sábado, 29 de dezembro de 2012

São Paulo: as origens da violência



Brasil - Outras Palavras - [Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá] Nossa investigação revela: brutalidade inaugurada no Carandiru alastra-se há vinte anos pela PM. Para ter paz, Estado terá de enfrentá-la.

Outubro de 2012 registrou o recorde de homicídios e latrocínios na Grande São Paulo no ano: 345. Na capital, o aumento foi de quase 110% em relação ao ano anterior. O número só pode ser comparado aos 493 mortos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, cuja macabra contagem diária (média de 55 por dia) somente tem paralelo nos 111 detentos executados pela PM no Massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992. Mesmo assim, a atual crise na segurança teve destaque nos jornais e TVs apenas após as eleições. Até então, as quase cem vítimas entre policiais, principalmente PMs de baixa patente e fora do horário de serviço, e as centenas de casos de pessoas baleadas nas proximidades desses assassinatos nas horas seguintes, estavam sendo tratadas, todas, como "casos isolados". Sem o fator eleitoral, a culpa pela violência recai agora sobre o suspeito usual: o Primeiro Comando da Capital ou, como é chamado nos telejornais, "a facção criminosa que age dentro e fora dos presídios". Mas será assim tão simples?
Várias linhas ligam os sangrentos eventos de 1992, 2006 e 2012. No primeiro, não há dúvidas sobre quem atirou. Ainda assim, o único condenado pela chacina de presos desarmados foi o Coronel Ubiratan Guimarães, que comandou a invasão do presídio. Sua pena de 632 anos de reclusão, porém, foi derrubada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em fevereiro de 2006, quando ele já tinha sido eleito deputado estadual com o sugestivo número 14.111. Em setembro do mesmo ano, o político/coronel foi morto com um tiro no peito em seu apartamento. A única indiciada foi sua então namorada, Carla Cepollina, julgada e absolvida na primeira semana de novembro desse ano. Foi na esteira do Massacre do Carandiru que nasceu o PCC, inicialmente para impedir futuras mortandades em massa dentro das cadeias. Com o crescimento do "partido", realmente despencaram os índices de assassinatos e estupros nas penitenciárias, além de praticamente não haver uso de crack.
O caso de 2006 é bem mais emblemático. Logo depois de o governo estadual transferir cerca de 700 prisioneiros tidos como líderes do PCC para os presídios de Presidente Bernardes e de Presidente Venceslau, considerados de maior segurança, policiais civis e militares passaram a ser mortos nas ruas das principais cidades do estado. Ao todo, 59 foram assassinados, incluídos guardas civis e bombeiros, principalmente entre os dias 12 e 13 de maio. Ato contínuo, a "tropa de elite" da PM paulista, a Rota, saiu às ruas "trocando tiros" com "criminosos" e elevando como nunca as "resistências seguidas de morte". Ao mesmo tempo, assassinos mascarados passaram a atirar em pessoas nas periferias.
Crimes de maio
O saldo de mortos oficialmente registrados entre maio e junho de 2006 passa de 600, fora os desaparecidos. Dos "confrontos" entre polícia e "bandidos", 60% a 70% tinham claros indícios de execução (tiros à queima roupa, de cima para baixo, na região do tórax e/ou da cabeça como confirmou o perito Ricardo Molina a respeito de 124 mortos), segundo uma comissão formada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Defensoria Pública, Ouvidoria da Polícia, Ministério Público (Estadual e Federal), Ordem dos Advogados do Brasil, Conselho Regional de Medicina e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, entre outras entidades. As mortes jamais foram investigadas e até hoje ninguém está preso pelos assassinatos de civis durante esse período. A "I Guerra do PCC" teria acabado devido a um acordo, nunca admitido, firmado entre o grupo e o governo. É inegável, no entanto, o fortalecimento da facção criminosa, que extrapolou os muros das cadeias. Sem a concorrência de outro grande grupo, diminuíram também os confrontos entre traficantes rivais e as mortes por dívida de drogas, ajudando a derrubar significativamente as taxas de homicídios nas ruas (72% entre 1999 e 2011)*.
A nova onda
A trégua, contudo, parece ter chegado ao fim em 29 de maio de 2012, quando policiais da Rota cercaram supostos integrantes do PCC em um lava-rápido na Zona Leste matando seis pessoas e prendendo outras três. Ao menos um dos mortos teria sido levado vivo para a beira da rodovia Ayrton Senna e torturado antes de ser executado, conforme relatou uma testemunha. Três oficiais chegaram a ser presos mas foram absolvidos em novembro, porque a testemunha teria "entrado em contradição". Nos dias seguintes ao confronto, PMs começaram a ser assassinados em dezenas de emboscadas. A cada morte de policial, em média mais dez pessoas são mortas, a maior parte na mesma região do assassinato, poucas horas depois do evento e por meio de homens encapuzados, em motos sem placas ou carros de vidros escuros, que atiram aleatoriamente em grupos de pessoas nas periferias (93% das mortes são registradas fora do centro expandido da capital).
Apesar do padrão óbvio, somente com a queda do secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antonio Ferreira Pinto, em 21 de novembro, a imprensa realizou um levantamento apontando que pelo menos 16 chacinas (com 28 mortes) entre junho e novembro ocorreram a menos de cinco quilômetros de onde foram executados sete policiais. E mais, o ex-chefe da Polícia Civil Paulista, Marcos Carneiro de Lima, admitiu publicamente que várias das vítimas civis fora das chacinas tiveram suas fichas criminais levantadas em delegacias distantes de suas regiões antes de serem mortas, o que leva a suspeitas de execuções premeditadas. A apuração rigorosa desses crimes, no entanto, não deve ser motivo de grandes esperanças.
Policiais bandidos
De fato, a maior probabilidade é que aconteça exatamente o contrário. Um exemplo é o aumento de 100% sobre a indenização a familiares de policiais mortos e sua extensão para oficiais vitimados fora do horário de serviço, anunciada recentemente pelo governador Geraldo Alckmin. Com isso é bem possível que as famílias dos dois policiais executados em 1º de novembro em Heliópolis recebam R$ 200 mil cada. A polícia não parece muito interessada em averiguar a fundo o que os dois, considerados "linha dura" pelos colegas, faziam juntos numa moto, à meia noite no meio da favela. Uma boa resposta pode estar na excelente matéria da repórter Tatiana Merlino, "Em cada batalhão da PM tem um grupo de extermínio", publicada em setembro, em Caros Amigos. (Leia aqui http://educacadoresemluta.blogspot.com.br/2012/10/violencia-policial.html)

