quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Uma Interpretação da questão agrária brasileira (1500-1960)


Por João Pedro Stédile

Período: de 1500 a 1850
Há diversas teses e registros históricos de que missões de outros povos, seja dos fenícios, dos árabes, dos africanos e até mesmo de europeus, haviam chegado ao nosso continente antes de 1500, além do registro oficial de descoberta e apoderamento realizado por Cristóvão Colombo, em 1492. Mas este é um debate para os historiadores; a época e os motivos do intercâmbio entre os povos não é, para a questão agrária, o aspecto principal.
Os portugueses que aqui chegaram e invadiram nosso território, em 1500, o fizeram financiados pelo nascente capitalismo comercial europeu, e se apoderaram do território por sua supremacia econômica e militar, impondo as leis e vontades políticas da Monarquia portuguesa. No processo da invasão, como a História registra, adotaram duas táticas de dominação: cooptação e repressão. E, assim, conseguiram dominar todo o território e submeter os povos que aqui viviam ao seu modo de produção, às suas leis e à sua cultura.
Com a invasão dos europeus, a organização da produção e a apropriação dos bens da natureza aqui existentes estiveram sob a égide das leis do capitalismo mercantil que caracterizava o período histórico já dominante na Europa. Tudo era transformado em mercadoria. Todas as atividades produtivas e extrativas visavam lucro. E tudo era enviado à metrópole européia, como forma de realização e de acumulação capital.
No início, iludiram-se na busca do ouro; depois, porém, segundo nos explicam os historiadores, preocuparam-se em transformar outros bens naturais, como o ferro, a prata e outros minérios, em mercadorias. Mas logo perceberam que a grande vantagem com­parativa de nosso território era a fertilidade das terras e o seu po­tencial para cultivos tropicais de produtos que até então os comer­ciantes buscavam na distante Ásia ou na África. Os colonizadores, então, organizaram o nosso território para produzir produtos agrí­colas tropicais, de que sua sociedade européia precisava. Trouxe­ram e nos impuseram a exploração comercial da cana-de-açúcar, do algodão, do gado bovino, do café, da pimenta-do-reino. E apro­veitaram algumas plantas nativas, como o tabaco e o cacau, e as transformaram, com produção em escala, em mercadorias destina­das ao mercado europeu.
Tal modelo de produção, sob a égide das leis do capitalismo, produzindo apenas produtos agrícolas e minerais para o abasteci­mento do mercado europeu, foi denominado pelos nossos historia­dores de modelo agroexportador. A amplitude desse modelo era tal que, segundo as primeiras estatísticas macroeconômicas orga­nizadas pelo Banco do Brasil em meados do século XIX, naquela época, a colônia Brasil exportava mais de 80% de tudo o que era produzido em nosso território.
E, do ponto de vista da organização da produção, qual foi o modelo adotado pelos colonizadores em nosso território? Durante muitos anos, houve grande polêmica sobre esse aspecto. Mas, hoje, já há consenso de que o modelo adotado para organizar as unidades de produção agrícola foi o da plantation, uma palavra de origem in­glesa, utilizada por sociólogos e historiadores para resumir o funcio­namento do modelo empregado nas colônias. Jacob Gorender ten­tou aportuguesar a expressão, traduzindo-a para "plantagem". Mas a tradução não se firmou e, na prática, a maioria dos estudiosos segue utilizando a expressão original em inglês.
O que caracteriza a plantation? É a forma de organizar a produção agrícola em grandes fazendas de área contínua, praticando a monocultura, ou seja, es­pecializando-se num único produto, destinando-o à exportação, seja ele a cana-de-açúcar, o cacau, o algodão, gado etc., e utilizando mão­-de-obra escrava. Produzindo apenas para o mercado externo, sua localização deveria estar próxima dos portos, para diminuir custos com transporte. Essas unidades de produção adotavam modernas técnicas, ou seja, apesar de utilizarem a força de trabalho da mão-de-­obra escrava, do ponto de vista dos meios de produção, das técnicas de produção, os europeus adotaram o que havia de mais avançado. Havia também, nessas unidades, a produção de bens para a subsis­tência dos trabalhadores escravizados, visando reduzir o seu custo de reprodução, assim como oficinas para a fabricação e reparo de ins­trumentos de trabalho.
