terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ou as esquerdas se atualizam ou se tornarão cada vez mais irrelevantes

 
 260213 esquerda em debate
 Carta Maior - [J. Carlos de Assis] Dizia Marx na “Sagrada Família” que nenhuma formação histórica pode dar lugar a outra mais avançada se “o velho não estiver ao ponto de cair sozinho e o novo não estiver pronto para substituí-lo”. A crise atual aponta para um capitalismo financeirizado virtualmente falido, mas me exaspera o fato de não ver um projeto de base social nas esquerdas que se apresente como maduro para ocupar seu lugar. Há, sim, em algumas correntes esquerdistas, uma espécie de confiança dogmática, filha do marxismo bastardo, na autodestruição do capitalismo, e nenhuma proposta consistente sobre como ocupar o espaço supostamente a ser deixado vago.

Num contexto histórico diferente, quando o capitalismo fordista estava em ascensão nos Estados Unidos e invadindo a Europa, Gramsci formulou o conceito de “guerra de posição”, que seria uma estratégia de ocupar espaços sucessivos em favor das massas no lugar de pregar uma revolução momentaneamente impossível. Noventa anos depois, é tempo de remontar à guerra de posição para aproveitar em melhores condições as fraquezas do capitalismo. Ou será que alguém acredita numa revolução classista nos Estados Unidos ou no Brasil capaz de destruir a burguesia como classe, o que tornaria inevitável sua destruição também física numa guerra civil?
A democracia moderna é uma invenção burguesa. Mas, como tudo na história, seu resultado contraditório foi abrir frestas crescentes de oportunidade para as massas, muito bem aproveitadas, em seu auge, pelas sociais democracias européias e, em parte, também nos Estados Unidos e mesmo no Brasil. A conformação da atual crise – uma orgia especulativa privada nos países ricos que se converteu, para que num primeiro momento o sistema financeiro fosse salvo, numa crise fiscal sem precedentes – aponta diretamente para a destruição do estado de bem estar social (onde ele existe, ou onde ele é uma aspiração) financiado pelos orçamentos públicos.
A guerra de posição aqui significa, como prioridade máxima, salvar o que existe de estado de bem estar social. E o passo à frente significa radicalizar a democracia. É politicamente impossível, numa democracia de origem burguesa, destruir o direito de propriedade privada de todos os meios de produção. Mas é possível, primeiro, estatizar o sistema bancário, já que a emissão monetária e de crédito deveria ser uma prerrogativa exclusiva do Estado; segundo, é perfeitamente possível socializar a terra; e em terceiro lugar, é de todo conveniente, para a estabilidade social, que empresas produtivas estratégicas fiquem em mãos do Estado.
Não estou dizendo novidade: estou me remetendo às estruturas básicas do país mais bem sucedido econômica e socialmente nas últimas três décadas, a China. E em parte também à Índia, embora neste caso com menor brilho. Os dois países se beneficiam para um forte crescimento de planejamento centralizado, sistemas bancários públicos e grandes empresas estatais (ou nacionais) em setores estratégicos. Diante de um ciclo econômico de baixa, planeja-se, financia-se e executa-se o investimento e a inovação tecnológica no mesmo movimento. Não há vazamentos para fora do efeito multiplicador keynesiano como nos países onde vigora ampla liberdade de movimento de capitais.
Infelizmente, não tenho visto debates nessa linha entre as esquerdas. Vejo, sim, diagnósticos inflamados da crise e de seus culpados, o que é útil para formar uma opinião negativa sobre o capitalismo financeirizado, mas que não traz, em si, uma estratégia de superação. Daí a necessidade de romper com dogmatismos e forjar uma nova utopia. Antes que a direita o faça. Pois não pensem que o capitalismo, que na realidade é funcional da própria civilização em que vivemos, vai apodrecer sem reação num contexto democrático. O risco que corremos é vê-lo conduzir as reformas de cima para baixo, alienando uma vez mais as classes a ele subalternas.
Esse processo já está em curso pelo menos no campo da ideologia. Dois artigos recentes publicados pelo “Wall Street Journal”, o qual não se envergonharia de ser rotulado como porta-voz da ultra-direita norte-americana e mundial, mostram com clareza alguns movimentos táticos surpreendentes da classe dominante, vocalizada por seus intelectuais. Um dos artigos, relativo à Europa, é de Uri Dadush. Outro, sobre a situação atual norte-americana, é de Rex Nutting, da MarketWatch (também do Grupo Murdoch). Ambos foram publicados na edição de 1o de fevereiro.