Pior, para alguns analistas, muitos policiais estão sendo executados por colegas de farda, aproveitando a onda de violência como cortina de fumaça. É o que pode ter acontecido com o sargento da PM Marcelo Fukuhara, assassinado na Baixada Santista no início de outubro. Conhecido como "ninja" ou "japonês", ele seria o chefe de um dos mais temidos grupos de extermínio da região. Logo após sua morte, um outro oficial não identificado pelo comando da PM foi preso suspeito de ser o executor, o que não impediu que oito pessoas fossem mortas em duas chacinas na mesma área, nas duas horas seguintes à morte do sargento. Segundo testemunhas, os executores foram homens encapuzados saídos de um carro preto. Fontes de dentro da polícia também afirmam que a única oficial mulher assassinada esse ano, a soldado Marta Umbelina da Silva, teria sido vítima de seu ex-marido, um ex-policial. A informação, contudo, não pode ser confirmada, já que todas as investigações seguem sob sigilo.
Palavra de mãe
Débora Maria da Silva, coordenadora e fundadora o Mães de Maio, grupo de parentes e amigos de civis mortos em 2006 conta sua versão sobre os fatos
"O que mais nos revolta é a impunidade dos policiais matadores. A explosão das mortes na periferia de São Paulo está ocorrendo há pelo menos três anos na Baixada Santista. E quem mais mata são os policiais e ex-policiais. Pra mim, essa coisa de PCC é balela pra justificar a morte de civis. Eles entram em favela, mostram listas de policiais marcados pra morrer, mas não mostram as listas de civis. O próprio antigo secretário tinha falado que todos os que morreram tinham ficha suja, mas como é que ele sabe? A verdade é que desde 2006 tem uma máfia de extermínio, com os policiais ganhando mais com bicos do que registrado na carteira. Com isso, ficam disputando os bicos e estão totalmente fora do controle do comando. Diferente do que disse o governador, quem não reage é que tá morto! Por isso a gente cobra investigação, intervenção federal e federalização dos Crimes de Maio. Porque esse estado não tem mais remendo. Tem que trocar tudo, não só a cúpula da segurança!"
Com a nova onda de violência, as Mães de Maio estão se organizando com dezenas de outros movimentos e grupos para reagir, formando o Comitê Ampliado Contra o Genocídio (veja a carta-manifesto exigindo, entre outras coisas, o fim dos "autos de resistência" em http://bit.ly/SkE9QZ). Já solicitaram uma audiência pública com o governador e com o Ministro da Justiça. Também estão promovendo atividades de divulgação de suas lutas, como marchas periódicas pela paz. A repercussão midiática, contudo, ainda é frágil. "A primeira vez que nosso nome saiu na TV esse ano foi no programa da Sonia Abraão, com o Coronel Telhada, o Comandante Camilo e o Capitão Conte Lopes nos chamando de 'amigas de bandidos', como fizeram com o jornalista André Caramante, que teve de sair do Brasil com medo", diz.

* Para uma visão mais profunda e séria sobre o "crime organizado" em SP, vale a pena ler o documento 16 Perguntas sobre o PCC, aqui.

Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá, editores do MediaQuatro.
Fonte: http://www.diarioliberdade.org/

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Medíocres e perigosos



Por  Matheus Pichonelli
O reacionário é, antes de tudo, um fraco. Um fraco que conserva ideias como quem coleciona tampinhas de refrigerante ou maços de cigarro – tudo o que consegue juntar mas só têm utilidade para ele. Nasce e cresce em extremos: ou da falta de atenção ou do excesso de cuidados. E vive com a certeza de que o mundo fora da bolha onde lacrou seu refúgio é um mundo de perigos, pronto para tirar dele o que acumulou em suposta dignidade.
Para ele, tudo o que é diferente tem potencial de destruição
Como tem medo de tudo, vive amargurado, lamentando que jamais estenderam um tapete à sua passagem. Conserva uma vida medíocre, ele e suas concepções e nojos do mundo que o cerca. Como tem medo, não anda na rua com receio de alguém levar muito do pouco que tem (nem sempre o reacionário é um quatrocentão). Por isso, só frequenta lugares em que se sente seguro, onde ninguém vai ameaçar, desobedecer ou contradizer suas verdades. Nem dizer que precisa relaxar, levar as coisas menos a sério ou ver graça na leveza das coisas. O reacionário leva a sério a ideia de que é um vencedor.
A maioria passou a vida toda tendo tudo aos alcance – da empregada que esquentava o leite no copo favorito aos pais que viam uma obra de arte em cada rabisco em folha de sulfite que ele fazia – e cultivou uma dificuldade doentia em se ver num mundo de aptidões diversas. Outros cresceram em meios menos abastados – e bastou angariar postos na escala social para cuspir nos hábitos de colegas de velhos andares. Quem não chegou aonde chegou – sozinho, frise-se – não merece respeito.
Rico, ex-pobre ou falidos, não importa: o reacionário clássico enxerga em tudo o que é diferente um potencial de destruição. Por isso se tranca e pede para não ser perturbado no próprio mundo. Porque tudo perturba: o presidente da República quer seu voto e seus impostos; os parlamentares querem fazê-lo de otário; os juízes estão doidos para tirar seus direitos acumulados; a universidade é financiada (por ele, lógico) para propagar ideias absurdas sobre ideais que despreza; o vizinho está sempre de olho na sua esposa, em seu carro, em sua piscina. Mesmo os cadeados, portões de aço, sistemas de monitoramento, paredes e vidros anti-bala não angariam de todo a sua confiança. O mundo está cheio de presidiários com indulto debaixo do braço para visitar familiares e ameaçar os seus (porque os seus nunca vão presos, mesmo quando botam fogo em índios, mendigos, prostitutas e ciclistas; índios, mendigos, prostitutas e ciclistas estão aí para isso).
Como não conhece o mundo afora, a não ser pelas viagens programadas em pacotes que garantem o translado até o hotel, e despreza as ideias que não são suas (aquelas que recebeu de pronto dos pais e o ensinaram a trabalhar, vencer e selecionar o que é útil e o que é supérfluo), tudo o que é novo soa ameaçador. O mundo muda, mas ele não: ele não sabe que é infeliz porque para ele só o que não é ele, e os seus, são lamentáveis.
