não pode ser quantificada tal como na produção capitalista.
Com efeito, o camponês ou o artesão que dirige sua empresa sem trabalho pago recebe, como resultado de um ano de trabalho, uma quantidade de produtos que, depois de trocada no mercado, representa o produto bruto de sua unidade econômica. Deste produto bruto devemos deduzir uma soma correspondente ao dispêndio material necessário no transcurso do ano; resta-nos então o acréscimo em valor dos bens materiais que a família adquiriu com seu trabalho durante o ano ou, para dizê-lo de outra maneira, o produto de seu trabalho. (CHAYANOV, 1981 [1924], p.138).
O resultado do trabalho dos membros da família é calculado segundo o atendimento ou não das necessidades do grupo familiar. A unidade camponesa é flexível e executa maior ou menor esforço para suprir as necessidades de todo o grupo familiar a fim de alcançar um ponto ótimo entre esforço de trabalho e produção.
Assim, por exemplo, cada acréscimo de produtividade do trabalho tem como conseqüência a obtenção da mesma quantidade de produtos com menos trabalho. Isto permite à unidade econômica aumentar sua produção e satisfazer plenamente a demanda familiar. Por outro lado, numa economia familiar onerada por membros incapazes de trabalhar aumenta a importância de cada rublo de renda bruta para o consumo. Isso faz com que aumente a auto-exploração da mão-de-obra familiar, de modo que o nível de vida da família, ameaçado pela maior demanda, mantenha-se de certa maneira igual. (p.39).
Quando a mão-de-obra do grupo familiar é superior à demanda no estabelecimento camponês ou quando o produto conseguido com a exploração do estabelecimento não supre as necessidades do grupo familiar, os membros da unidade camponesa podem se assalariar, trabalhando na agricultura ou em outras atividades: é o trabalho acessório. Nos escritos de Chayanov
Quando a terra é insuficiente e se converte em um fator mínimo, o volume da atividade agrícola para todos os elementos da unidade de exploração se reduz proporcionalmente, em grau variável, porém inexoravelmente. Mas a mão-de-obra da família que explora a unidade, ao não encontrar emprego na exploração, se volta [...] para atividades artesanais, comerciais e outra atividades não-agrícolas para alcanças o equilíbrio econômico com as necessidades da família. (CHAYANOV, 1974 [1925], p.101).
A flexibilidade do campesinato, assim como definida por Chayanov, é o principal elemento que possibilita a sua sobrevivência e reprodução no interior do capitalismo. Esta flexibilidade, juntamente com o caráter familiar da mão-de-obra e a não objetivação do lucro como elemento principal, são as principais contribuições do trabalho de Chayanov que consideramos na nossa concepção de campesinato. Essas características, que acreditamos serem atribuidoras da importância social ao campesinato como forma de vida e produção, são consideradas negativas pelo paradigma do capitalismo agrário, que iremos analisar agora.
O trabalho de Abramovay (1992) é baseado principalmente na diferença estabelecida pelo autor entre os conceitos de camponês e de agricultor familiar. Para estabelecer esta diferença o autor concebe o camponês a partir das características particulares que apresentava no final do século XIX, durante o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo europeu. Com este posicionamento o autor não reconhece a capacidade de mudança e adaptação intrínseca ao campesinato. Segundo Abramovay, os trabalhos de Lênin (O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia) e Kautsky (A Questão Agrária) “só podem ser compreendidos de maneira adequada no quadro das lutas políticas em que se inseriam seus autores.” (p.31). A negação da diferenciação do campesinato apresentada por Lênin é uma das bases do trabalho de Abramovay. Ele considera que “[...] a ênfase na diferenciação social reflete muito mais as condições políticas em que Lênin atuava do que propriedades objetivas e universais do desenvolvimento do capitalismo no campo [...].” (p.42). Quanto à inexistência do camponês na teoria marxista, Abramovay afirma que
É importante assinalar, sob o ângulo teórico, que não faz sentido para o marxismo a idéia de uma economia camponesa. Se [...] o mundo das mercadorias se define por sua socialidade contraditória – onde a ação de cada um é determinada de maneira não planejada pelo outro – é nesta alteridade que a vida social, e portanto as categorias econômicas centrais que lhe dão sentido, se constituem. Cada segmento e cada classe da sociedade serão conhecidos, em última análise pela maneira como se inserem na divisão do trabalho. Qualquer categoria social não imediatamente incorporada às duas classes básicas, só possuirá uma existência social fugaz, inócua de certa maneira. A relação do camponês com a sociedade, sob esse ângulo o conduz fatalmente à autonegação: seu ser só pode ser entendido pela tragédia do seu devir. Sua definição é necessariamente negativa: ele é alguém que não vende força de trabalho, mas que não vive basicamente da exploração do trabalho alheio. Neste plano, então, no mundo capitalista, o camponês pode ser no máximo um resquício, cuja integração à economia de mercado significará fatalmente sua extinção. (p.52).
Abramovay afirma que a racionalidade econômica do camponês é essencialmente incompleta, pois o campesinato não é um tipo econômico, mas um modo de vida no qual ocorre a personalização dos vínculos sociais. Corroborando para esta incompletude econômica estaria a parcialidade da sociedade camponesa, pois no campesinato a vida é estruturada em torno de um conjunto de normas próprias e específicas. “A parcialidade da sociedade camponesa vem exatamente de que, embora organizada em torno de códigos sociais próprios – cuja organização escapa à razão estritamente econômica – ela se relaciona com o mundo exterior, também através de vínculos econômicos dados pela venda de mercadorias.” (p.102). Com base em Ellis (1988), Abramovay caracteriza o campesinato por uma inserção parcial a mercados imperfeitos. Por inserção parcial ele entende a flexibilidade do camponês em escolher vender o sua produção ou então consumi-la, de acordo com as condições do mercado e as necessidades. Assim, existiria “uma certa flexibilidade nestas relações com o mercado, do qual o camponês pode freqüentemente se retirar, sem, com isso, comprometer sua reprodução social.” (p.104). O autor considera que esta flexibilidade não é sinônimo de independência e soberania, mas sim é reflexo do mercado imperfeito em que o camponês está inserido.
Para Abramovay (1992) o mercado imperfeito ao qual estaria inserido o camponês é caracterizado por relações de dependência pessoal, onde os laços pessoais são importantes, e também pela formação localizada de monopólios de compra e venda de produtos por agentes locais como taberneiros, bodegueiros e marreteiros. Este mercado se formaria devido à deficiência de comunicação, transporte e informações que caracterizaria os camponeses. O campesinato seria incompatível com ambientes mercantis e, assim que as leis do mercado passassem a prevalecer, desapareceria o caráter camponês de organização social. “A existência camponesa apóia-se sobre um conjunto de condições que o próprio desenvolvimento social econômico e político tende a eliminar.” (p.57). Por isso “os mecanismos de mercado característicos da vida camponesa alimentam-se assim, na maior parte dos casos, da pobreza dos agricultores, tanto quanto sua reprodução miserável conta com as estruturas imperfeitas pelas quais seus produtos se tornam mercadorias.” (p.123).
O camponês é caracterizado no trabalho de Abramovay como atrasado, pobre, dependente e ultrapassado. Ele representaria o que há de mais arcaico e periférico no campo. Esse camponês estaria fadado a desaparecer, pois “o capitalismo é por definição avesso a qualquer tipo de sociedade e de cultura parciais.” (p.129). Esses camponeses, ao
se integrarem plenamente a essas estruturas nacionais de mercado, transformam não só sua base técnica, mas sobretudo o círculo social em que reproduzem e metamorfoseiam-se numa nova categoria social: de camponeses, tornam-se agricultores profissionais. Aquilo que era um antes de tudo um modo de vida converte-se numa profissão, numa forma de trabalho. O mercado adquire a fisionomia impessoal com que se apresenta aos produtores numa sociedade capitalista. Os laços comunitários perdem seu atributo de condição básica para a reprodução material. Os códigos sociais partilhados não possuem mais as determinações locais, por onde a conduta dos indivíduos se pautava pelas relações de pessoa a pessoa. Da mesma forma, a inserção do agricultor na divisão do trabalho corresponde à maneira universal como os indivíduos se socializam na sociedade burguesa: a competição e a eficiência convertem-se em normas e condições da reprodução social. (p.126-127).
O que se escamoteia sob o nome de “pequena produção” é o abismo social que separa camponeses – para os quais o desenvolvimento capitalista significa [...] a fatal desestruturação – de agricultores profissionais – que se vêm mostrando capazes não de sobreviver (porque não são resquícios de um passado em via mais vou mesmo acelerada de extinção), mas de formar a base fundamental do progresso técnico e do desenvolvimento do capitalismo na agricultura contemporânea. (p.211).