Em relação à propriedade da terra, a forma adotada pelos euro­peus foi a do monopólio da propriedade de todo o território pela Monarquia, pela Coroa. Assim, o fato de a propriedade de todo o território ter sido exclusiva da Coroa, não havendo propriedade privada da terra, determina que a propriedade da terra não era ca­pitalista. Porém, para implantar o modelo agroexportador e esti­mular os capitalistas a investirem seu capital na produção das mer­cadorias necessárias para a exportação, a Coroa optou pela Capitania Hereditária - "concessão de uso" com direito à herança. Então, utilizando diver­sos critérios políticos e sociológicos, a Coroa entrega, a capitalis­tas-colonizadores que dispunham de capital, enormes extensões de terra - que eram medidas em léguas, em geral delimitadas por grandes acidentes geográficos. Assim, os capitalistas-colonizadores eram estimulados a investir seu capital no Brasil para a produção de alguma mercadoria para exportação, com a Coroa garantindo a posse de imensas extensões de terra para tal finalidade. O critério fundamental para a seleção dos eleitos pela "concessão de uso" das terras era - muito além do que simples favores a fidalgos próximos - a disponibilidade de capital e o compromisso de produzir na colônia mercadorias a serem exportadas para ao mercado europeu.
A "concessão de uso" era de direito hereditário, ou seja, os herdeiros do fazendeiro-capitalista poderiam continuar com a posse das terras e com a sua exploração. Mas não lhes dava direito de venderem as terras, ou mesmo de comprarem terras vizinhas. Na essência, não havia propriedade privada das terras, ou seja, as terras ainda não eram mercadorias.

Período: de 1850 a 1930.
Em 1850, a Coroa, sofrendo pressões inglesas para substituir a mão-de-obra escrava pelo trabalho assalariado, com a conseqüente e inevitável abolição da escravidão, e para impedir que, com a futura abolição, os então trabalhadores ex-escravos se apossassem das terras, promulga, em 1850, a primeira lei de terras do país. Essa lei foi um marco jurídico para a adequação do sistema econômico e de preparação para a crise do trabalho escravo, que já se ampliava.
O que caracteriza a Lei n° 601, de 1850? Sua característica principal é, pela primeira vez, implantar no Brasil a propriedade privada das terras. Ou seja, a lei proporciona fundamento jurídico à transformação da terra - que é um bem da natureza e, por­tanto, não tem valor, do ponto de vista da economia política ­em mercadoria, em objeto de negócio, passando, portanto, a partir de então, a ter preço. A lei normatizou, então, a propriedade privada da terra.
Uma segunda característica estabelecia que “qualquer cidadão brasileiro” poderia se transformar em proprietário privado de terras. Poderia transformar sua concessão de uso em propriedade privada, com direito à venda e compra. Mas, para isso, deveria com­prar, portanto, pagar determinado valor à Coroa.
Ora, essa característica visava, sobretudo, impedir que os futu­ros ex-trabalhadores escravizados, ao serem libertos, pudessem se transformar em camponeses, em pequenos proprietários de terras, pois, não possuindo nenhum bem, não teriam, portanto, recursos para "comprar", pagar pelas terras à Coroa. E assim continuariam à mercê dos fazendeiros, como assalariados.
A Lei n° 601, de 1850, legitimou o latifúndio no Brasil. Ela regulamentou e consolidou o modelo da grande pro­priedade rural, que é a base legal, até os dias atuais, para a estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil.
Por outro lado, a história das lutas sociais e das revoltas popu­lares registra muitas mobilizações nesse período. E um dos fatores de desestabilização do modelo agroexportador baseado na utiliza­ção da mão-de-obra do trabalhador escravizado é a revolta deste em relação às suas condições de vida e de trabalho.
Os trabalhadores escravizados continuaram fugindo, continua­ram se rebelando. Multiplicaram-se os quilombos. Multiplicaram-­se, nas cidades, movimentos de apoio ao abolicionismo. O tema era a grande questão entre os partidos e as elites. Chegou a surgir o movimento dos Caifases, um movimento clandestino organizado entre os filhos brancos da classe média urbana, que ajudavam os trabalhadores escravizados a fugiram das senzalas.
Finalmente, em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, consolidou-se legalmente aquilo que já vinha acontecendo na prática. A demora para a abolição legal do trabalho escravo (o Brasil o último país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão) deveu-se aos debates que ocorreram entre os partidos da elite, no Congresso monárquico, que se reunia no Rio de Janeiro, para determinar se o Estado, se o governo deveria ou não indenizar os proprietários de escravos por sua libertação!
Muitos argumentos registrados nos debates sobre a libertação dos escravos e o direito absoluto que os fazendeiros tinham sobre eles nos fazem lembrar o atual debate que ocorre na imprensa bra­sileira, quando os fazendeiros argumentam sobre o seu direito ab­soluto de propriedade das terras.