Muitas vezes o reacionário se torna pai e aprende, na marra, o conceito de família. Às vezes vai à igreja e pede paz, amor, saúde aos seus. Aos seus. Vê nos filhos a extensão das próprias virtudes, e por isso os protege: não permite que brinquem com os meninos da rua nem que tenham contato com ideias que os retirem da sua órbita. O índice de infarto entre os reacionários é maior quando o filho traz uma camisa do Che Guevara para casa ou a filha começa a ouvir axé e namorar o vocalista da banda (se ele for negro o infarto é fulminante).
Mas a vida é repleta de frestas, e o tempo todo estamos testando as mais firmes das convicções. Mas ele não quer testá-las: quer mantê-las. Por isso as mudanças lhe causam urticárias.
Nos anos 70, vivia com medo dos hippies que ousavam dizer que o amor não precisava de amarras. Eram vagabundos e irresponsáveis, pensava ele, em sua sobriedade.
Depois vieram os punks, os excluídos de aglomerações urbanas desajeitadas, os militantes a pedir o alargamento das liberdades civis e sociais. Para o reacionário, nada daquilo fazia sentido, porque ninguém estudou como ele, ninguém acumulou bens e verdades como ele e, portanto, seria muito injusto que ele e o garçom (que ele adora chamar de incompetente) tivessem o mesmo peso numa urna, o mesmo direito num guichê de aeroporto, o mesmo lugar na fila do fast food.
O reacionário vive com medo. Mas não é inofensivo. Foto: Galeria de GorillaSushi/Flickr
Para não dividir espaços cativos, frutos de séculos de exclusão que ele não reconhece, eleva o tom sobre tudo o que está errado. Sabendo de seus medos e planos de papel, revistas, rádios, televisão, padres, pastores e professores fazem a festa: basta colocar uma chamada alarmista (“Por que você trabalha tanto e o País cresce tão pouco?”) ou música de suspense nas cenas de violência (“descontrolada!”) na tevê para que ele se trema todo e se prepare para o Armagedoon. Como bicho assustado, volta para a caixinha e fica mirabolando planos para garantir mais segurança aos seus. Tudo o que vê, lê e ouve o convence de que tudo é um perigo, tudo é decadente, tudo é importante, tudo é indigno. Por isso não se deve medir esforços para defender suas conquistas morais e materiais.
E ele só se sente seguro quando imagina que pode eliminar o outro.
Primeiro, pelo discurso. No começo, diz que não gosta desse povinho que veio ao seu estado rico tirar espaço dos seus. Vive lembrando que trabalha mais e paga mais impostos que a massa que agora agora quer construir casas em seu bairro, frequentar os clubes e shoppings antes só repletos de suas réplicas. Para ele, qualquer barberagem no trânsito é coisa da maldita inclusão, aqueles bárbaros que hoje tiram carta de habilitação e ainda penduram diplomas universitários nas paredes. No tempo dele, sim, é que era bom: a escola pública funcionava (para ele), o policial não se corrompia (sobre ele), o político não loteava a administração (não com pessoas que não eram ele).
Há que se entender a dor do sujeito. Ele recebeu um mundo pronto, mas que não estava acabado. E as coisas mudaram, apesar de seu esforço e sua indignação.
Ele não sabe, mas basta ter dois neurônios para rebater com um sopro qualquer ideia que ele tenha sobre os problemas e soluções para o mundo – que está, mas ele não vê, muito além de um simples umbigo. Mas o reacionário não ouve: os ignorantes são os outros: os gays que colocam em risco a continuidade da espécie, as vagabundas que já não respeitam a ordem dos pais e maridos, os estudantes que pedem a extensão de direitos (e não sabem como é duro pegar na enxada), os maconheiros que não estão necessariamente a fim de contribuir para o progresso da nação, os sem-terra que não querem trabalhar, o governante que agora vem com esse papo de distribuir esmola e combater preconceitos inexistentes (“nada contra, mas eles que se livrem da própria herança”), os países vizinhos que mandam rebas para emporcalhar suas ruas.
Muitas vezes o reacionário se torna pai e aprende o conceito de família. Vê nos filhos a extensão das próprias virtudes, e por isso os protege: não permite que brinquem com os meninos da rua nem que tenham contato com ideias que os retirem da sua órbita
O mundo ideal, para o reacionário, é um mundo estático: no fundo, ele não se importa em pagar impostos, desde que não o incomodem.
Como muitos não o levam a sério, os reacionários se agrupam. Lotam restaurantes, condomínios e associações de bairro com seus pares, e passam a praguejar contra tudo.
Quando as queixas não são mais suficientes, eles juntam as suas solidões e ódio à coletividade (ironia) e passam a se interessar por política. Juntos, eles identificam e escolhem os porta-vozes de suas paúras em debates nacionais. Seus representantes, sabendo como agradar à plateia, são eleitos como guardiões da moralidade. Sobem a tribunas para condenar a devassidão, o aborto, a bebida alcoolica, a vida ao ar livre, as roupas nas escolas. Às vezes são hilários, às vezes incomodam.
Mas, quando o reacionário se vê como uma voz inexpressiva entre os grupos que deveriam representá-lo, bota para fora sua paranóia e pragueja contra o sistema democrático (às vezes com o argumento de que o sistema é antidemocrático). E se arma. Como o caldo cultural legitima seu discurso e sua paranoia, ele passa a defender crimes para evitar outros crimes – nos Estados Unidos, alvejam imigrantes na fronteira, na Europa, arrebentam árabes e latinos, na Candelária, encomendam chacinas e, em QGs anônimos, planejam ataques contra universitários de Brasília que propagam imoralidades (leia mais AQUI).
O reacionário, no fim, não é patrimônio nacional: é um cidadão do mundo. Seu nome é legião porque são muitos. Pode até ser fraco e viver com medo de tudo. Mas nunca foi inofensivo.
Leia também:




Fonte: http://www.cartacapital.com.br/

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Outros Outubros virão


Por Valério Arcary, professor do IFSP
Hoje celebramos noventa e cinco anos da revolução russa. A efeméride oferece a ocasião para o ressurgimento da interpretação liberal sobre o seu significado: seus arautos nos recordarão, em um exercício manipulado de história contra-factual, que o século XX teria sido o palco de uma luta titânica da democracia contra os totalitarismos comunista e fascista. Esquecerão, convenientemente, que sem a revolução de outubro e, portanto, a existência da URSS, seria pelo menos duvidoso a introdução de regulações no capitalismo como a experiência do New Deal de Roosevelt nos EUA na sequência da crise de 1929, ou a seguridade social na Escandinávia nos anos trinta. A vitória da luta contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial teria sido imensamente mais difícil. Argumentarão, pomposos e solenes, que as revoluções seriam processos de transformação, historicamente, superados: teriam sido, afinal, terremotos convulsivos característicos de nações com baixos níveis de instrução. O que não permitiria explicar o Maio de 1968 na França: um dos países centrais com escolaridade média mais elevada do mundo. Descuidarão, portanto, que a história é um processo em aberto. Ininterrupta, a história voltou a nos surpreender com revoluções políticas, como nos recordam os últimos dois anos na Tunísia, Egito, Líbia, Síria, enfim, no Magreb e Oriente Médio.
O século do encontro da revolução com a história
A revolução política e social foi o fenômeno decisivo da história contemporânea, deslocando o lugar que, no passado, era ocupado pela guerra. A desigualdade social foi e continua sendo o maior problema da civilização. Revoluções aconteceram e continuarão acontecendo porque há injustiça e tirania no mundo. A disparidade de condições materiais e culturais de existência humana precipitaram, recorrentemente, crises sociais que transbordaram em crises políticas. Quando as crises políticas não encontram uma solução no limite das relações sociais dominantes, abre-se uma situação revolucionária. A revolução russa de outubro não foi uma excepção. Ao contrário, a revolução bolchevique estabeleceu um dos paradigmas mais longevos do século XX e inspirou várias das gerações de socialistas que vieram depois.
Mudanças eram – e continuam – sendo necessárias. Nenhuma sociedade permanece imune à pressão por mudanças. Mas, as forças da inércia histórica são proporcionais à força social reacionária de cada época. Um atraso significativo e, muitas vezes, terrível, é inevitável entre o momento da manifestação de uma crise social, e o tempo que a sociedade precisa para que seja capaz de enfrentar as mudanças que são indispensáveis. Revoluções não acontecem quando são necessárias, mas quando a pressão pela transformação se demonstrou inadiável. A história confirmou que as transformações podem ocorrer por via de reformas, ou seja, por lutas que resultam em negociações e acordos transitórios que mantém, na essência, a ordem econômica, social e política, ou por via de revoluções.
Significado das derrotas históricas
A velha máxima que assegura que as revoluções tardias são as mais radicais não deixou de se confirmar. Ao final da Primeira Guerra Mundial ruíram na Europa Central e Oriental três Impérios – o russo, o austro-húngaro e o prussiano – que tinham atravessado, incólumes, o século XIX, desde a Santa Aliança anti-republicana e o Tratado de Viena de 1815. As formas monárquicas mais ou menos arcaicas de cada um deles – expressão de uma transição burguesa negociada sob as cinzas da derrota das revoluções democráticas de 1848 – foram destruídas pelo desenlace da guerra, mas, também, pela maior vaga revolucionária que a história tinha até então conhecido: de Petrogrado a Budapeste, de Viena a Berlim, milhões de homens e mulheres, trabalhadores e soldados, atraíram para o seu lado setores das camadas médias, artistas, intelectuais e professores, e lançaram-se na obra de destruir os velhos regimes de opressão que os tinham mergulhado no turbilhão do genocídio que acabou consumindo algo próximo a dez milhões de vidas.
Aonde as revoluções democráticas de 1848 foram derrotadas pelas velhas monarquias – fortalecidas na época da restauração depois de 1815- como na Alemanha prussiana e no Império dos Habsburgos, a tarefa de pôr fim à guerra uniu-se à proclamação da República, mas as forças sociais que impuseram, pelos métodos da revolução, a derrota do governo – o proletariado e os camponeses arruinados que constituíam a maioria do exército – não se contentaram somente com as liberdades democráticas, e lançaram-se na vertigem da conquista do poder com suas esperanças socialistas.
As revoluções atrasadas da Europa Central e Oriental transformaram-se em revoluções proletárias pioneiras ao final da Primeira Guerra Mundial, mas, à excepção da Rússia, foram desbaratadas. Derrotas históricas, contudo, têm conseqüências trágicas e duradouras. O custo histórico, para os alemães, da derrota de seus jacobinos em 1848 foi o militarismo nacionalista do II Reich, o imperialismo do Kaiser, e a Primeira Guerra Mundial. O preço que a nação alemã pagou pela derrota do seu proletariado – o triunfo do nazismo, a Segunda Guerra e os seis milhões de vidas da juventude alemã – foi ainda maior.
Ditadura do proletariado ou ditadura fascista
Aonde as formas tirânicas do Estado revelaram-se mais rígidas, como na Rússia, a revolução democrática radicalizou-se, muito rapidamente, em revolução socialista, confirmando que revoluções não podem ser compreendidas somente pelas tarefas que se propõem resolver, e menos ainda pelos seus resultados, mas, sobretudo, pelos sujeitos sociais, ou classes, que tiveram a audácia de fazê-las, e pelos sujeitos políticos, ou partidos, que foram capazes de dirigi-las. O substitucionismo histórico – de uma classe por outra – e a centralidade da política – com a redução das margens de improviso da liderança – demonstraram-se as chaves de explicação dos processos revolucionários contemporâneos.
Não foi a burguesia russa que se lançou à insurreição para derrubar o Estado semi-feudal dos Romanov em fevereiro de 1917, mas foi ela quem impediu o governo provisório do Príncipe Lvov de fazer a paz em separado com a Alemanha: os capitalistas russos demonstraram-se demasiado frágeis para, por um lado, romper com seus parceiros europeus, e por outro, para garantir a sua dominação através de métodos eleitorais na República que nascia pelas mãos da insurreição proletária e popular. Não foi a burguesia quem mandou os seus filhos para as trincheiras da guerra serem massacrados, mas era ela quem apoiava Kerensky, quando este insistia em lançar os camponeses fardados em ofensivas suicidas sobre o exército alemão.