O agricultor familiar é definido pelo autor contrariamente ao camponês. A única ligação entre os dois seria a predominância da mão-de-obra familiar. Segundo Abamovay (1992) “é totalmente infundada a associação tão freqüente entre agricultura familiar e ‘pequena produção’ ou ‘produção camponesa’.” (p.160). O dinamismo técnico, a capacidade de inovação e a completa integração aos mercados seriam características da agricultura familiar. Nos países desenvolvidos, onde o capitalismo teria atingido um grau de desenvolvimento superior ao dos países subdesenvolvidos, o próprio sistema aniquilaria o campesinato e teria como principal base social de desenvolvimento o agricultor familiar. A “metamorfose” de camponeses em agricultores familiares ocorreria no interior deste capitalismo com um grau superior de desenvolvimento e com forte intervenção do Estado na estruturação dos mercados nacionais. Abramovay demonstra a importância da produção agropecuária com base no trabalho familiar nos Estados Unidos e no oeste europeu. O autor reconhece o papel indispensável que o Estado desempenhou nos países desenvolvidos para que os agricultores familiares atingissem tal capacidade produtiva. Não é o mercado o elemento decisivo para este desempenho, mas sim o Estado: “o mercado está longe de ser o fator decisivo de alocação dos recursos produtivos na sociedade. A renda agrícola é um tema decisivo de discussão pública e responde a critérios institucionalmente estabelecidos.” (p.202).
Para auxiliar na definição do conceito de campesinato adotado em nosso trabalho e, para indicar nosso posicionamento quanto aos problemas do campo, apresentamos, a partir dessas exposições, alguns pontos de divergência com o trabalho de Abramovay (1992) e que se estendem ao PCA. Discordamos do autor quando ele anula qualquer possibilidade de utilização dos trabalhos de Kautsky e Lênin na análise da questão agrária atual. Como já foi exposto, acreditamos que esses trabalhos tenham suas especificidades temporal, espacial e política e que algumas de suas previsões não se cumpriram, tal como a predominância do assalariamento no campo. Contudo, não podemos ignorar contribuição estrutural desses trabalhos para o entendimento da questão agrária. Muitos elementos estudados por Lênin e Kautsky são verificáveis atualmente e constituem temas importantes da questão agrária.
É na negação da diferenciação do campesinato que reside a sustentação da tese defendida por Abramovay, segundo a qual haveria uma “metamorfose” do camponês em agricultor familiar. Na verdade, a diferença entre os diversos níveis de progresso do camponês ocorre pelo processo de diferenciação do campesinato, de forma que o camponês pode ser pobre, médio ou rico, assim como apresentou Lênin. É verdade que novos elementos foram acrescentados ao processo de diferenciação, porém o princípio básico proposto por Lênin permanece. Ao propor a “metamorfose” no lugar da diferenciação Abramovay ignora a capacidade de adaptação e transformação do camponês. O autor atribui ao camponês as características feudais do campesinato, como se ele não pudesse absorver as mudanças ocorridas desde então, bem como incorporar os avanços técnicos. É justamente esta capacidade de adaptação e transformação que permite a existência do campesinato em diferentes modos de produção. Paralelamente a isso, é preciso considerar a profunda heterogeneidade do campesinato, estudada por Shanin (2005 [1980]).
Abramovay reconhece que nos países ricos o Estado teve papel decisivo para o desenvolvimento dos agricultores familiares, de forma que seria possível distingui-los dos camponeses dos países subdesenvolvidos. Para analisar esta afirmação é necessário considerarmos que nos países desenvolvidos o Estado atua na correção dos problemas causados pelo capitalismo na agricultura, contudo, não impõe nenhum obstáculo para o capital. Quem paga este ônus é a sociedade. Seria então a proposta deixar o capital se desenvolver livremente e atribuir ao Estado, com ônus à sociedade, o papel de correção dos problemas resultantes? Aqui é necessário esclarecer que acreditamos ser legítimo que a sociedade, através do Estado, ampare o camponês. O problema está em beneficiar o capital neste processo, o que não pode ocorrer. A sociedade não pode financiar os ganhos do capital, de forma que suas ações negativas devem ser impedidas.
Se a agricultura nos países desenvolvidos tem sua base em uma produção familiar competitiva, isso é resultado de uma escolha política. Não é o desenvolvimento do capitalismo até “grau ótimo” que proporciona melhores condições produtivas e reprodutivas aos agricultores familiares dos países desenvolvidos. Ao contrário, isso é resultado da decisão política que atribuiu ao Estado o papel de proteger esses agricultores através de subsídios para a garantia de preços mínimos e atendimento das regras impostas pelo sistema agrícola capitalista – o agronegócio. Aqui nossa experiência na França nos permite afirmar que o agricultor familiar europeu não tem nada de “naturalmente” competitivo. Não fossem os subsídios da Política Agrícola Comum (PAC), da União Européia, não haveria possibilidade alguma de garantir o alto desempenho da agricultura desenvolvida nos estabelecimentos familiares e nem mesmo a qualidade de vida da qual desfrutam os agricultores. Desta forma, o sucesso desses camponeses, que Abramovay (1992) chama de agricultores familiares profissionais, não é algo que resultante de sua integração absoluta ao mercado, mas é fabricado pelo Estado protecionista. Isso por que o sistema familiar de produção é avesso ao padrão capitalista de agricultura (agronegócio) imposto também aos agricultores desses países. É o Estado que paga pelo desenvolvimento deste sistema na agricultura.
A necessidade de intervenção do Estado não ocorre pela deficiência da agricultura camponesa, mas pela imposição das regras da agricultura capitalista à agricultura camponesa. Assim, como nos países desenvolvidos o Estado reconheceu a importância social da agricultura camponesa, houve a opção em intervir com a correção dos os danos causados pelo capitalismo na agricultura camponesa. A intervenção nos danos com ônus à sociedade é uma opção, já que outra possibilidade consistira em regular a forma de atuação do capitalismo na agricultura, o que não é adotado nesses países capitalistas.
O problema em questão é que o Brasil e outros países subdesenvolvidos não atuam em nenhuma das frentes de contenção dos impactos do sistema capitalista na agricultura camponesa. Não há nem restrições das ações contra a agricultura camponesa nem a intervenção para reparar os danos a ela causados pelo capitalismo. O Estado não prioriza a proteção à agricultura camponesa e compactua com a agricultura capitalista que, estruturada segundo as regras do capitalismo, não encontra barreiras para se desenvolver. As políticas destinadas aos agricultores camponeses nos países subdesenvolvidos são baseadas no livre mercado e insuficientes para proporcionar um estágio tal como alcançado pelos camponeses dos países desenvolvidos. Desta forma, não se trata da existência de camponeses e de agricultores familiares, mas sim de camponeses em espaços diferentes que lhes proporcionam diferentes situações no contexto da diferenciação do campesinato. Assim, podemos dizer que além da diferenciação social e econômica, deve ser levada em consideração a diferenciação espacial do campesinato, verificada nas diversas escalas.
A diferenciação espacial do campesinato permite diferentes formas e graus de integração ao mercado, de produção e de qualidade de vida, pois os diferentes espaços em que o campesinato está inserido irão lhe propiciar diferentes oportunidades: o protegendo, tal como nos países desenvolvidos, com políticas protecionistas para a agricultura camponesa, ou então o deixando à deriva no ambiente totalmente hostil do mercado e do capital. Não se trata de um determinismo espacial, como alguns podem pensar, mas sim de admitir a importância do espaço na produção e reprodução do campesinato. Ao mesmo tempo em que o camponês está compreendido no espaço ele também contribui para sua construção através da sua luta para produzir e se reproduzir. Desta forma, em escala mundial ou até mesmo regional, podemos verificar uma diferenciação espacial do campesinato. Logicamente que a diferenciação espacial também é social, contudo, o espaço desempenha papel importante para o processo. Toda diferenciação espacial também é social, mas nem toda diferenciação social é necessariamente espacial, já que em um mesmo espaço ocorre a diferenciação social.
Abramovay não é o único autor a utilizar o conceito de agricultor familiar, porém é um marco neste que é o referencial teórico hegemônico sobre a produção de base familiar no Brasil, a qual tem como fundamento os trabalhos de Ellis (1988) e Mendras (1959, 1976). (CARVALHO, 2005). A construção e a utilização do conceito de agricultor familiar estão inseridas na elaboração de uma base de sustentação para políticas de desenvolvimento rural baseadas na disponibilização de crédito e assistência técnica, de modo geral para dar suporte à opção de reforma agrária de mercado assumida no Brasil. (NEVES, 2005).