Dadush se pergunta: Quem diz que a Crise do Euro acabou? E ele mesmo responde: “Mesmo que o euro sobreviva, a crise não acaba até que a periferia (europeia) comece a crescer e as pessoas comecem a encontrar empregos”. Por certo, são razões reais, mas não as do tipo que se encontra na imprensa da direita. Para 18 milhões de desempregados, diz ele, é espantoso o tom triunfalista com que o mercado reagiu à promessa do presidente do BCE, Mario Draghi, de que será comprado o que for necessário dos títulos dos governos dos países periféricos em crise. Isso é bom para os bancos, mas não gera necessariamente empregos.
Ele também cita um proeminente político de oposição de um dos países europeus atingidos pela crise que desmistifica a mudança de sentimento dos mercados em relação a essa promessa de Draghi, argüindo que as políticas correntes não levam a lugar algum. Quando perguntou a esse político como pensava que isso acabaria, ele respondeu com a alegoria da “rã fervida”: “se você põe uma rã em água escaldante, ele disse, ela saltará de lá. Mas se você a põe na água fria e vagarosamente aumenta a temperatura, ela ficará quieta, eventualmente sendo fervida até a morte.”
De fato, a Grécia está sendo fervida numa taxa de desemprego de 26,8%, a Espanha de 26,6%, Portugal de 16,3%, Irlanda de 14,6%, Itália de 11,1%, numa tendência ainda crescente. E é espantosa a divergência entre o desempenho da periferia em relação à Alemanha (desemprego de 5,4%) e os Estados Unidos (7,8%). Também o PIB italiano caiu 6% desde o nível pré-crise, enquanto o da Alemanha subiu 8% e os Estados Unidos 7%. Tudo isso, para Dadush, está longe de ser justificado por diferenciais de produtividade. Reflete principalmente a política econômica de agrilhoamento da zona do euro.
O artigo de Nutting é ainda mais surpreendente, considerando a obsessão da direita norte-americana com a redução do déficit e da dívida pública. Ele também se pergunta: O que poderia ser mais urgente que a redução do déficit? E imediatamente responde: Quase tudo. Nesse tudo ele relaciona cinco problemas maiores, pela ordem: desemprego (19 milhões de desempregados), mudança climática, infraestrutura, desigualdade, democracia (para ele a democracia americana está em retração).
Destaco alguns aspectos do problema da desigualdade, que tem sido justificadamente visados pelas esquerdas mas que não deixa de ser surpreendente aparecerem nas páginas do WSJ: entre 1979 e 2007, a renda média do 1% mais rico dos Estados Unidos cresceu 277%, enquanto a dos 80% que representam a classe média aumentou apenas 38%. Essa tremenda desigualdade foi construída ao longo dos últimos 30 anos, não pela crise. Esta apenas o acentuou. Atualmente, o 1% mais rico da sociedade norte-americana detém 50% da riqueza do país. 
Pode-se argumentar que esses comentaristas não representam o núcleo do pensamento de direita nos Estados Unidos e muito menos o grande capital. Contudo, saltando o Atlântico, o que se pode concluir do fato de que o principal representante do empresariado alemão, Hans-Peter Keitel, presidente da poderosa Federação das Indústrias Alemãs, tenha proposto um “plano Marshall” para a Grécia, em confronto direto com a estúpida política de estrangulamento fiscal imposto ao país pela chanceler Ângela Merkel, pelas mãos da Troika (FMI, BCE e Comissão Europeia)? 
Tudo isso significa que existe uma base comum de diagnóstico, imprescindível para algum nível de negociação entre os representantes de diferentes interesses sociais. Se as esquerdas quiserem ter relevância na formulação das políticas do futuro, elas terão de abandonar a utopia negativa da autodestruição do capitalismo e entrar no jogo da radicalização da democracia com o capitalismo regulado. A propósito: a crítica avassaladora que Nutting faz da regressão da democracia nos Estados Unidos, e que não tenho espaço para reproduzir aqui, está ao nível de qualquer intelectual radical de esquerda, o que é outra base comum de negociação!
Em suma, é preciso abandonar o conforto dogmático segundo o qual tudo na economia e na sociedade já foi resolvido pelos “clássicos”, bastando a nós repetir os textos como papagaios, sem consideração das imensas transformações pelas quais o mundo, e sobretudo o mundo industrializado, passou ao longo do último século. É preciso reconhecer na civilização contemporânea as lições objetivas de suas próprias contradições assumindo o risco de propor novas vias de ação em favor das massas mediante o aperfeiçoamento da democracia, não de sua destruição por alguma forma de ditadura “benigna” que a história tem provado sempre acabar em ditaduras sanguinárias.