A pressão de Londres e Paris exigia a manutenção da frente oriental, mas a pressão de um proletariado poderoso e combativo – proporcionalmente a uma burguesia com pouco “instinto de poder” pela submissão à monarquia – exigia o fim da guerra; as forças mais fortes da esquerda socialista – mencheviques e esseristas – se recusavam a assumir o poder sozinhos, porque não queriam romper com a burguesia, porém os bolcheviques, minoritários até setembro, recusavam a integração no governo de colaboração de classes, porque não admitiam romper com as reivindicações populares. Quando Kerensky perdeu o apoio nas classes populares, a burguesia russa apelou ao general Kornilov para resolver com as armas, o que não podia ser resolvido com argumentos. A hora das eleições para a Constituinte tinha passado. A burguesia russa perdeu a paciência com Kerensky e rompeu com a democracia, dois meses antes de o proletariado perder a paciência com os seus líderes, e recorrer a uma segunda insurreição para terminar com a guerra.
O fracasso do putsch selou o destino da burguesia russa. O proletariado e os soldados encontraram nos bolcheviques, nas horas terríveis de agosto, o partido disposto a defender com a vida as liberdades conquistadas em fevereiro. Sem o apoio da burguesia e sem o apoio das massas, suspenso no ar, o governo de Kerensky – e seus aliados reformistas – procurou socorro no pré-parlamento, mas a legitimidade da democracia direta dos sovietes superava a representação indireta de qualquer assembléia: o tempo para as negociações com a Entente tinha se esgotado, a oportunidade histórica para a república burguesa tinha sido perdida. Era tarde demais.
A engrenagem da revolução permanente empurrava os sujeitos sociais interessados no fim imediato da guerra – a maioria do Exército e dos trabalhadores – para uma segunda revolução e operava a favor dos bolcheviques que, no espaço de poucos meses, viam sua influência se agigantar. O proletariado e os camponeses pobres precisaram dos meses que separaram fevereiro de outubro para perderem as ilusões no governo provisório, onde os partidos em que depositavam suas esperanças, mencheviques e esseristas, eram incapazes de garantir a paz, a terra e o pão, e entregar sua confiança aos sovietes onde a liderança de Lênin e Trotsky se afirmava.
Martov, líder dos mencheviques internacionalistas e Kautsky, líder da social-democracia alemã, insistiram, nos anos seguintes, que Outubro teria sido uma aventura voluntarista. Acusaram os bolcheviques de golpistas por terem feito a revolução: queriam que os bolcheviques construíssem o regime democrático-liberal quando a burguesia russa tinha apoiado os métodos da guerra civil para defender a propriedade privada. Quis a ironia da história que, na Rússia de 1917 – antecipando um movimento histórico que depois se generalizou à Europa – os partidos menchevique e SR, que nasceram como organizações operárias e populares, transfiguraram-se nos porta-vozes da pequena-burguesia e das incipientes classes médias urbanas: um colchão de amortecimento da luta de classes entre o Capital e o Trabalho, e os últimos advogados de um regime democrático-liberal, mesmo depois que a burguesia tinha abraçado o plano da ditadura fascista, que poderia ser adornada com uma coroa monárquica. Mais razoável, entretanto, seria concluir que uma hesitação bolchevique em outubro, ou a sua derrota na guerra civil entre 1918/1920, teria levado ao poder – apoiado pelas democracias de Washington e Londres – um fascismo russo, e ninguém deveria querer imaginar o que poderia ter sido um “Hitler” no Kremlin.
A alternativa de outubro: capitalismo ou socialismo
O balanço que a história deixou parece irrefutável: se até a Alemanha, a mais desenvolvida e educada das nações européias não escapou da ditadura nazista, seria superficial e até, talvez, ingênuo, imaginar que a atrasada Rússia semi-asiática poderia ter consolidado um regime democrático-liberal ao final da Primeira Guerra Mundial. São variadas as razões que explicam essa impossibilidade na Rússia, ao contrário do que aconteceu, posteriormente, na Europa do Mediterrâneo em 1945, em Portugal e Espanha entre 1975 e 1978, ou na América Latina entre 1982 e 1985.
Nas condições da Rússia depois da queda do Czar, em fevereiro, a burguesia não estava disposta a romper suas relações com Londres e Paris e iniciar um processo de paz em separado com Berlim, porém, sem a paz, a burguesia não poderia imaginar a convocação das eleições para a Constituinte. Ao chegar mais de meio século atrasada ao processo de industrialização, e ao ter se inserido no sistema internacional como potência semi-periférica – imperialista em relação às suas colônias no Cáucaso e na Ásia, mas sub-metrópole em relação à França e à Inglaterra – a burguesia russa tinha se associado aos capitais estrangeiros para financiar a implantação de seu parque industrial.
A consolidação de uma democracia-liberal pressupunha a convocação de eleições em uma situação em que a legitimidade da vontade popular tinha encontrado representação nos sovietes, onde o principal partido burguês, o Kadete, não tinha expressão. A força do proletariado em movimento impunha uma forte presença dos partidos socialistas moderados, mencheviques e esseristas, nos variados Governos provisórios, mas, assim como Miliukov não estava disposto a romper com a Entente, estes partidos não estavam dispostos a romper com a burguesia, levando primeiro o Príncipe Lvov, e depois Kerensky, ao impasse crônico.  Ao exigir das massas que fizeram a revolução contra o Czar para se libertar da guerra, que prolongassem a guerra para conseguir a Constituinte (e a promessa secular de terra e libertação nacional para ucranianos, bálticos, caucasianos e asiáticos) sucessivas crises políticas foram se precipitando em vertigem até à crise revolucionária, depois da derrota do golpe de Kornilov.
Referências bibliográficas
COLLETTI, Lucio. El marxismo y el derrumbe del capitalismo. México: Siglo XXI, 1985.
DRAPER, Hal. Karl Marx’s theory of revolution. v. 2. Nova York: Monthly Review Press, 1978.
FURET, François. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
TROTSKY, Leon. Historia de la revolución rusa. Bogotá: Pluma, 1982.
Fonte: http://blogconvergencia.org