Em resumo, no Brasil, o termo agricultura familiar corresponde então à convergência de esforços de certos intelectuais, políticos e sindicalistas articulados pelos dirigentes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, mediante apoio de instituições internacionais, mais especialmente a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Consagra-se para dar visibilidade ao projeto de valorização de agricultores e trabalhadores rurais sob condições precárias de afiliação ao mercado e de reprodução social, diante de efeitos de interdependência entre agricultura e indústria e do processo de concentração da propriedade dos meios de produção no setor agropecuário. Nessa conjunção de investimentos políticos, os porta-vozes de tal projeto fizeram demonstrativamente reconhecer a racionalidade econômica e social da pequena produção agrícola; a capacidade adaptativa dos agentes produtivos a novas pautas éticas de conduta econômica. (NEVES, 2005, p.15).
Admitir a metamorfose do camponês em agricultor familiar é ignorar a diversidade de formas possíveis de serem assumidas pelo campesinato e as estratégias por ele desenvolvidas na interação com o modo de produção capitalista. Esta concepção pretende a homogeneização dos diferentes tipos de campesinato. Tal proposta é inexeqüível em um país tão diverso como o Brasil, em que cada região (e no interior delas) o campesinato apresenta formas de reprodução variadas. Esta diversidade está relacionada à também profunda diferença regional do país. Em escala mundial é igualmente impossível pensar em um campesinato homogêneo que tenha o mercado como único objetivo. Capitalismo e campesinato são diferentes. O capitalismo exige padrões; o campesinato é diverso por natureza. Cada espaço possibilita diferentes oportunidades e apresenta diferentes dificuldades à reprodução do campesinato. Aderir à metamorfose do camponês em agricultor familiar é acreditar na impossível homogeneização dos espaços. “O camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um processo natural do capitalismo.” (CARVALHO, 2005, p.25).
A diferenciação do campesinato, assim como proposta por Lênin, é ajustável a diferentes situações. Diferente do período analisado pelo autor, na atualidade o capital não mais desapropria com a finalidade de conseguir mão-de-obra; ele desapropria a fim de concentrar e aumentar a produção, por isso não mais oferece a possibilidade ampla do assalariamento. Este processo ocorre principalmente nos países subdesenvolvidos, onde o capital atua livremente sem controle do Estado ou reparação dos danos sociais. O resultado é a formação de uma massa de excluídos e marginalizados pelo capital, o qual não quer nem mesmo se apropriar da mais-valia deste exército de reserva. Este exército de reserva criado pelo capital contribui para o aumento da mais-valia devido à possibilidade de diminuição dos salários pagos aos trabalhadores. Este processo intensifica a diferenciação e a desintegração do campesinato.
Shanin (2005 [1980]) afirma que na atualidade processo de diferenciação adquiriu, em escala mundial, maior complexidade e multidirecionalidade, o que desencadeia os processos de pauperização e marginalização. A pauperização acontece devido à concentração do capital em determinados pólos em detrimento a regiões onde tenha havido a desintegração, nas quais não são criados empregos. Também está vinculada a este processo a criação de uma grande massa de desintegrados que, pelo mesmo motivo, não se tornaram nem capitalistas nem proletários e se alojam nos bolsões de pobreza desses pólos. O processo de marginalização ocorre por que, sob algumas condições, o camponês não se transforma nem em capitalista nem operário, mas também não se torna simplesmente um pobre. Ele continua a existir e se vincula à economia capitalista circundante e a economia camponesa diminui no cenário nacional. Os camponeses são assim marginalizados.
Shanin (2005 [1980]) defende a permanência do campesinato na sociedade capitalista atual e o caracteriza como uma sociedade que existe paralelamente e de forma articulada ao modo de produção predominante, seja ele feudal, escravista, asiático ou capitalista. Neste mesmo fundamento se baseia Carvalho (2005), que afirma que o modo de produção camponês “se incrusta numa série de formações, ele se adapta, interioriza à seu modo as leis econômicas de cada uma delas e deixa, ao mesmo tempo, com maior ou menor intensidade, em cada uma delas a sua marca.” (p.15). Para Shanin (2005 [1980]) o campesinato, apesar de heterogêneo, apresenta seis características que o particularizam: 1) sua economia é baseada no trabalho familiar, controle dos meios de produção, economia de subsistência e qualificação ocupacional multidimensional; 2) seus padrões e tendências de organização política têm demonstrado semelhanças regionais e mundiais; 3) possui cognições típicas que envolvem padrões de aprendizado ocupacional, tendências ideológicas, cooperação, confrontação e liderança política; 4) as unidades básicas e características de organização social e seu funcionamento têm mostrado semelhança em todo o mundo; 5) é possível isolar analiticamente uma dinâmica social específica da sociedade camponesa relativa à reprodução social e sistemas de relações sociais e 6) as causas e padrões fundamentais de mudança estrutural têm sido vistos como genéricos e específicos dos camponeses. (SHANIN, 2005 [1980]). Sintetizando a existência dos camponeses, Shanin afirma que
Aceitar a existência e a possível transferência dos camponeses “intermodos” [modos de produção] é chegar mais perto da riqueza das contradições da realidade. Dizer isso não é afirmar que os camponeses sob o capitalismo são iguais aos camponeses sob o feudalismo [...]. O que realmente se quer dizer é que os camponeses representam uma especificidade de características sociais econômicas, que se refletirão em qualquer sistema societário em que operem. Quer dizer também que a história camponesa se relaciona com as histórias societárias mais amplas, não como seu simples reflexo, mas com medidas importantes de autonomia. (p.14).[...]O termo campesinato não implica a total semelhança dos camponeses em todo o mundo [...]. Os camponeses diferem necessariamente de uma sociedade para outra e, também, dentro de uma mesma sociedade; trata-se do problema de suas características gerais e específicas. Os camponeses necessariamente refletem, relacionam-se e interagem com não-camponeses; trata-se da autonomia parcial de seu caráter social. (p.18).
No trecho acima Shanin menciona a parcialidade do campesinato, a mesma que para Abramovay (1992) demonstra “os limites da própria razão econômica no funcionamento das sociedades camponesas.” (p.103). Concordamos com Shanin em tomar esta parcialidade como a característica inerente ao campesinato e que possibilita a sua existência nos diversos modos de produção, inclusive no capitalismo.
Concordamos com Abramovay no fato de que a agricultura de base familiar (camponesa) deve receber atenção especial do Estado para seu desenvolvimento. A questão central de discordância, e que reflete os princípios gerais dos dois paradigmas (PQA e PCA), é que o campesinato deve ser considerado em sua diversidade (cultural, regional, produtiva). Para além da inserção absoluta em mercados controlados pelo Estado, outras formas de reprodução e desenvolvimento do campesinato devem ser consideradas, em especial aquelas que se opõem ao desenvolvimento do capitalismo. O campo não deve ser visto como um local apenas de produção de mercadorias, mas de produção e vida. A intervenção do Estado na correção dos problemas causados pelo capitalismo no campo é a possibilidade mais imediata e permitida pelo sistema capitalista, já que não vai contra suas regras e corrobora para o seu desenvolvimento em outros setores, como esclarece o autor na seguinte passagem
Seria um equívoco, entretanto, imaginar que estas políticas [agrícolas dos países capitalistas desenvolvidos] resultam fundamentalmente da pressão e dos interesses dos próprios agricultores. Na verdade, elas foram a condição para que a agricultura desempenhasse um papel fundamental no próprio desenvolvimento do mundo capitalista: o de permitir que o peso da alimentação na estrutura de consumo dos assalariados fosse cada vez menor e portanto que os orçamentos domésticos pudessem consagrar-se crescentemente à aquisição de bens duráveis, uma das bases da própria expansão que conheceu o capitalismo entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos 1970. (ABRAMOVAY, 1992, p.22).
As outras possibilidades apresentadas nas últimas décadas pelos movimentos camponeses devem ser consideradas. O desenvolvimento da agricultura camponesa não pode ser imposto de fora unicamente para servir ao capitalismo. Esta forma de solução dos problemas causa insatisfação de parte significativa dos camponeses. É necessário pensar e agir para além das possibilidades estabelecidas pelo capital. Só desta forma os problemas da agricultura poderão ser resolvidos sem que haja mais uma vez ônus à sociedade em favor do capital. Além disso, é necessário repensar o modelo estabelecido na União Européia e nos Estados Unidos. Apesar dos benefícios ao campesinato desses países, a superprodução e exportação dos excedentes subsidiados têm causado a intensificação do empobrecimento de camponeses (produtores) em outros países, onde o Estado não promove o protecionismo: os países subdesenvolvidos. Os camponeses desses países não conseguem concorrer com os produtos subsidiados e, como são produtores vendedores, são prejudicados. Este fato é bem esclarecido por Mazoyer (2001). Especificamente na Europa, os mecanismos da PAC já dão sinais de extrapolação de seus objetivos iniciais, pois continuam a promover concentração de terra a expulsão dos camponeses menos “competitivos”, contra o que os camponeses têm lutado ultimamente.