P.S.: O Itamaraty está articulando a candidatura brasileira à diretoria geral da Organização Mundial do Comércio, OMC. Considerando que sua ala entreguista não conseguiu amarrar o Brasil à Alca, por oportuna oposição de Lula, pode ter aí três propósitos: 1) estourar o livre-cambismo por dentro; 2) subordinar de vez o país ao livre-cambismo; 3) arranjar empregos para diplomatas brasileiros em Genebra.
J. Carlos de Assis é economista, professor de economia internacional da UEPB e autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus” (ed. Civilização Brasileira).
Fonte:http://www.diarioliberdade.org

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Os "senhores de engenho" da modernidade: a praga ruralista no congresso



 As "raposas" do congresso (bancada ruralista) 

214 deputados e 14 senadores integram a bancada ruralista, o equivalente a 41,7% da Câmara e 17,3% do Senado. Parte dos integrantes é formada por donos de terra ou empresários dos segmentos alimentar ou agroquímico

 As propostas dos fazendeiros, latifundiários e dos agro-empresários (propostas da bancada ruralista) significam retrocesso às conquistas políticas. Uma verdadeira contrarrevolução jurídica, prevista nos países latino-americanos, segundo o professor  Boaventura de Souza Santos. As elites, através do judiciário, pretendem barrar conquistas como: ações afirmativa; acesso à educação; demarcação de terras indígenas e de quilombolas; além de criminalizar os movimentos sociais, principalmente o MST, e anistia aos torturadores na ditadura. Vão discutir reforma tributária sem onerar as grandes fortunas. A mudança no Código Florestal e a violência no campo têm como finalidade adiar o debate sobre a Reforma Agrária e soberania alimentar, que possibilitariam a autonomia da classe trabalhadora. As mudanças na legislação trabalhista e fundiária são decisivas na atual crise do capitalismo. É preciso mobilização para que a concentração de terra não aumente ainda mais e a força de trabalho não seja escravizada, ou seja, que os donos do capital não se apropriem da natureza e de nossa força de trabalho.

Vejam essa matéria públicada no Jornal Valor Ecoômico: 