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Lenin e Trotsky e o debate marxista sobre as tarefas da revolução na Rússia

Por Carlos Zacarias F. de Sena Júnior

Em janeiro de 1905, uma multidão de operários de diversos ramos da indústria, 200 mil pessoas segundo estimativas da época, entre homens, mulheres e crianças, haviam marchado para o centro da cidade de São Petesburgo, na Rússia, com o objetivo de protestarem frente ao todo poderoso Tzar, Nicolau II, contra as duras condições de vida e trabalho que se abatiam sobre a maioria da população. Sob a liderança do padre George Gapon, a multidão caminhava pacificamente e sem armas (os que estavam armados, tinham tido suas armas recolhidas por ordens de Gapon), com muitos levando imagens de Nicolau II e entoando cantos religiosos e o “Deus salve o Tzar”. Os trabalhadores, que reivindicavam jornada de oito horas, salário mínimo de um rublo por dia, abolição da hora extra compulsória sem pagamento e liberdade de organização, não tinham idéia de que os acontecimentos que protagonizariam em seguida dariam ensejo a um processo histórico de transformações que ganhariam a Rússia e o mundo. Não obstante, marchavam pacificamente levando consigo as décadas de atraso de um país semi-feudal, oprimido por séculos de autocracia, miséria e fome.
No texto da petição que a multidão pretendia entregar a Nicolau II, constava muito mais do que meras reivindicações por melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora, pois a Rússia era um dos países mais atrasados da Europa e um dos países em que as hierarquias da sociedade nobiliárquica, onde apenas na segunda metade do século XIX os servos se haviam libertado, prevaleciam sobre a maioria da população das cidades e dos campos. Desta maneira, ficava evidente que ao lado da Rússia moderna do proletariado que pretendia emergir com as suas reivindicações e manifestações de massa, repousava ainda um bocado de passado de um país arcaico, mergulhado no obscurantismo que dialeticamente vinha sendo superado, como aparece no texto da petição:
“Senhor – Nós, operários residentes da cidade de São Petesburgo, de várias classes e condições sociais, nossas esposas, nossos filhos e nossos desamparados velhos pais, viemos a Vós, Senhor, para buscar justiça e proteção. Nós nos tornamos indigentes; estamos oprimidos e sobrecarregados de trabalho, além de nossas forças; não somos reconhecidos como seres humanos, mas tratados como escravos que devem suportar em silêncio seu amargo destino. Nós o temos suportado e estamos sendo empurrados mais e mais para as profundezas da miséria, injustiça e ignorância. Estamos sendo tão sufocados pela justiça e lei arbitrária que não mais podemos respirar. Senhor, não temos mais forças! Nossas resistências estão no fim. Chegamos ao terrível momento em que é preferível a morte a prosseguir neste intolerável sofrimento.”1
Apesar de sua marcha pacífica e ordeira, Nicolau II parecia não ter interesse em conhecer o teor das reivindicações dos trabalhadores e terminou não tendo o privilégio de ler o texto da petição, talvez o último de uma longa era, pois a multidão conduzida pelo Padre Gapon nem chegou a se aproximar do imponente Palácio do Tzar. Cercada por “cerca de 20 mil soldados fortemente armados”, que atiraram indiscriminadamente nos trabalhadores a uma distância mínima de poucos metros, centenas ou talvez mais de um milhar de mortos levaram consigo para as sepulturas parte das cinzas de uma Rússia que começava a desaparecer. Foi um massacre e apesar de não se saber quantos haviam sido mortos naquele “domingo sangrento”, sabia-se, por certo, “que uma época da história russa havia concluído abruptamente e uma revolução começara”.2
Em fevereiro de 1905, uma onda de greves varreu toda a Rússia em resposta ao massacre do dia 9 de janeiro em São Petesburgo. Envolvendo cerca de um milhão de trabalhadores e atingindo mais de cento e vinte cidades, paralisando minas, ferrovias e inúmeras fábricas, o conteúdo das greves que sacudiram a Rússia em 1905 produziu muito mais do que algumas simples transformações nas relações entre a sociedade e a autocracia, ou entre os trabalhadores das fábricas e os patrões. Foi uma verdadeira revolução no sentido estrito do termo, pois a Rússia semi-feudal e majoritariamente camponesa deixava para trás toda uma era de obscurantismo e arcaísmo nas relações entre as classes e a história assistia, pela primeira vez, o nascimento de uma experiência inédita produzida pelos trabalhadores urbanos, os modernos proletários. Com efeito, os sovietes foram o resultado mais importante do ensaio de 1905, como organismos de duplo poder que dirigiram a revolução e produziram as transformações qualitativas exigidas pela maioria da população. Não obstante o novo ainda estivesse por nascer, o velho havia sido superado pela história, assim como o fora o Padre Gapon que dali por diante teria um papel muito menor do que o de outras lideranças emergentes da velha Rússia.
Os acontecimentos ocorridos no dia 9 de janeiro de 1905, que os historiadores passaram a chamar de “ensaio geral” da Revolução Russa de 1917, inauguraram um longo processo de entrada em cena da classe trabalhadora daquele país, que viveu momentos de fluxo e refluxo das suas lutas, até que pudessem tomar o poder em Outubro de 1917. Mais do que um “ensaio geral”, entretanto, os significados da revolução de 1905 na Rússia iriam além das transformações que ela produziu na terra dos Urais, pois daria oportunidade a que as principais lideranças dos posteriores acontecimentos de 1917, Lenin e Trotsky, produzissem reflexões que redimensionariam o marxismo esterilizado dos gabinetes da social-democracia européia.
As tarefas da revolução na Rússia
Falando dos acontecimentos daqueles anos, Trotsky se referiu ao uso que a história fez do “fantástico plano de Gapon” que culminou na conclusão revolucionária de 1905 e na formação dos sovietes.3 Trotsky, que em 1905 havia presidido o soviete de São Petesburgo, o mais importante de toda o país, esteve empenhado em estudar a fundo as implicações de uma revolução num país tão atrasado como a Rússia. Em função disso, travou uma das mais profícuas polêmicas do interior do marxismo, polêmica esta que culminou na elaboração da teoria da “Revolução Permanente” que, curiosamente nas suas origens, opôs o futuro comandante do Exército Vermelho, ao líder máximo do Partido Bolchevique.
Os termos do debate ocorrido em torno dos acontecimentos de 1905 remontam a um dos principais postulados do materialismo histórico que defende que uma “organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter”.4Neste sentido, quais as possibilidades de uma revolução socialista triunfar num tão atrasado como a Rússia que sequer tinha desenvolvido completamente relações sociais de produção do tipo capitalistas?
Para Lenin, que no curso dos acontecimentos de 1905 desenvolveu um texto em polêmica com os mencheviques, a conquista do poder pelo proletariado, colocada na ordem do dia, não implicava numa imediata transição para o socialismo, haja vista a impossibilidade de se saltar etapas.5Lenin tinha em mente que o que estava em jogo na Rússia era a revolução burguesa e suas tarefas democráticas e por isso propunha a consigna de “ditadura revolucionária e democrática do proletariado e do campesinato”. Mas Lenin advertia aos mencheviques que, apesar de suas tarefas democráticas, portanto burguesas, as forças sociais que se opunham ao tzarismo, e que, portanto, deveriam se perfilar para a “vitória decisiva” sobre a autocracia, não poderiam contar com a presença da grande burguesia e dos latifundiários, visto “que eles nem sequer desejam uma vitória decisiva”. Para o líder bolchevique, a burguesia russa era incapaz, “pela sua situação de classe”, de empreender uma luta decisiva contra o tzarismo, justamente porque “a propriedade privada, o capital e a terra”, eram um lastro demasiadamente pesado para esta classe. Neste sentido, Lenin entendia que a “única força capaz de obter ‘vitória decisiva sobre o tzarismo’”, só podia ser o “povo, isto é, o proletariado e o campesinato, se se tomar as grandes forças fundamentais e se se distribuir a pequena burguesia rural e urbana (também ‘povo’) entre um e outro”. Não obstante, a vitória da revolução na Rússia, para Lenin, não converteria “ainda, de forma alguma”, a revolução russa de burguesa a socialista. De acordo com o líder russo, que antevia os profundos significados das transformações que se começavam a produzir na Rússia, a “revolução democrática” não ultrapassaria “diretamente os limites das relações econômicos-sociais burguesas”, e embora se fizesse apesar da burguesia, teria “importância gigantesca para o desenvolvimento futuro da Rússia e do mundo inteiro”.6