O conflito não é considerado no trabalho de Abramovay (1992). Os problemas no campo seriam resolvidos com o a integração ao mercado, tendo o Estado como apaziguador no processo de desenvolvimento do capitalismo. O trabalho dá a impressão de que os camponeses dos países desenvolvidos (agricultores familiares para Abramovay) estariam totalmente satisfeitos com a situação em que se encontram, configurada pela total dependência do Estado e das transnacionais. Ao contrário, nesses países os camponeses também possuem suas lutas pelo acesso à terra, às condições de produção, renda, sanidade dos alimentos etc. Aqui novamente nos baseamos em nossas experiência na França, onde entrevistamos os coordenadores da Conféderation Paysanne e vários de seus membros durante nossas visitas de campo. Além disso, basta lembrar que a Via Campesina agrega movimentos camponeses de diversos países capitalistas desenvolvidos, dentre eles EUA, Canadá e membros da União Européia.
Os problemas que compõem a questão agrária estão ligados sobretudo ao processo de diferenciação e desintegração do campesinato. A principal conseqüência da desintegração do campesinato é a pobreza do camponês, sua baixa qualidade de vida e dependência de fatores externos para conseguir produzir e permanecer no seu estabelecimento. Contudo, apesar da desintegração ser um processo intenso pelo qual o campesinato tem passado, ele não tem como único destino o desaparecimento. De acordo com Luxemburgo (1985 [1913]), o capitalismo, através de seu desenvolvimento contraditório, utiliza-se de formas não capitalistas de produção e por isso, ao mesmo tempo que destrói o campesinato, também o recria. Esta recriação, contudo, é controlada pelo capital. São exemplos deste tipo de recriação o arrendamento da terra e a “integração” dos camponeses na produção para a agricultura capitalista, tal como os produtores de fumo, aves e suínos no sul do Brasil. O campesinato ainda pode se recriar a partir da compra da terra. Além destas formas de recriação, os movimentos camponeses têm demonstrado que o campesinato também é capaz de se recriar a partir de sua luta(4), como defende Fernandes (2000).
Concordamos com Fernandes (2005a) em que a diferença entre camponês e agricultor familiar existe somente no plano teórico, pela adoção de um paradigma ou outro, pois os dois paradigmas (PQA e PCA) são formas diferentes de análise do desenvolvimento da agricultura. “Separar o camponês de agricultor familiar ou considerá-los um único sujeito em um processo de mudança é uma questão de método.” (p.19). Optamos por utilizar o conceito de camponês como é concebido no paradigma da questão agrária, o que nos permite o uso de agricultor familiar como sinônimo, visto que este paradigma não estabelece diferença entre os dois. Acreditamos que o importante a ser buscado é a explicação e a solução do fato que “o trabalhador rural é o elo mais vulnerável, na cadeia do sistema produtivo que começa com sua força de trabalho e termina no mercado internacional.” (IANNI, 2005, p.139).
Não nos remetemos aqui ao camponês feudal, o qual não mais existe em sua completude. É necessário considerar as mudanças ocorridas e conceber a essência camponesa. Durante séculos o camponês modificou sua forma de produção e vida, suas relações com o mercado e com a cidade, contudo, preservou suas características básicas: a produção familiar e a resistência. Essas duas características permitem identificar camponeses em todo o mundo. Camponeses são produtores que desenvolvem suas atividades com força de trabalho predominantemente familiar; que têm a terra como local de produção e reprodução social; que lutam permanência na terra e contra a desigualdade social gerada pelo desenvolvimento do capitalismo. Possuindo diversos graus de tecnificação, integração ao mercado, conhecimento e qualidade de vida, os camponeses podem ser pobres, médios ou ricos. É a partir desta concepção de camponês estudamos a questão agrária brasileira.
A atualidade da questão agrária

A discussão que apresentamos na seção anterior delimita as diferentes compreensões da questão agrária apresentadas pelo paradigma da questão agrária e pelo paradigma do capitalismo agrário. Deixamos claro o nosso posicionamento ao lado do PQA e também definimos a concepção de camponês adotada no trabalho. Iniciamos aqui, com base em autores ligados ao PQA, uma discussão sobre questão agrária que considera novos elementos que contribuem para a estruturação do debate atual, de forma que destacamos a globalização, o neoliberalismo, o agronegócio e a crise ambiental.
Consideramos que a compreensão da questão agrária como um problema inerente ao desenvolvimento permite uma abordagem atual e ampla do tema. Esta compreensão abrange novos elementos da questão agrária e avança em relação à discussão tradicional(5). Para isso é necessário, como destaca Gómez (2006), realizar uma re-leitura do desenvolvimento imposto pelo sistema neoliberal. Este modelo de desenvolvimento é imposto através de órgãos internacionais (principalmente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) e dos países capitalistas desenvolvidos, que controlam esses órgãos. Só assim é possível apresentar uma argumentação teórica que indique o sentido de desenvolvimento rural adequado para a resolução ou minimização dos problemas da questão agrária, os quais disseminam pobreza pelo campo e pela cidade.
Gómes (2006) defende que o desenvolvimento imposto pelas instituições neoliberais é baseado em um discurso que opera como controle social. Este discurso tem como principal função a afirmação – e repetição até a sua aceitação – de que as políticas neoliberais para o desenvolvimento funcionam, o que não ocorre. A afirmação da eficiência dessas políticas é o principal instrumento para a aceitação deste modelo de desenvolvimento. O desenvolvimento imposto pelo Banco Mundial tem como função tentar solucionar os problemas causados pelo capitalismo por meio das próprias regras capitalistas, o que é impossível. Este desenvolvimento é utilizado pelo capitalismo como estratégia para a sua própria reprodução. Gómes denomina este desenvolvimento de desenvolvimento possível, pois é o único praticável dentro das regras do capitalismo. Contudo, haveria uma outra via, que o autor denomina de desenvolvimento intolerável aos olhos do capitalismo, já que este modelo contraria suas regras.
Outro autor que realiza uma crítica ao desenvolvimento imposto pelo modelo neoliberal é McMichael (2006). Ele afirma que historicamente o desenvolvimento tem sido utilizado como pretexto para intervenção internacional e imposição do modelo neoliberal com o suposto objetivo de diminuir a pobreza. No mesmo sentido, Desmarais (2007) propõe que o atual modelo agrícola neoliberal foi exportado pelo mundo com o objetivo de minimizar a pobreza. McMichael considera que, ao contrário do que prega o desenvolvimento imposto, a pobreza é fruto deste próprio modelo de desenvolvimento e não uma condição anterior. Através dessas intervenções com propósitos ao desenvolvimento, o principal objetivo é, na realidade, a imposição de um único modelo de desenvolvimento em um mundo diverso. Este modelo de desenvolvimento é propulsor para o avanço do próprio capitalismo, visto que o principal fundamento das políticas de desenvolvimento do Banco Mundial é dar à população pobre acesso ao mercado, ou seja, expandir o mercado. Em relação ao desenvolvimento rural, as políticas do Banco Mundial para a reforma agrária têm sido elaboradas no sentido de solucionar a “questão da terra” através da “propriedade privada” – a reforma agrária de mercado. O principal instrumento utilizado é a concessão de microcrédito. De forma geral, esses dois modelos de desenvolvimento refletem as diferenças entre os dois paradigmas – PCA e PQA.
Buckland (2006) analisa o desenvolvimento rural no contexto do neoliberalismo a partir da comparação de duas abordagens: o crescimento econômico dirigido pelo mercado e a agricultura sustentável. Ambas as abordagens concordam que o modelo de agricultura deve ser baseado em pequenos e médios estabelecimentos. A abordagem do crescimento econômico dirigido pelo mercado propõe que a expansão de mercados perfeitos – competitivos e balanceados – e o constante crescimento econômico seriam responsáveis pelo desenvolvimento, inclusive rural. Os danos ambientais causados pelo constante crescimento econômico são tidos por esta abordagem como externalidades. A abordagem da agricultura sustentável defende melhorias sociais e ambientais pela combinação de práticas agrícolas modernas e tradicionais que garantam alimento e conservem o meio-ambiente. Ao contrário da outra abordagem, a agricultura sustentável defende que o crescimento econômico constante é uma das causas da degradação do campo, porém concorda com o crescimento de forma sustentável. O neoliberalismo é caracterizado pela formação de mercados desiguais, concentração econômica e predominância de grandes empresas transnacionais. Desta forma, o modelo agrícola difundido pelo neoliberalismo é contrário aos dois paradigmas, porém em maior intensidade ao paradigma da agricultura sustentável. Para a abordagem do crescimento econômico dirigido pelo mercado, o capitalismo resolve seus próprios problemas e não é necessário contrariar suas regras. A agricultura sustentável apresenta uma proposta mais imediata, pois implicaria em contrariar as regras do capitalismo e forçar o desenvolvimento que ele não é capaz de realizar.