 As prioridades dos ruralistas -  Por Murilo Rodrigues Alves

A bancada ruralista deve concentrar sua atuação neste ano legislativo em projetos que envolvam a demarcação das terras indígenas e a definição de um novo código de trabalho rural, dois temas considerados prioritários na reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e de outras entidades ligadas ao setor agropecuário. O objetivo do encontro de ontem em Brasília foi justamente definir essas prioridades.
Segundo a FPA, 214 deputados e 14 senadores integram a bancada ruralista, o equivalente a 41,7% da Câmara e 17,3% do Senado. A bancada agrega parlamentares que defendem os pleitos do agronegócio. Parte dos integrantes é formada por donos de terra ou empresários dos segmentos alimentar ou agroquímico, e a força de articulação do grupo ficou visível com a versão do Código Florestal aprovada no Congresso.
No que se refere às questões fundiárias, um dos projetos que serão acompanhados de perto pela bancada ruralista é a proposta de emenda à Constituição (PEC) 215/2000, do deputado Almir Sá (PPB-RR). A FPA se posiciona favorável à proposta de retirar do Executivo a demarcação de terras indígenas e incluir como competência exclusiva do Congresso a aprovação de demarcação das terras indígenas e a confirmação das demarcações já homologadas. O texto também estabelece que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei.
A proposta é polêmica e deve marcar mais um embate entre as bancadas ruralista e ambientalista, uma vez que movimentos de apoio aos indígenas, magistrados e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) já se posicionaram contrários à PEC. Essas organizações argumentam que a aprovação da proposta colocaria um fim às demarcações de áreas de proteção tanto indígenas como de quilombolas, porque elas ficariam condicionadas ao lento processo de aprovação por parte de deputados e senadores.
A bancada ruralista também deve fazer lobby para que seja aprovado um projeto de lei (PL) de Paulo Piau, ex-deputado e atualmente prefeito de Uberaba (MG), que cria um sistema de indenização a produtores rurais que tiverem suas propriedades desapropriadas por causa da demarcação de terras indígenas ou de quilombolas. Ainda na política fundiária, os ruralistas devem combater a criação do Conselho Nacional de política Indigenista (CNPI) - que contará, se aprovado, com representantes do Executivo, dos povos e das organizações indígenas de todas as regiões do país.
Quando o assunto é relações de trabalho, a FPA vai brigar pela aprovação de uma legislação específica para o trabalhador rural. Segundo o coordenador técnico da frente, Paulo Márcio Araújo, as condições de trabalho no campo são diferentes das da cidade e, por isso, é preciso a criação de um código rural para delimitar regras mais flexíveis nas relações de trabalho do setor - que leve em conta, por exemplo, que na época de colheita, muitas vezes, trabalha-se mais do que 8 horas por dia. (significa legalizar a escravidão moderna - grifo meu)
Ao mesmo tempo, o lobby rural tentará barrar no Congresso todos os projetos que dispõem sobre punições aos empregadores que colocam os trabalhadores em situações análogas à escravidão. Segundo Araújo, é preciso primeiro que se defina o que é trabalho escravo. Para ele, a portaria do Ministério do Trabalho que trata do assunto é "muito vaga". O coordenador da FPA, que trabalhou por sete anos no Ministério da agricultura e assumiu o cargo na frente em novembro, criticou exigências do Ministério do Trabalho como a distância entre as camas em um alojamento.
Ele acredita que é por esse tipo de exigência que a grande maioria dos 405 empregadores que estão na lista suja do trabalho escravo, divulgada no início deste mês pelo Ministério do Trabalho, é de contratantes localizados em áreas rurais. Enquanto não forem definidos os critérios das condições análogas às de escravidão, a FPA é contrária à maior parte dos projetos que hoje tramitam no Congresso Nacional em relação ao tema.
A lista inclui o projeto de lei 2884/2011, do deputado Dimas Fabiano (PP-MG), que obriga prévia autorização, pela Vigilância Sanitária, para o funcionamento de alojamentos rurais. Também foi tratado como prioridade a oposição ao projeto de lei 1216/2011, da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO), que atribui obrigações ao empregador rural em relação a segurança e saúde dos trabalhadores, como o fornecimento de equipamento individual. A lista inclui chapéu para proteção contra sol, óculos de segurança, luvas, calçados impermeáveis e botas especiais, a depender de cada atividade.
A lista das propostas que correm no Congresso considerada prioritária pelos ruralistas incluem, ainda, projetos que tratam de biocombustíveis, ambiente, política agrícola, biotecnologia, segurança, tributação, infraestrutura e defesa.
O encontro de ontem serviu para a formação de consensos. Além da FPA, participaram representantes da Confederação Nacional da agricultura (CNA), Confederação Nacional da Indústria (CNI), União Brasileira de Avicultura (Ubabef), Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas (Abraf), Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja) e Embrapa, entre outros segmentos.

Fonte: O Valor Econômico (22.02.2013)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Do Estado do bem-estar social ao da gestão empresarial e militarizada