Com a libertação dos trabalhadores escravizados - oficiali­zada pela Lei Áurea, de 1888 - e, ao mesmo tempo, com o impedimento de os mesmos se transformarem em camponeses, quase dois milhões de adultos ex-escravos saem das fazendas, das senzalas, abandonando o trabalho agrícola, e se dirigem para as cidades, em busca de alguma alternativa de sobrevivência, agora vendendo "livremente" sua força de trabalho. Como ex­escravos, pobres, literalmente despossuídos de qualquer bem, resta-lhes a única alternativa de buscar sua sobrevivência nas cidades portuárias, onde pelo menos havia trabalho que exigia apenas força física: carregar e descarregar navios. E, pela mes­ma lei de terras, eles foram impedidos de se apossarem de terre­nos e, assim, de construírem suas moradias: os melhores terre­nos nas cidades já eram propriedade privada dos capitalistas, dos comerciantes etc. Esses trabalhadores negros foram, então, à busca do resto, dos piores terrenos, nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, que não interessavam ao capitalis­ta. Assim, tiveram início as favelas. A lei de terras é também a "mãe" das favelas nas cidades brasileiras.
Aprofunda-se, então, a crise do modelo agroexportador. O modelo plantation chega ao fim com a abolição do trabalho escra­vo. A última “pá de cal” sobre o modelo agroexportador foi a eclosão da I Guerra Mundial, de 1914-1918, que interrompcu o comércio entre as Américas e a Europa.
A saída encontrada pelas elites para substituir a mão-de-ohra escrava foi realizar uma intensa propaganda na Europa, em especial na Itália, na Alemanha e na Espanha, para atrair os camponeses pobres excluídos pelo avanço do capitalismo industrial no final do século 19 na Europa. E, assim, com a promessa do "eldorado", com terra fértil e barata, a Coroa atraiu para o Brasil, no período de 1875­-1914, mais de 1,6 milhão de camponeses pobres da Europa. (Há uma coincidência histórica: o número de migrantes euro­peus praticamente coincide com o número da última estatística de trabalhadores escravizados).
Parte dos migrantes foi para o Sul do país, pela maior dispo­nibilidade de terras e pelo clima, "recebendo" lotes de 25 a 50 hec­tares; parte foi para São Paulo e para o Rio de Janeiro, não rece­bendo terras, mas sendo obrigados a trabalhar nas fazendas de café, sob um novo regime denominado colonato. Todos os camponeses colonos que "receberam" terras no Sul tiveram de pagar por elas e isso os obrigou a se integrarem imedia­tamente na produção para o mercado.
O regime de produção sob a forma de colonato, assim rotula­do por sociólogos, foi o estabelecimento de relações sociais especí­ficas na produção de café, entre os fazendeiros e os colonos, não se tendo notícia de sua adoção em nenhum outro país. Por esse siste­ma, os colonos recebiam a lavoura de café pronta, formada anterior­mente pelo trabalho escravo, recebiam uma casa para moradia e o direito de usar uma área de aproximadamente dois hectares por família, para o cultivo de produtos de subsistência, e de criar pe­quenos animais logrando, assim, melhores condições de sobrevi­vência. Cada família cuidava de determinado número de pés de café e recebia por essa mão-de-obra, no final da colheita, o paga­mento em produto, ou seja, em café, que poderia ser vendido jun­to, ou separado, com o do patrão. A esse regime de colonato sujei­taram-se milhares de famílias migrantes, em especial da Itália e da Espanha.
A crise seguirá até 1930 e a migração de camponeses europeus é interrompida na I Guerra Mundial (1914), quando também é interrompido o uso de navios para transporte dos migrantes. Nesse período de crise, nasceu, então, no campo brasileiro, o campesinato.
Até então, havia apenas trabalhadores escravizados, originários da África ou seqüestrados das comunidades nativas, indígenas. Segundo Darcy Ribeiro, do ponto de vista da população, a adoção do modelo agroexportador sob o império da plantation foi um verda­deiro genocídio para o povo brasileiro. A população nativa que já habitava o território, em 1500, era de aproximadamente 5 milhões de pessoas. Acrescente-se que foram trazidos milhões de trabalhado­res escravizados da África e, depois de 350 anos de exploração, no fim ,do século 19, havia pouco mais de 5 milhões de habitantes. Ou seja, foi um grande massacre de nossa população, indígena e negra, pelo capitalista colonizador europeu, que, sem sua presença, teria se multiplicado aos milhões no mesmo período. Além do genocídio que representou a morte de milhões de pessoas escravizadas na África, durante o transporte e na não adaptação ao território.
O surgimento do campesinato se deu em duas vertentes. A primeira, já mencionada, trouxe quase dois milhões de camponeses pobres da Europa, para habitar e trabalhar na agricultura nas regiões Sudeste e Sul, do Estado do Espírito Santo para o sul.