Nos últimos 20 anos o cenário agrícola internacional tem sido afetado por quatro principais elementos do neoliberalismo que atuam de forma integrada. A) Os ajustes estruturais desiguais, impostos somente aos países subdesenvolvidos, permitiram a continuação dos programas de subsídios dos países desenvolvidos. Estes ajustes obrigaram o Estado nos países subdesenvolvidos a se retirar da economia e abrir seus mercados. O setor agrícola destes países foi afetado pela retirada de ajudas e, juntamente com a redução do papel do Estado na seguridade social, aumentou a pobreza rural. B) A desigual liberalização do mercado agrícola abriu caminho para o setor privado aumentar sua influência, especialização da produção e para o crescimento econômico. Isso fez com que algumas regiões fossem impelidas a se especializarem na produção agrícola em detrimento de bens manufaturados com valor agregado. A liberalização, assim como os ajustes estruturais, não foi imposta aos países desenvolvidos, que mantêm seus mercados fechados e os subsídios, que correspondem a cerca de 20% de seus PIBs. Isso cria mercados desiguais. (MORISSET, 1997 apud BUCKLAND, 2006).
C) O controle pelas corporações transnacionais é intenso e crescente. A produção de novas técnicas e organismos é dominada por essas corporações. Isso faz com que os agricultores se tornem dependentes de sementes geneticamente modificadas e insumos fornecidos por um pequeno número de grandes corporações. A cadeia estabelecida pelas grandes corporações inclui ainda a compra da produção, a transformação dos alimentos e a venda, o que configura total controle de todas as etapas do processo. As cadeias são pensadas para a produção em grande escala e privilegiam os grandes produtores. A ação das corporações fez com que nos últimos 25 anos o preço recebido pelos produtores decaísse, mas se mantivesse para os consumidores, o que implica em maiores lucros para as corporações. (MORISSET, 1997 apud BUCKLAND, 2006). D) O último elemento que configura o neoliberalismo na agricultura é o direito sobre propriedade intelectual, que é aplicado às novas variedades de plantas e confere poder de monopólio às corporações que as desenvolvem, excluindo os pequenos produtores. (BUCKLAND, 2006). Cinco corporações transnacionais concentram essas patentes, sendo três norte-americanas: Aventis (StarLink), Dow (EUA: Sinal Verde), Dupont (EUA: Pioneer), Monsanto (EUA: Dekalb, Monsoy, Soundup Ready) e Syngenta (Novartis). (WELCH, 2005).
O modelo agrícola neoliberal se caracteriza pela concentração, domínio pelas grandes corporações, prejuízo dos agricultores, direcionamento para o grande estabelecimento agrícola, favorecimento dos países desenvolvidos em detrimento dos subdesenvolvidos, intensificação da especialização da produção, incentivo à monocultura, degradação ambiental e aumento da pobreza. Uma reestruturação deste modelo requer, em primeiro lugar, a equalização entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos, pois este é o principal elemento que incentiva a desintegração do campesinato pela diferenciação espacial. Por seu caráter totalmente concentrador, excludente e predatório, o modelo agrícola neoliberal não permite nenhum desenvolvimento.
Neste sentido, a base do modelo agrícola neoliberal é o agronegócio. Como referência, tomamos o trabalho de Davis e Goldberg (1957), que define o agronegócio como um complexo de sistemas caracterizado pela diminuição do controle da produção pelo agricultor. As atividades do agricultor se resumem ao momento da produção e ele depende de empresas e intermediários para dar-lhe suporte (fornecimento de insumos, máquinas, técnicas de produção) e para a venda e transformação da produção, alongando o circuito e diminuindo os lucros e a independência do agricultor. O agronegócio necessita de uma concentração crescente para se sustentar. Welch e Fernandes (2008), também com base em Davis e Goldberg (1957), afirmam que o agronegócio “é um complexo de sistemas que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças. O movimento deste complexo e suas políticas formam um modelo de desenvolvimento econômico controlado por corporações transnacionais” (WELCH e FERNANDES, 2008, p.165). Segundo Welch e Fernandes (2008), o agronegócio é controlado pelo capital e tem dominado tecnologias e políticas agrícolas. O campesinato pode produzir no interior do agronegócio, porém de forma subalterna, pois esta é uma condição determinada pelo capital. Os autores ressaltam que agronegócio e campesinato são sistemas diferentes.
Os camponeses podem participar da produção no sistema do agronegócio (produzindo os mesmos produtos dominados pelo sistema), mas não são inseridos nele; eles participam de forma subordinada, como é o caso da “integração” do campesinato com empresas para a produção de frango, fumo, cana-de-açúcar, por exemplo. Ao produzir no interior do sistema do agronegócio, o camponês não tem o controle; quem controla é o sistema do agronegócio. Podemos chamar esta produção de produção camponesa subordinada. Esta é uma condição de subalternidade da produção camponesa. Existem outros tipos de produção camponesa em que o camponês consegue maior independência na escolha do que produzir, como produzir, para quem vender e quando vender. A produção orgânica com venda direta ao consumidor é um exemplo desta outra condição de produção camponesa em que se destaca a autonomia(6).
A disputa entre os dois diferentes sistemas que são o agronegócio e o campesinato produz, no interior da questão agrária, um processo conflitivo. A partir deste processo, Fernandes (2005a) apresenta uma abordagem da questão agrária. Para o autor “conflito agrário e desenvolvimento são processos inerentes da contradição estrutural do capitalismo e paradoxalmente acontecem simultaneamente [...] e a questão agrária sempre esteve relacionada com os conflitos por terra.” (p.2). O conflito é visto pelo autor não como um empecilho, mas como um processo necessário e inerente ao desenvolvimento. O conflito é alimentado pelas contradições e desigualdades do capitalismo e é por este processo que campesinato e capitalismo se enfrentam para a solução dos problemas e promoção do desenvolvimento. Por isso, ao desconsiderar o conflito, muitos projetos de desenvolvimento do campo fracassam. Fernandes afirma que a questão agrária é o movimento de destruição e recriação de relações capitalistas e camponesas de produção, tendo nascido da “contradição estrutural do capitalismo que produz simultaneamente a concentração da riqueza e a expansão da pobreza.” (p.4). Para o autor, não há como superar a questão agrária no capitalismo, seus problemas podem apenas ser minimizados.
Os movimentos socioterritoriais camponeses(7) são os principais responsáveis pela inserção da questão agrária como elemento imprescindível ao se pensar o desenvolvimento. As causas defendidas por esses movimentos representam o que existe de mais atual na questão agrária. Camponeses sem terra, com pouca terra, ameaçados pelo modelo agrícola dominante ou insatisfeitos com ele formam esses movimentos. Os camponeses lutam pela terra, pela permanência nela e para a mudança do atual modelo agrícola neoliberal que intensifica o processo de desintegração do campesinato pelo mundo. Esses movimentos propõem um novo modelo de desenvolvimento. Frente ao conjunto de novos problemas inerentes à questão agrária, a luta dos camponeses se dá principalmente contra a
temporalidade da modernidade capitalista, que concebe os camponeses como pré-modernos e contra a espacialidade que remove e separa humanos da natureza. De fato, a modernidade do ‘caminho camponês’ é precisamente reafirmar as subjetividades solidárias concretas que reintegram o humano/ecológico através da reconstrução de espaços de resistência. (MCMICHAEL, 2006, p.478).
McMichael afirma haver uma nova questão agrária configurada pela ação dos movimentos sociais do campo. As ações desses movimentos vão contra o discurso dominante, o qual analisa o campesinato a partir das lentes do capitalismo; elas apresentam uma narrativa centrada no agrário, em contraponto à narrativa centrada no capital. As ações desses movimentos sociais têm reestruturado o desenvolvimento em quatro pontos principais:
Primeiro: inverte o atual explanandum do desenvolvimento, focalizando a pobreza mais como um resultado do que como um ponto de partida para o desenvolvimento (no estilo neoliberal). Segundo (e correlato): muda o desfecho da descamponização, revalorizando a ecologia cultural rural como um bem global. Terceiro: subverte o foco subjetivo do desenvolvimento na responsabilidade individual, reafirmando uma cultura política de solidariedade. Quarto: pratica uma política de múltiplas perspectivas, desafiando a perspectiva de um só ponto do desenvolvimento oficial. (p.472).