por Sonia Fleury, no Le Monde Diplomatique Brasil, via 

Blog do Cebes

A sociedade brasileira vive nas últimas três décadas o desafio de construir um país democrático, a depender da retomada do desenvolvimento econômico compatibilizada com a efetiva redistribuição social, dentro de um quadro de estabilidade institucional.
Recentemente, o debate democrático tem se concentrado no pilar institucional, enfatizando a transparência e o arranjo entre os poderes da República, como se as questões culturais e redistributivas já estivessem equacionadas.
Ao contrário, constata-se que está havendo uma transmutação regressiva do social, com a presença de valores conservadores, uma articulação nefasta entre política e moralismo religioso, além do incentivo ao empreendedorismo individual e ao consumismo, em detrimento de formas solidárias de sociabilidade e da existência de mecanismos institucionais de proteção social pública.
Esse movimento tem nos afastado cada dia mais dos ideais de democracia social que foram corporificados no texto constitucional. Essa transformação vem sendo feita sem alarde, mas com grande impacto, pois tem sido capaz de transformar o projeto original do Estado de bem-estar social (welfare state) em um Estado de gestão empresarial e militarizada (warfare state), cujas consequências políticas e sociais estão por ser avaliadas.
A construção da democracia brasileira tem como  marco a Constituição Federal de 1988, em que se corporificou um projeto de democracia social que respondia aos anseios societários de construção de uma nova institucionalidade sob o primado da justiça social.
O desafio de promover a inclusão social e a redistribuição de renda em uma das sociedades com maior nível mundial de desigualdade teve de enfrentar vários entraves, mas contou com a organização da sociedade civil em torno da reivindicação de direitos sociais e da construção de sistemas universais de proteção social, estruturados de forma descentralizada e participativa como requisitos fundamentais para a universalização da cidadania.
Com a criação da Ordem Social, pela primeira vez os direitos sociais deixavam de ser subsumidos no capítulo da Ordem Econômica, onde existiam exclusivamente como direitos do trabalhador, passando à condição de direitos universais da cidadania.
No entanto, a institucionalização desse ordenamento constitucional se deu em um novo contexto político e econômico, com o predomínio dos ditames neoliberais de supremacia do mercado e das políticas de ajuste fiscal. Tais medidas implicaram a subversão das condições necessárias ao desenvolvimento de políticas públicas que assegurassem a transformação dos direitos na lei em direitos em exercício.
Além das condições estruturais que sempre reproduziram desigualdade e exclusão social de forma persistente, concorreram para contaminar o modelo de Estado de bem-estar social desenhado para a democracia brasileira diferentes ordens de limitantes.
Entre eles destacamos fatores culturais, com o predomínio dos valores individualistas e de consumo; ideológicos, com a valorização da lógica do mercado como melhor provedor de bens coletivos; políticos, fruto de um sistema organizado como presidencialismo de coalizão, o que terminou por aprisionar os partidos mais modernos na velha dinâmica de barganha de prebendas em troca de lealdade dos setores conservadores e religiosos, majoritários no Congresso; administrativos, em função da deterioração dos salários do funcionalismo público, perda de quadros qualificados e opção pela substituição de prestadores públicos por provedores privados; e econômicos, com a subordinação da política econômica à dinâmica especulativa financeira e às necessidades de controle inflacionário, o que se traduziu na adoção de elevadas metas do superávit fiscal ao lado da manutenção de altíssimas taxas de juros.
Ambas as medidas foram responsáveis por aumento do déficit público e redução do investimento, impacto negativo na atividade industrial, aumento da taxa de desemprego, além da incapacidade estatal de financiamento das políticas sociais.
A resultante da busca de construção de uma democracia social em condições tão adversas é hoje não apenas uma questão teórica em aberto, mas inspira também, no Brasil, as lutas políticas de resistência ao desmantelamento da proposta constitucional e a busca de novas estratégias de institucionalização das políticas sociais em situações desfavoráveis. Ainda assim, muitos preceitos já foram desconstitucionalizados, em especial na área dos direitos previdenciários, que impõe custos mais elevados ao governo e aos empresários.
O financiamento da seguridade sempre foi alvo de disputas e tensão, já que a destinação de fontes específicas para a formação de um orçamento completamente separado do orçamento fiscal e integrado apenas pelos gastos com previdência, saúde e assistência nunca foi efetivamente cumprida.
Houve também uma reversão das prioridades desde as políticas universais em prol de novas políticas do tipo focalizadas, gerando um híbrido institucional nesse campo. Enquanto isso, outras diretrizes constitucionais, apesar de mantidas, não foram regulamentadas ou suficientemente respeitadas, dando espaço a novas articulações entre Estado e mercado, em especial no caso da saúde.
Ficou assim caracterizada a existência de uma espécie de institucionalidade oculta, já que interesses mercantis passaram a circular no interior dos sistemas públicos universais, cujo desenho original foi orientado pelo princípio da desmercantilização da proteção social.
Essa condição de ocultamento da circulação de mercadorias, subsídios, lógica de gestão, compras de serviços e insumos, promiscuidade de inserções profissionais e dupla porta de entrada para usuários permite que, mesmo estando à margem da lei ou operando em suas brechas, essa institucionalidade favoreça interesses particulares em detrimento da dimensão pública das políticas sociais.