O fato é que em 1905, enquanto combatia os primeiros passos do reformismo no seu país, representado pela corrente menchevique, Lenin raciocinava rigorosamente dentro dos limites das proposições do materialismo histórico de Marx e Engels que pressupunha que as transformações profundas nas sociedades só poderiam ocorrer em meio a condições materiais concretas, de maneira que “a humanidade só levanta problemas que é capaz de resolver”. Em todo caso, se a humanidade havia levantado o problema da tomada do poder pelo proletariado, não era o caso de as condições estarem efetivamente colocadas para uma revolução socialista na Rússia? Com efeito, caberia se perguntar sobre os limites e possibilidades de um outro postulado do materialismo histórico, também central da formulação marxiana e engelsiana e intimamente articulado com as condições objetivas legadas pelo passado, que dizia que eram os homens que faziam a história. Desta forma, foi justamente Trotsky que descobriu o caminho que traria a revolução das suas tarefas democráticas, para o socialismo, através da teoria da Revolução Permanente, contribuindo de forma original e inovadora para superar a letargia do formalismo que pesava sobre o pensamento marxista europeu.
Sobre o assunto, Trotsky se dedicou a estudar o desenvolvimento do capitalismo na Rússia no início do século XX e as forças motrizes da revolução, para propor, que no que se referia às suas tarefas diretas e indiretas, a revolução russa seria uma “revolução ‘burguesa’, porque se propõe libertar a sociedade burguesa das correntes e grilhões do absolutismo e da propriedade feudal”. Contudo, pensava Trotsky, se a principal força condutora da revolução russa era a classe operária, a revolução era “proletária no que diz respeito ao seu método”.7 (p. 66) Ou seja, se em 1905 o proletariado russo havia avançado em nome dos seus próprios objetivos, quase todos eles contrapostos aos objetivos da própria burguesia que se limitava às tarefas democráticas da transformação, a revolução não poderia fazer retornar a “unidade da nação burguesa”, de maneira que, na “revolução burguesa sem uma burguesia revolucionária”, o proletariado seria conduzido “pelo desenvolvimento interno dos acontecimentos”, a assumir a hegemonia sobre o campesinato e à luta pelo poder do Estado”.
Não obstante, Trotsky não ignorava que o atraso do desenvolvimento russo poderia dificultar, ou mesmo impedir, o sucesso completo da revolução naquele país. Ou seja, para aqueles que apressadamente poderiam dizer “voluntarista” a formulação trotskiana, cabe mencionar que no seu estudo mais importante sobre o assunto, Balanços e Perspectivas, Trotsky partiu das forças da necessidade histórica, para propor que, apesar das condições objetivas legadas pelo passado, são os homens que fazem a história.8 Desta maneira, o presidente do soviete de São Petesburgo defendia a possibilidade de que a Rússia pudesse “saltar etapas”, tendo em vista que, de nenhuma maneira, uma sociedade atrasada, tendo diante de si um modelo histórico já pronto e desenvolvido, precisaria necessariamente percorrer o mesmo caminho da sociedade avançada. De acordo com Trotsky, isso ocorria em virtude da existência de uma outra lei histórica do desenvolvimento da sociedade descoberta pelo marxismo, qual seja, a lei do desenvolvimento desigual e combinado que aparece enunciada plenamente no seu texto sobre a História da Revolução Russa:
“As leis da História nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processus histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de uma denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.”9
Neste sentido, quando pensava nas possibilidades de uma vitória do socialismo num país atrasado, Trotsky respondia a questão apenas de forma condicional, remetendo a outros aspectos que diretamente influenciariam nas possibilidades do socialismo vingar na Rússia. Com efeito, dizia Trotsky, caso o proletariado tivesse êxito em conquistar a hegemonia política sobre o campesinato, cujos interesses democráticos poderiam levá-los para o campo da burguesia, e dessa forma exceder “os limites nacionais da revolução russa, então essa revolução pode tornar-se o prólogo de uma revolução socialista mundial”.10 Ou seja, para o dirigente russo, as possibilidades de o socialismo vingar na Rússia nas condições em que uma revolução proletária tomasse novamente aquele solo diziam respeito ao fato de que nenhum país poderia ser pensado isoladamente e nenhuma revolução poderia triunfar plenamente nos marcos e nos limites de uma só nação.
1917:  a revolução permanente
Os resultados dos acontecimentos históricos que se abateram sobre a Rússia em 1917, deram razão aos postulados e vaticínios de Trotsky. Contudo, sem o gênio político de Lenin, a revolução de Outubro, muito dificilmente, teria logrado sucessor, isto porque se os resultados do embate entre Lenin e Trotsky em 1905-1907, não devem ser considerados como os mais importantes nos desdobramentos da Revolução de Outubro, não deixa de ser importante o fato de que foi da convergência de posições dos dois grandes líderes revolucionários que se produziu a melhor síntese que permitiu ao marxismo russo superar dialeticamente seus congêneres europeus. Trotsky parece ter sido vitorioso no que tange a efetividade prática de sua teoria da Revolução Permanente, mas sem a teoria do partido de Lenin, que lutara arduamente para edificar a ferramenta indispensável do Partido Bolchevique, inicialmente criticada por Trotsky, a revolução muito dificilmente teria tido sucesso na Rússia. E se Trotsky reconheceu a superioridade da formulação leniniana do partido já em 1917, quando aderiu à organização bolchevique e dirigiu, junto com Lenin, a Revolução de Outubro, Lenin, à sua maneira, aderiu a formulação trotskiana da Revolução Permanente em abril de 1917, através das famosas Teses de Abril. Estas colocaram a tomada do poder pelos sovietes na ordem do dia para os bolchevques, que também passaram a ser exortados por Lenin a fazerem transitar a revolução da sua etapa burguesa para a etapa socialista.11
Para o líder bolchevique, após a revolução de fevereiro e os acontecimentos que se produziram na consciência dos trabalhadores russos em poucos meses, colocar a conclusão da revolução burguesa nos marcos de uma longa etapa, como havia pensado originalmente em 1905, seria esterilizar o marxismo que é, antes de tudo, “análise concreta de situação concreta”. Neste sentido, pensava Lenin, na circunstância em que uma guerra atingia a Europa e as possibilidades do socialismo na Rússia se ligavam umbilicalmente a vitória da revolução mundial, a revolução russa seria, apenas, “a primeira etapa da primeira das revoluções proletárias geradas inevitavelmente pela guerra”. Por isto, a tarefa urgente dos bolcheviques era lutar pelo papel dirigente do proletariado na revolução e “explicar ao povo a urgência de uma série de passos praticamente maduros em direção ao socialismo”.12
O sucesso da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, foi o resultado de um longo processo de amadurecimento de condições históricas que, de maneira desigual e combinada, prepararam o mundo para o socialismo. Evidentemente, que os desdobramentos daquela experiência que produziram a contra-revolução stalinista e a ascensão da burocracia, também estiveram relacionados a condições históricas muito particulares. Não obstante, como a nenhum marxista é dado o direito de raciocinar apenas sobre os termos em que os fatores objetivos criam as condições para a emergência das subjetividades, deve-se afirmar que ao lado das condições produzidas pela necessidade histórica, caminharam sempre os fatores da vontade e da agência humana. Sendo assim, da mesma forma que as derrotas posteriores da revolução mundial foram provocadas pela presença de direções stalinistas que estiveram à frente dos diversos processos, sempre a serviço da teoria do “socialismo num só país”, a vitória da revolução russa em 1917 deveu-se a existência de gênios políticos da estatura de Lenin e Trotsky, que estudaram a fundo as leis da necessidade histórica e os significados das revoluções para que pudessem incidir a fundo sobre a política de maneira a mudar o rumo da História.
Notas:
1 Apud BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. 9 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 236.
2 Idem, ibidem, p. 237.
3 TROTSKY, Leon. A revolução de 1905. São Paulo: Global, s/d, p. 90.
4 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 25.
5 LENINE, V. I. “Duas táticas da social-democracia na revolução democrática”. In: Obras escolhidas. 3 ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986, p. 406, v. 1.
6 LENINE, “Duas táticas…”, in: Obras escolhidas, Op. cit., p. 410-411, v. 1.
7 TROTSKY, A revolução de 1905. Op. cit., p. 72.
8 TROTSKY, Leon. 1905: resultados y perspectives. Madrid: Ruedo Ibérico, 1971. Alguns capítulos desta importante obra de Trotsky, ainda não traduzida em sua íntegra para o português, aparecem na edição brasileira da A revolução de 1905, da global citada anteriormente.
9 TROTSKY, Leon. História da revolução russa. A queda do tzarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 25, v. 1 (grifos no original).
10 TROTSKY, A revolução de 1905, Op. cit., p. 291.
11 Cf. LENINE, V. I. “Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução”. In: Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1988, p. 14, v. 2.
12 LENIN, V. I. “VII Conferência (de abril) de toda a Rússia do POSDR(b)”. In: Id., ibid., p. 98.
(Texto publicado originalmente no site do PSTU (www.pstu.org.br), em 2007, por ocasião da passagem dos 90 anos da Revolução Russa.)
Fonte: http://blogconvergencia.org