No Brasil, o mais importante movimento socioterritorial camponês é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que é membro da Via Campesina. Para o MST, a questão agrária brasileira não é somente uma questão de terra; ela apresenta diversos outros problemas atuais como a questão de gênero, democracia, meio-ambiente (água, florestas e biodiversidade), direitos humanos, alimentos transgênicos, agronegócio e agricultura ecológica. O MST, através de suas ações, luta pela solução dos problemas concernentes à questão agrária, questionando o governo, as grandes empresas, os fazendeiros e a sociedade acerca das práticas socialmente injustas e ambientalmente predatórias disseminadas no campo pelo modelo agrícola dominante – o agronegócio. O MST luta por um desenvolvimento que considere a diminuição da desigualdade e da pobreza no campo, na cidade e na floresta(8) a partir da resolução dos problemas da questão agrária.
De acordo com Welch (2005) “a presença de corporações transnacionais, especialmente aquelas ligadas à biotecnologia e exportação de produtos agrícolas como a soja, tem desafiado o MST a realizar um conjunto de ajustes estratégicos para continuar avançando na luta pela reforma agrária.” (p.35). Táticas antigas foram repensadas e outras foram criadas para fazer frente à territorialização do agronegócio. Essas táticas são baseadas em duas perspectivas. Uma delas questiona os impactos do cultivo e consumo dos novos organismos. Esses novos organismos requerem o uso intensivo de adubos, agrotóxicos e hormônios, além de atentar contra a biodiversidade. Os danos ao meio-ambiente são intensificados e o perigo do consumo desses organismos é uma incógnita. A outra perspectiva argumenta que o Brasil está perdendo sua soberania alimentar com a intensificação do uso da biotecnologia dominada pelas transnacionais. Este processo intensifica a dependência do agricultor. (WELCH, 2005). “Do ponto de vista filosófico e político, a biotecnologia representa uma transferência repreensível de conhecimento e riqueza de recursos naturais dos trópicos, ricos em biodiversidade e pobres em capital, para o hemisfério norte, pobre em biodiversidade e rico em capital.” (p.37). Neste sentido, as ações tradicionais como marchas e ocupações de terra foram intensificadas. A ocupação não é mais realizada apenas em terras devolutas ou improdutivas, elas passaram a ser realizadas também em áreas de monocultura e de transgênicos. A cana-de-açúcar, eucalipto e a soja são os principais focos da luta.
No documento Proposal for family farm based, sustainable agriculture, publicado pela Via Campesina em 2002, em Joanesburgo, na ocasião do World Summit on Sustainable Development¸ a organização enumera os principais problemas relativos à questão agrária, para os quais clama por solução. A principal causa para a desintegração do campesinato é neoliberalismo e suas regras, impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI aos países subdesenvolvidos. Os problemas apresentados são relativos à produção, cultura e meio-ambiente, sendo destacadas as diferenças entre a produção capitalista e a camponesa. A via campesina estrutura sua luta em torno de cinco temas: reforma agrária, biodiversidade e recursos genéticos, soberania alimentar e comércio, mulher, diretos humanos, migração e trabalhadores rurais e agricultura camponesa sustentável. “O principal objetivo da Via Campesina é a construção de um modelo radicalmente diferente de agricultura baseado no conceito de soberania alimentar.” (p.26). O conceito de soberania alimentar ocupa o lugar central nas defesas da Via Campesina, segundo a qual o conceito significa
• Priorizar a produção de alimentos saudáveis, de boa qualidade e culturalmente adequados em primeiro lugar para o mercado interno. É fundamental manter a capacidade de produção de alimentos baseado em um sistema agrícola diversificado – que respeite a biodiversidade, capacidade de produção da terra, valores culturais, preservação de recursos naturais – para garantir a independência e a soberania alimentar das populações.• Garantir preços justos para os agricultores e agricultoras, o que requer a proteção de mercados internos contra importações a preços baixos.• Regular a produção no mercado interno para evitar excessos.• Frear o processo de industrialização de métodos de produção e desenvolver a produção sustentável baseada na agricultura familiar.• Abolir qualquer ajuda direta ou indireta à exportação. (VIA CAMPESINA, 2000 apud DESMARAIS, 2007, p.34).
Os resultados da revolução verde e o processo de comoditização dos produtos agropecuários, ocasionado pelo modelo neoliberal, têm intensificado os problemas da questão agrária através do estímulo à expansão do agronegócio. A expansão do agronegócio em detrimento da agricultura camponesa causa intensos danos socioambientais devido ao caráter concentrador e predatório desse modelo agrícola. Este quadro, globalmente estabelecido, configura o novo contexto de expropriação do campesinato, contra o qual ele deve lutar para não ser desintegrado.
A Via Campesina (2002) critica o caminho socialmente desigual e depredatório que a agricultura capitalista, corporativizada e intensamente industrializada, tem traçado e disseminado pelo mundo. Ela também argumenta que “este sistema econômico atenta contra a natureza e as pessoas com a única finalidade de gerar lucros” (p.1). “A liberalização permitiu que um pequeno grupo de corporações transnacionais atingisse todo o mundo; elas são agora melhor posicionadas para determinar qual, onde, por quem e por qual preço determinado alimento é produzido” (DESMARAIS, 2007, p.56), o que diminuiu a autonomia dos agricultores. Na agricultura, os acordos de livre comércio atuam em dois principais sentidos: “a) removendo tarifas, cotas e impostos esses tratados suplantam as fronteiras econômicas entre as nações e impelem um bilhão de agricultores para um único e fortemente competitivo mercado; b) ao mesmo tempo, esses tratados facilitam fusões de empresas agrícolas, o que faz diminuir a concorrência.” (NFU, 2002 apud DESMARAIS, 2007, p.65-66).
Segundo Mazoyer (2001), concomitante com cerca de 25 anos de liberalização de mercados e 50 anos de revolução verde, a miséria e as deficiências alimentares fazem parte da vida da maioria dos camponeses do mundo. O funcionamento da economia mundial é responsável pela manutenção e ampliação e miséria dos camponeses. Os benefícios da revolução verde só atingiram uma ínfima parte dos produtores, e o restante, a maioria camponeses, utiliza meios de produção arcaicos, cujo resultado é uma produtividade muito pequena. Cerca de um terço dos agricultores utiliza exclusivamente técnicas manuais de produção. Se as tentativas para redução da fome forem mantidas como atualmente, serão necessários dois séculos para extinguir a desnutrição. Três quartos da população mundial que sofre com desnutrição aguda são camponeses. Isso ocorre por que a queda no preço dos alimentos, causada pela revolução verde. Com a liberalização dos mercados e barateamento do transporte, os países importadores de alimentos pagam preços baixos por eles, já que os alimentos são comprados de países com excedentes devido à sua grande produção subsidiada. Desta forma, os camponeses, principalmente de países subdesenvolvidos, onde não há subsídios, não podem competir e acabam recebendo menos por sua produção, o que acarreta a desintegração do campesinato e sua miséria nesses espaços. O grande problema é que, devido a isso, a maioria das pessoas com deficiências alimentares não são comsumidores-compradores, mas sim produtores-vendedores. Este fato atesta que as políticas de barateamento de preços de alimentos para os consumidores-compradores como forma de diminuição da fome é equivocada. (MAZOYER, 2001).
No livro La Via Campesina, Annette Desmarais (2007) analisa o desenvolvimento rural no contexto da globalização a partir dos princípios e ações da Via Campesina. A autora demonstra que os problemas inerentes ao modelo agrícola predominante fizeram com que camponeses do mundo todo se unissem em torno de objetivos comuns: lutar contra o neoliberalismo, propor um outro modelo de agricultura e defender a comunidade e a diversidade. Não são apenas os agricultores do sul que sentem os reflexos da liberalização, este processo também afeta os agricultores do norte, causando expressiva desintegração na União Européia, Canadá e Estados Unidos. A luta desses agricultores não é para serem incluídos, mas sim para alterar o modelo agrícola atual. O que existe é a luta entre duas visões de mundo. O modelo de globalização neoliberal opera a favor da homogeneização cultural e formação de um mercado mundial através da liberalização e comoditização de tudo. Ao contrário, os movimentos sociais procuram o respeito à diversidade, redefinindo o desenvolvimento. “O conflito não é entre agricultores familiares do norte e camponeses do sul. A luta é entre dois modelos de desenvolvimento social e econômico concorrentes – e em muitos sentidos diametralmente opostos.” (p.33, grifo nosso).