A segunda vertente de formação do campesinato brasileiro teve origem nas populações mestiças que foram se formando ao longo dos 400 anos de colonização, com a miscigenação entre brancos c negros, negros e índios, índios e brancos, e seus descendentes. Essa população, em geral, não se submetia ao trabalho escravo e, ao mesmo tempo, não era capitalista, eram trabalhadores pobres, nas­cidos aqui. Impedida pela Lei de Terras de 1850 de se transformar em pequenos proprietários, essa população passou a migrar para o interior do país, pois, nas regiões litorâneas, as melhores terras já estavam ocupadas pelas fazendas que se dedicavam à exportação. A longa caminhada para o interior, para o sertão, provocou a ocupa­ção de nosso território por milhares de trabalhadores, que foram povoando o território e se dedicando a atividades de produção agrí­cola de subsistência. Não tinham a propriedade privada da terra, mas a ocupavam, de forma individual ou coletiva, provocando, assim, o surgimento do camponês brasileiro e de suas comunida­des. Produto do sertão, local ermo, despovoado, o camponês rece­beu o apelido de "sertanejo" e ocupou todo o interior do território do Nordeste brasileiro e nos Estados de Minas Gerais e de Goiás.
Período: de 1930 a 1964
O ano de 1930 marca uma nova fase da história econômica brasileira, com influências na questão agrária. Com a crise do modelo agroexportador, há uma crise política e institucional no país, sendo que as elites abastadas, as classes dominantes amplamente hegemônicas - já que a maioria da população vivia em condições de escravidão e uma outra parte estava isolada nos confins dos ser­tões - eram as únicas que tinham presença político-institucional. O resultado da crise provocou a queda da monarquia e o estabelecimento da República, num golpe militar realizado pelo próprio Exército da Monarquia, sem nenhuma participação popular. Pro­duziu também um movimento de protesto dos tenentes, o único segmento social das classes menos favorecidas com acesso ao estu­do nas academias militares. Depois, tivemos a coluna Prestes, como resultado do tenentismo. E, enfim, em 1930, setores das elites da nascente burguesia industrial dão um golpe, fazem uma "revolu­ção" política por cima, tomam o poder da oligarquia rural expor­tadora e impõem um novo modelo econômico para o país. Surgiu, então, o modelo de industrialização dependente, na conceituação dada por Florestan Fernandes, conceito esse derivado do fato de a industrialização ser realizada sem rompimento com a dependência econômica aos países centrais, desenvolvidos, e sem rompimento com a oligarquia rural, origem das novas elites dominantes. Alguns estudiosos chamaram esse período de projeto nacional desenvol­vimentista; outros, de Era Vargas, pois o projeto político foi coor­denado pela liderança política de Getúlio Vargas, que governou o país de 1930 a 1945.
Do ponto de vista da questão agrária, esse período se caracteriza pela subordinação econômica e política da agricultura à industria. As oligarquias rurais continuam donas das terras, continuam latifundiárias e produzindo para a exportação, mas não mais de­têm o poder político. As elites políticas - a burguesia industrial, agora no poder - fazem uma aliança com a oligarquia rural, to­mam seu poder, mas a mantêm como classe social, por duas ra­zões fundamentais: primeiro, porque a burguesia industrial bra­sileira tem origem na oligarquia rural, da acumulação das exportações do café e do açúcar, ao contrário dos processos his­tóricos ocorridos na formação do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos. A segunda razão: o modelo industrial, como era dependente, precisava importar máquinas, e até operários, da Europa e dos Estados Unidos. E a importação dessas máquinas só era possível pela continuidade das exportações agrícolas, que E, por outro lado, em vastas regiões, a grande propriedade capita­lista avançava e concentrava mais terra, mais recursos. E, no geral, havia uma tendência histórica, natural da lógica de reprodução capitalista, de que a propriedade da terra, que já nasceu em bases latifundiárias, continuava na média se concentrando ainda mais.
Assim, chegamos à década de 1960, num cenário que apresen­ta uma agricultura modernizada, capitalista, e um setor camponês completamente subordinado aos interesses do capital industrial. Hoje, com um maior distanciamento histórico daquela época e com acesso a muitos estudos e pesquisas, podemos compreender me­lhor esse processo de evolução histórica da questão agrária até 1964. Por outro lado, é nos anos de 1960-1964 que eclode também a primeira crise cíclica desse modelo de industrialização dependen­te. E, a exemplo de qualquer crise, sempre surgem períodos de mobilizações sociais, disputas entre as classes, disputas entre as elites, assim como a busca de saídas, tanto para a cumulação de capi­tal, quanto para a classe trabalhadora.
E é também nesse cenário de crise cíclica do modelo de indus­trialização dependente que se situam a polêmica e os debates reali­zados sobre a interpretação da questão agrária.

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