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Apesar do mensalão, o PT sai vitorioso das eleições municipais. Qual a explicação desse fato?



O significado da guerra da imprensa contra o PT
por Márcio Palmares
Mesmo após o julgamento e a condenação dos réus do mensalão, a imprensa não cansa de pisar sobre a cabeça dos antigos dirigentes do Partido dos Trabalhadores. Para citar apenas dois exemplos, Genoíno e Zé Dirceu, dirigentes que ocuparam os mais altos cargos dentro do partido que governa o país há dez anos, estão agora reduzidos a “políticos comuns”: corruptos oportunistas execrados pela opinião pública.
Há três aspectos ocultos em toda a imensa campanha feita pela imprensa contra o PT. É importante refletir sobre eles.
O primeiro: quem comanda o país, na verdade, não é exatamente o PT. O Brasil é comandado por bancos, multinacionais, empreiteiras, latifundiários e especuladores do mercado financeiro. Para eles, a cor da marionete não importa: vermelha (PT) ou azul (PSDB), tanto faz. O importante é que toda a economia do país esteja voltada aos seus interesses. Ao observar os balancetes no final do ano, a série histórica dos lucros, se os sinais forem positivos, o banqueiro vai brindar ao PT ou ao PSDB, indistintamente.
Por isso, a polarização que se cria na imprensa em torno do PT e da oposição burguesa (PSDB e DEM, principalmente) é artificial: esses três partidos defendem o mesmo modelo econômico. Mas, mesmo assim, os capitalistas preferem ver no governo os seus próprios partidos, e não partidos que nasceram no seio da classe trabalhadora e que posteriormente se venderam aos capitalistas.
O segundo aspecto oculto: a enxurrada de matérias sobre o mensalão procura esconder o fato de que os partidos políticos burgueses, como PSDB, PDT, PMDB ou DEM, são tão corruptos quanto o PT, não há nenhuma diferença. Também houve mensalão do DEM e do PMDB. E os autores dos esquemas de corrupção, nesses casos, não serão presos. Permanecerão impunes. Demóstenes Torres, por exemplo, que era senador pelo DEM, e que fora eleito “Paladino da ética” pela revista Veja, apesar de cassado, e apesar de ser tão corrupto quanto Zé Dirceu, não será preso.
Terceiro aspecto oculto: ao atacar o PT a serviço dos capitalistas, a imprensa procura erradicar para sempre do imaginário popular a ideia de que um partido político da classe trabalhadora possa ser de algum modo bem sucedido, como se toda e qualquer experiência política fosse invariavelmente terminar em degeneração e corrupção. É por isso que o enterro do PT, se promovido pelos próprios capitalistas, vem acompanhado da ressurreição de figuras como FHC, José Serra, Geraldo Alckmin, etc. Moral da história: o cadáver do PT e da CUT deve ser enterrado pela própria classe trabalhadora, através da construção de novas organizações políticas e sindicais, que resgatem as bandeiras ou reivindicações históricas da nossa classe, que o PT jogou na lama.
Apesar do bombardeio de notícias sobre o mensalão, o PT sai vitorioso das eleições municipais
E apesar de tudo, mesmo com o mensalão, o PT saiu fortalecido das eleições municipais. O DEM e o PSDB sofreram uma grave derrota. Em Curitiba, por exemplo, o PSDB perdeu o comando da prefeitura, depois de 24 anos de domínio absoluto. É verdade que isto só foi possível graças ao papel desempenhado pelo ex-tucano Gustavo Fruet, que, para receber o apoio do PT, trocou de legenda como quem troca de roupa. Para os grandes empresários, financiadores das campanhas dos candidatos favoritos, Gustavo Fruet é uma figura confiável e respeitável, de DNA tucano. Com ele, seus negócios estarão em boas mãos. Ratinho Jr., por outro lado, expressão da direita tradicional e conservadora, apesar de se situar na base de apoio do governo federal, não parecia tão confiável aos olhos dos capitalistas. Isto explica por que não foi capaz de vencer no segundo turno. Os capitalistas e a classe média, juntamente com a parcela mais pobre da população, que ainda vê no PT uma esperança, votaram em Gustavo Fruet.
As medidas voltadas ao reaquecimento da economia criam a ilusão de estabilidade
Como explicar esta façanha eleitoral? Simples: desde o início do ano, o governo federal lançou um pacote de medidas destinadas a frear a desaceleração da economia. Devido à crise da economia mundial, cujo aspecto mais visível é a recessão na Europa, a economia brasileira vem desacelerando, ao menos desde 2010. Naquele ano, registramos crescimento de 7,5%. Em 2011, o crescimento caiu para 2,7%, e, para 2012, muitos analistas preveem um crescimento abaixo de 2%. Ou seja, a economia brasileira caminha para a estagnação (crescimento zero). Quando a economia para de crescer, a oferta de vagas no mercado de trabalho diminui, e mais pessoas ficam sem emprego. Surge um clima de pessimismo, os capitalistas, receosos, deixam de fazer novos investimentos, há uma queda constante na produção industrial e nas vendas no comércio, o que acarreta mais demissões. Cria-se assim uma bola de neve cujo resultado no médio prazo é a explosão de uma grave crise social e política: exatamente o que está acontecendo agora na Europa.
Para evitar este cenário, o governo Dilma lançou um extraordinário pacote de ajuda às grandes empresas (e nenhum pacote de ajuda aos trabalhadores): o chamado Plano Brasil Maior. Com esse plano, as empresas economizarão dinheiro, principalmente sob a forma de isenções fiscais (redução do IPI, desoneração da folha de pagamento, etc.). Os patrões estão agora de barriga bem cheia, não precisam demitir ninguém. Além disso, o governo também diminuiu a taxa básica de juros da economia, o que tornou o dinheiro mais barato, isto é, o crédito se tornou mais acessível. Houve, principalmente, do ponto de vista dos trabalhadores, uma diminuição significativa dos juros do cheque especial e também dos juros para o crédito consignado. Com isso, os trabalhadores já podem refinanciar suas dívidas e fazer mais empréstimos (aumentando o endividamento recorde). Além disso, com a diminuição dos juros do cheque especial, sobra um pouquinho mais de dinheiro no fim do mês, o que aumenta o consumo, aquecendo um pouco o comércio.
Essas medidas, embora não ataquem as razões de fundo, estruturais, que geram a crise e a recessão, criam a ilusão de estabilidade. Aparentemente, enquanto a Europa afunda na tormenta da recessão, o Brasil transpõe tranquilo a chamada “marolinha”. Foi esta ilusão momentânea o que permitiu que a maioria dos trabalhadores continuasse acreditando e votando no PT, mesmo com a campanha da imprensa contra o mensalão.
Desfazendo a ilusão
Mas essa estabilidade da economia brasileira, infelizmente, é momentânea e ilusória. O Brasil é profundamente dependente da economia mundial. A dependência é, aliás, o motivo pelo qual temos uma das mais altas taxas de juros do mundo: é o único meio de atrair os especuladores do mercado financeiro. Eles compram os títulos da nossa dívida pública, e seus capitais são remunerados com taxas astronômicas. Por outro lado, como somos uma nação semicolonial, cuja economia é basicamente voltada à exportação de matérias primas, os efeitos da recessão na Europa (ou no Japão ou mesmo nos EUA) demoram mais para chegar aqui. O Brasil exporta matérias primas para a China, que vende produtos industrializados para a Europa. Assim, se a Europa quebrar, os primeiros a pagar o pato serão os trabalhadores europeus (é o que está acontecendo agora). Depois, a outra parte da conta será paga pelos trabalhadores chineses. Nós, trabalhadores brasileiros, seremos os últimos a ser afetados, mas a nossa parcela da conta chegará aqui, não há dúvida. Aliás, já chegou.
A reforma trabalhista e a quarta reforma da previdência
Quando o capitalista está em crise, sua primeira reação é demitir. Se a demissão não for conveniente ou não for possível, o capitalista procura (através do Estado e do governo de plantão) reduzir os salários ou as conquistas sociais, o chamado “salário indireto”. É o que vai acontecer conosco (se não reagirmos).
Em 2011, atendendo aos interesses do mercado financeiro e dos empresários da saúde privada, o governo Dilma atacou as aposentadorias dos servidores públicos, criando o Funpresp, um fundo privado de previdência complementar, e iniciou a privatização dos Hospitais Universitários, por meio da EBSERH.
Os próximos passos do governo, visando atacar as conquistas sociais dos trabalhadores em benefício dos capitalistas, serão:
1) O fim do direito de greve no serviço público, através da “regulamentação do direito de greve”;
2) O fim da estabilidade, com a criação da “demissão por insuficiência de desempenho”;
3) A quarta reforma da previdência, que trocará o famigerado “fator previdenciário” pela “fórmula 85/95”, que vai piorar a situação, aumentando a idade mínima para a aposentadoria; e
4) A ressurreição da reforma trabalhista de FHC, através do chamado Acordo Coletivo Especial (para o patrão). Através do ACE, os patrões poderão incluir nos acordos coletivos cláusulas que contrariam as leis trabalhistas, “flexibilizando a CLT” e atacando os direitos dos trabalhadores. Prevalecerá “o negociado” sobre “o legislado”. Assim, se um sindicato pelego e patronal como o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (base da CUT e do lulismo), que, aliás, é o autor do Projeto de Lei do ACE, negociar com a Volks um acordo coletivo em que os operários devam trabalhar 60 horas por semana sem receber hora-extra, o que é ilegal segundo a CLT, a partir do ACE, essa “negociação” terá força de lei, para a alegria das multinacionais!
O exemplo da Europa
No entanto, apesar de o governo contar com a CUT na implementação dessas “reformas”, se nós, trabalhadores brasileiros, seguirmos o exemplo dos trabalhadores europeus, o confronto não será nada fácil para o governo.
Neste ano, ocorreram as maiores manifestações de rua na Europa, combinadas com greves gerais simultâneas em distintos países, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Países como Espanha, Grécia e Portugal, os mais afetados pela recessão e pelos “planos de austeridade”, vivem em um regime de crise política e social permanente, que ameaça derrubar todo o edifício da União Europeia. E isso acontece porque os trabalhadores resistem. A classe trabalhadora se recusa a entregar seus direitos e conquistas em benefício dos bancos e grandes empresas, que são os responsáveis pela crise. As mobilizações atingem diretamente o governo de cada um desses países, a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) e o próprio capitalismo, identificado corretamente como a raiz de todos os males.
A tendência do Brasil é seguir pelo mesmo caminho. Em 2012, realizamos a maior greve coordenada do serviço público federal dos últimos 20 anos. Mais de 30 categorias entraram em greve. A julgar pelos ventos que sopram da Europa e pela disposição de luta que têm os trabalhadores brasileiros, podemos afirmar que a vida da senhora Dilma Rousseff não será nada fácil daqui para frente. Resistiremos até o fim. Nenhuma conquista social, nenhum direito trabalhista será perdido sem um luta duríssima, em que nossa classe combaterá de cabeça erguida, confiante em suas próprias forças e em seu futuro.
Fonte:http://www.sinditest.org.br/