O modelo agrícola neoliberal, dirigido por corporações que contam com amplo apoio dos governos nacionais e instituições internacionais, tem a agricultura unicamente como fonte de lucros. Este modelo, o agronegócio, intensifica a influência sobre os processos naturais e concebe o camponês como incapaz de produzir conhecimento e como um receptáculo pronto para atender as imposições das transnacionais. O outro modelo de desenvolvimento defendido pela Via Campesina – o modelo camponês – tem como base a independência dos agricultores, valorizando o mercado interno e os recursos locais para ser economicamente viável e ecologicamente sustentável. Este outro modelo prevê, a partir do conceito de soberania alimentar, uma reforma agrária que “vá além da redistribuição de terra; envolva uma ampla reforma do sistema agrícola em favor da produção e comercialização pelos pequenos produtores.” (p.35). Esta reforma agrária envolve o “acesso democrático e controle dos recursos produtivos como água, sementes, crédito e treinamento; também compreende o gerenciamento de suprimentos e mercados regulados para assegurar preços mínimos para aqueles que produzem comida.” (p.36, grifo nosso). Os principais objetivos desta reforma agrária são eliminar a pobreza e a diferença social e promover o desenvolvimento das comunidades. (DESMARAIS, 2007).
O modelo camponês defendido pela Via Campesina não propõe a rejeição da modernidade, tecnologia ou comércio acompanhada por um retorno romantizado a um passado arcaico baseado em tradições rústicas. Diferentemente, a Via Campesina insiste que um modelo alternativo deve ser baseado em certos valores em que a cultura e justiça social pesem e mecanismos concretos sejam estabelecidos para assegurar um futuro sem fome. O modelo alternativo da Via Campesina busca resgatar aspectos tradicionais, locais e conhecimento dos agricultores e, quando e onde for apropriado, combinar esse conhecimento com novas tecnologias. (DESMARAIS, 2007, p.38, grifos nossos).
A questão do uso adequado dos recursos naturais está presente no trabalho de Guzmán e Molina (2005)(9). Os autores apresentam uma definição de campesinato a partir do conceito de agroecologia(10) e também reconhecem a existência de dois modelos de agricultura. Eles afirmam que sua construção teórica é elaborada no sentido de desarticular o pensamento neoliberal, que prega ser inevitável a evolução da agricultura familiar para o agronegócio. Para os autores
a única solução para o problema socioambiental que atravessamos está num manejo ecológico dos recursos naturais, em que apareça a dimensão social e política que traz a agroecologia e que esteja baseada na agricultura sustentável que surge do modelo camponês em sua busca por uma soberania alimentar. (p.11).
Palerm (1980), citado por Guzmán e Molina (2005), afirma que a discussão sobre o campesinato no capitalismo deve ser centrada na sua continuidade e permanência histórica e não no seu desaparecimento. O campesinato subsiste devido a suas modificações, adaptações e oportunidades na expansão do capitalismo. “O futuro da organização da produção agrícola parece depender de uma nova tecnologia centrada no manejo inteligente do solo e da matéria viva por meio do trabalho humano, utilizando pouco capital, pouca terra e pouca energia inanimada.” (PALERM, 1980, p.196-197 apud GUZMÁN e MOLINA, 2005, p.73). A base desta alternativa seria o campesinato.
Guzmán e Molina (2005) ressaltam a forma de utilização dos recursos naturais praticada pelos camponeses. Esta forma de utilização apresentaria variações nos diferentes modos de produção com os quais o campesinato coexistiu. A partir do estabelecimento de três classes de utilização dos recursos naturais (primário, relativo aos caçadores e coletores; secundário, dos camponeses; terciário, da indústria) os autores afirmam que “é possível discriminar umas formas de produção de outras dentro de um mesmo sistema de produção e, ao mesmo tempo, identificar o campesinato como uma categoria integrada a um específico modo de uso dos recursos naturais.” (p.80). Para os autores
o campesinato é, mais do que uma categoria histórica ou sujeito social, uma forma de manejar os recursos naturais vinculada aos agroecossistemas locais e específicos de cada zona, utilizando um conhecimento sobre tal entorno condicionado pelo nível tecnológico de cada momento histórico e grau de apropriação de tal tecnologia, gerando-se assim distintos graus de “camponesidade”. (p.78, grifo nosso).
Contemplariam esse grau de componesidade os seguintes indicadores: “a) energia utilizada; b) escala ou tamanho do âmbito espacial e produtivo do seu manejo; c) auto-suficiência; d) natureza da força de trabalho; e) diversidade; f) produtividade ecológico-energética e do trabalho; h) natureza do conhecimento e, por último, i) cosmovisão. (TOLEDO, 1990 apud GUZMÁN e MOLINA, 2005, p.82). Este grau de componesidade compreende ao mesmo tempo elementos da diferenciação do campesinato e a diversidade de tipos que o campesinato pode assumir no intercâmbio com o capitalismo.
Vejamos o que podemos sintetizar das discussões desta seção. Duas visões se destacam na abordagem do par desenvolvimento e questão agrária. Uma é aquela difundida pelo sistema neoliberal através do Banco Mundial, em que desenvolvimento e questão agrária são dissociados; os conflitos são ignorados e a única via possível é a sujeição ao capitalismo através de políticas de mercado. Trata-se de um desenvolvimento excludente, restrito às normas do capitalismo e que não avança contra o capital. Para esta visão, o desenvolvimento a ser realizado é o desenvolvimento possível dentro das regras do capitalismo; nada que contrarie essas regras é permitido. A outra visão parte do princípio de que desenvolvimento e questão agrária são indissociáveis. Nela, as políticas de mercado não são suficientes para resolver os problemas da questão agrária, sendo necessárias para isso outras alternativas, diferentes daquelas propostas pelo neoliberalismo. A partir desses pressupostos, é defendido um outro desenvolvimento, mais amplo e integrador, que avança em detrimento do capitalismo.
É na segunda perspectiva, de um outro desenvolvimento agrário, que as lutas dos movimentos socioterritoriais se apresentam como elemento propulsor do desenvolvimento, visto que propõem ir contra as regras capitalistas. O desenvolvimento imposto pelo neoliberalismo insiste em desconsiderar o conflito e desqualificar as ações desses movimentos. Considerar o conflito existente entre campesinato e capitalismo e atender a demanda do campesinato com prejuízos ao capitalismo é a única forma de minimizar os problemas da questão agrária e assim promover o real desenvolvimento. É impossível atender capitalismo e campesinato simultaneamente sem que haja sujeição do campesinato ao capitalismo, pois isso é inerente ao sistema capitalista. Para que haja desenvolvimento agrário, é necessário compreender que campesinato e capitalismo são dois sistemas distintos e que, em uma tentativa de integração e/ou parceria entre ambos, o capital, impreterivelmente, subordina o campesinato.
No que se refere à questão agrária como um problema a ser solucionado para a redução da pobreza, é necessário considerar que o camponês tem o campo não somente como um lugar de produção, mas também um lugar de vida, reprodução e criação; o campo é o lugar onde o desenvolvimento de suas atividades econômicas, políticas e familiares ocorrem de forma indissociável. Neste sentido, para que o desenvolvimento ocorra efetivamente, uma das principais condições é a proteção do campesinato através da consolidação da pequena e média propriedade e da minimização dos problemas agrários, destacadamente aqueles ligados à comoditização dos produtos agropecuários e concentração de terra.
Podemos concluir que a questão agrária é entendida atualmente a partir de duas concepções sobre o destino da produção e vida no campo e que refletem diferentes paradigmas, modelos agrícolas e modelos de desenvolvimento. Um grande número de conceituações é utilizado para designar o agronegócio e o campesinato. Para o agronegócio, são comuns termos como agricultura capitalista, modelo agrícola predominante e modelo agrícola neoliberal. Para a agricultura camponesa também é utilizado o termo agricultura familiar, sendo correlatos sistemas como agricultura alternativa e agroecologia. Desmarrais (2007), com base em Beus (1995), apresenta um quadro que consegue sintetizar as diferenças/oposições entre campesinato e agronegócio.


A partir do entendimento do agronegócio e do campesinato como opostos e, tomando como base os pressupostos apresentados no quadro acima, enfatizamos, na análise da questão agrária, dois territórios distintos: o território do campesinato e o território do latifúndio e agronegócio. O território do latifúndio e agronegócio compreende as grandes propriedades, grilos, grileiros, exploração do trabalho, grandes empresas capitalistas, crimes ambientais, mecanização intensa, superprodução, improdutividade, especulação fundiária, violência contra pessoa e concentração do poder econômico e político. De forma oposta, o território do campesinato, relativo aos camponeses com ou sem terra, compreende a luta pela terra, pequenas propriedades, pequenas posses, cooperativismo, produção familiar, menor impacto ambiental, ocupações de terras e assentamentos rurais. Esses dois territórios são ideologicamente opostos e materializados através da posse e propriedade da terra, da produção agropecuária e de suas ações políticas. Através do enfrentamento de suas idéias e ações (que expressam sua imaterialidade) esses dois territórios se confrontam na produção, reprodução e pela terra (que expressam sua materialidade) no contexto da questão agrária brasileira.
No caso da questão agrária brasileira, é indispensável considerar latifúndio e agronegócio como componenentes de um mesmo território, pois, apesar de serem distintos, atuam conjuntamente no campo brasileiro no agravamento dos problemas agrários: um exclui pela improdutividade; o outro, pela superprodução. Latifúndio e agronegócio agem de forma cooperada. É principalmente na fronteira agropecuária brasileira que a parceria entre latifúndio e agronegócio é mais evidente: o latifúndio precede o agronegócio, uma prática é substituída pela outra, ambas fazendo frente ao campesinato. O território do campesinato e o território do latifúndio e agronegócio são dinâmicos e, no enfrentamento, ambos são criados-destruídos-recriados no processo de territorialização-desterritorialização-reterritorialização. A territorialização de um significa a desterritorialização do outro, o qual pode se reterritorializar em um outro momento. Este processo está ligado à desintegração e recriação do campesinato, que ocorrem constantemente no embate entre o território camponês e o território do latifúndio e agronegócio. Esses pressupostos guiarão nossas análises da questão agrária Brasileira.
Para desenvolver as análises da questão agrária brasileira utilizaremos as definições sobre campesinato e agronegócio estabelecidas neste capítulo. Os pressupostos do paradigma da questão agrária serão condutores de nossas análises, de forma que nos empenharemos para enfatizar os conflitos e desigualdades do campo brasileiro. Como estabelecido na seção
"a questão agrária e o campesinato", em nossa opção teórica, camponês e agricultor familiar são equivalentes e não estabelecemos diferenças entre essas duas formas de designação. A partir dos referenciais teóricos estabelecidos neste capítulo, nosso objetivo é analisar a configuração dos problemas da questão agrária no território brasileiro através do mapeamento dos seus diversos temas.

NOTAS(1) A superioridade do grande estabelecimento (capitalista) em relação ao pequeno estabelecimento (camponês) que Kautsky defende está baseada na produção em grande escala, que apresenta maior produtividade por unidade de força e de capital empregados na produção Embora economicamente seja mais rentável, para Kautsky, os benefícios da grande propriedade só seriam socialmente adequados caso ela evoluísse para a forma socialista. Por isso, na atualidade da questão agrária no Brasil, a interpretação desta afirmação de Kautksy sobre a superioridade do grande estabelecimento deve considerar que é improvável a evolução para o modelo socialista de estabelecimento agropecuário, de forma que, considerando a justiça social, a melhor opção para o momento é a propriedade camponesa. É necessário compreender que a “superioridade” do grande estabelecimento não é uma característica “natural”; ela é fruto de sua natureza concentradora. Esta superioridade é atribuída ao grande estabelecimento pelo próprio sistema capitalista, que tem em sua lógica o incentivo e manutenção de formas de produção concentradoras. As pequenas unidades não gozam das mesmas facilidades dos grandes estabelecimentos (facilidade de obtenção de empréstimos, taxas mais baixas de juros, barateamento do preço de transporte e a não dependência de atravessadores na venda da produção), o que pode lhes atribuir menor desempenho econômico, porém não menor importância social. É necessário analisar não apenas o caráter econômico, mas a função social da propriedade camponesa. Desta forma, o estabelecimento camponês deve ter sua importância social reconhecida pelo Estado (o que discutiremos mais adiante), que deve lhe proporcionar, no mínimo, as mesmas facilidades das quais goza o grande estabelecimento. Além disso, na atualidade, é necessário considerarmos outros elementos relativos ao grande estabelecimento, como a intensa mecanização (e incentivo ao êxodo rural), degradação ambiental, concentração e monocultura. Esses elementos devem ser inseridos na discussão sobre a “superioridade” do grande estabelecimento, que não pode ser considerada somente a partir dos elementos econômicos; deve ser considerada a partir de sua sustentabilidade. Partindo de uma análise com base nesses princípios, dificilmente o grande estabelecimento será superior ao estabelecimento camponês.(2) Neste caso, a causa da recriação apontada por Kautsky (necessidade de mão-de-obra) não é tão significativa na atualidade, visto que a mobilidade entre a cidade e o campo aumentou e grande parte dos assalariados rurais reside nas cidades; também pelo fato de que o processo de mecanização atingiu dimensões incomparáveis com a realidade estudada pelo autor. Na atualidade, a integração do campesinato, como ocorre com a produção de fumo e na criação de aves e porcos no sul do Brasil, é uma das formas mais importantes de recriação do campesinato pelo capital.(3) Quanto ao processo de formação do mercado interno, Lênin afirma que “o processo de decomposição dos pequenos agricultores em patrões e operários agrícolas constitui a base sobre a qual se forma o mercado interno na produção capitalista.” (p.35). É nos grupos extremos, os proletários rurais e a burguesia camponesa, que os gastos em dinheiro na alimentação são absoluta e relativamente maiores. Os primeiros compram mais, embora consumam menos do que o camponês médio; compram produtos agrícolas de primeira necessidade, dos quais são carentes. A burguesia compra mais por que consome mais, ampliando o consumo de produtos não agrícolas. A confrontação entre esses dois grupos extremos revela com nitidez como se cria, num país capitalista, o mercado interno para artigos de consumo individual. (p.106-107).(4) Por exemplo, a luta dos camponeses no Brasil, que pressionam o Estado para a criação de assentamentos rurais.(5) Não propomos aqui a suplantação da discussão tradicional, pelo contrário, consideramos essencial para o desenvolvimento desta nova discussão.(6) Neste sentido, na França as AMAPs (Association pour le Maintien d`une Agriculture Paysanne – Associação para Manutenção de uma Agricultura Camponesa) se destacam como prática crescente entre agricultores e consumidores. Neste tipo de associação, um grupo de consumidores associados concorda em comprar antecipadamente a produção do agricultor que, como retorno, se engaja em colocar seus meios de produção e seu trabalho para produzir um determinado conjunto de produtos definidos por acordo. Os associados concordam em receber o fruto da produção independente do seu resultado positivo ou negativo (quantidade). O agricultor, por sua vez, se incumbe de fazer o máximo para produzir segundo a qualidade estipulada no acordo entre as partes, geralmente produtos orgânicos. Caso a produção seja superior à média, o agricultor não pode cobrar nada a mais; ao contrário, se a produção for menor do que a média, o agricultor não é obrigado a devolver o que recebeu. Este modelo de associação, entre agricultor e consumidor, nasceu na década de 1970, simultaneamente no Japão, Alemanha, Áustria e Suíça. Os agricultores e consumidores que se engajam nessas associações visam principalmente práticas de produção e consumo mais naturais e eqüitativas. Nos EUA e Canadá este sistema é desenvolvido sob o título de CSA - Community Supported Agriculture (Agricultura Apoiada pela Comunidade).(7) “Movimentos socioterritoriais são os movimentos sociais que têm o território como condição de existência, de trunfo, de possibilidades de recriação. Esses movimentos produzem espaços políticos e realizam ocupações de propriedades privadas, reivindicando o direito à terra ou à moradia. Em seu processo de recriação se espacializam e se territorializam, criando conflitualidades, dialogando e superando a condição de excluídos.” (FERNANDES, 2005a, p.44).(8) A respeito da importância das florestas brasileiras na questão agrária ver Simione da Silva (2005).(9) Em seu trabalho, voltado para a América Latina, Guzmán e Molina (2005) consideram falso o debate clássico sobre o campesinato, posição com a qual discordamos. Acreditamos que a proposição sobre o campesinato apresentada pelos autores seja, ao contrário do que afirmam, não uma substituição do debate clássico, mas sim mais uma contribuição para o debate atual, que engloba também o debate clássico.(10) Os autores afirmam que “agroecologia supõe o manejo dos recursos naturais surgidos dessas identidades dos etnoagroecossistemas locais; a existência dessa matriz sociocultural pode contribuir com um elemento essencial na configuração de um potencial endógeno humano que mobilize a ação social coletiva em que se baseia a agroecologia.” (p.14).

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