O pior efeito do ocultamento é que ele não chega a ser tematizado na agenda governamental. Essa prevalência do mercado se mantém e se amplia, mesmo diante da crise do neoliberalismo. A reação dos governos progressistas se fez sentir na busca da retomada do desenvolvimento econômico nacional, desta vez com ênfase no combate à pobreza, ainda que limitada pelo constante temor do retorno do desequilíbrio inflacionário.
Recentemente, foram tomadas medidas de políticas públicas voltadas para impulsionar o desenvolvimento, tais como: transferências de renda, distribuição de subsídios a setores industriais, aumento sustentado do salário mínimo e do crédito popular e ampliação do investimento público. Essas medidas expandiram tanto o consumo popular como a capacidade competitiva de alguns grandes grupos nacionais, fortemente apoiados por investimento público, além de seu poder de definição da agenda pública.
A redução da pobreza, fruto tanto do crescimento econômico quanto das políticas salariais e de assistência social, contribuiu para o clima de otimismo e de consolidação da institucionalidade democrática no Brasil.
Já o impacto na diminuição da desigualdade foi enfraquecido pela constante negação do acesso da população mais pobre aos serviços públicos de qualidade em áreas como educação, saúde, transporte, saneamento e moradia.
Essa mudança de rumo no contexto pós-neoliberal não se caracterizou por sua superação ou pela retomada do projeto social-democrata. O social foi traduzido constitucionalmente na década de 1980 em termos de direitos universais de cidadania a serem assegurados por um Estado democrático, descentralizado, laico, participativo e com mecanismos solidários que deveriam se traduzir em um sistema tributário progressivo e em  contribuições sociais exclusivas.
Já a ressignificação do social a partir dos anos 1990 afastou-se dos sistemas universais dos direitos sociais, onerosos para um Estado endividado, e se transmutou em políticas e programas focalizados de combate à pobreza. Políticas sociais não falam mais de direitos coletivos, mas de necessidades e riscos familiares que devem ser enfrentados por meio de transferências condicionadas de rendas mínimas.
Essa disputa de significados sobre a qualificação do social é ideológica, mas também político-institucional. Em torno desses dois modelos se articularam duas coalizões com projetos distintos de sociedade. No entanto, essa disputa não é um jogo de soma zero, envolvendo perdedores e ganhadores dos dois lados. Institucionalmente, o modelo da seguridade social da Constituição de 1988 terminou por se impor, e as políticas focalizadas deixaram de ser uma alternativa às políticas universais, encontrando sua inserção institucional no interior de sistemas de políticas sociais que têm como referente a cidadania.
Já do ponto de vista político-ideológico, a disputa foi claramente favorável às políticas focalizadas, que ganham espaço na mídia como as principais responsáveis pela atual reestratificação social que culminou com ampliação da classe média. Em vez da noção de direitos como articuladora das relações e das normas que orientam as políticas, o que qualifica o social, nesse caso, é a capacidade de consumo dessa nova classe emergente.
Compatível com uma representação de sociedade que cada vez mais valoriza o consumo e a ascensão vista da perspectiva do empreendedorismo, a agenda pública passa a ser construída predominantemente por atores poderosos, como a empreendedorismo, a agenda pública passa a ser construída predominantemente por atores poderosos, como a mídia e o mercado.
A política social adequada é vista como aquela que retira o pobre da situação-limite por meio de transferências públicas mínimas, de forma a aumentar seu poder de consumo sem desestimulá-lo ao trabalho. Sem representar também um custo demasiadamente alto para os empregadores ou comprometer o déficit público.
Ao contrário, o combate à exclusão por meio de instrumentos de crédito e transferências é associado à capacidade de ampliação do mercado nacional e à redução da vulnerabilidade da economia às crises internacionais. Porém, um novo movimento de redefinição do social começa a se configurar a partir da necessidade de enfrentamento da violência urbana e do que se convencionou chamar cidade partida, para designar a fratura social e jurídica entre as populações residentes em diferentes zonas urbanas.
Medidas pontuais, como programas de urbanização, não conseguiram modificar essa situação de apartação, e o crescimento do domínio de narcotraficantes sobre os territórios das favelas terminou por gerar um medo generalizado, aumentado pela sensação de perda de controle estatal sobre a cidade, barbarizada pelas guerras entre facções de traficantes rivais.
O investimento da cidade do Rio de Janeiro em uma nova inserção internacional, disputando e vencendo a postulação para sede dos megaeventos, terminou por comprometer os três níveis governamentais com a urgência de equacionamento do problema da violência urbana, pelo menos na área mais rica e turística. A ocupação militar permanente de algumas favelas em posições estratégicas passou a ser adotada nos últimos anos, sob o nome de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Essa política de ocupação das favelas foi fortemente ancorada no apoio de grupos empresariais, na sua formulação, financiamento e execução. Ela tem prioritariamente um componente repressivo, militar e policial, que busca garantir a ocupação e o domínio estatal desses territórios e o controle sobre suas populações. No entanto, seu direcionamento é para a reforma urbana que se está processando rapidamente, com maciços investimentos públicos e privados, e grandes especulações na área de construção civil e imobiliária.
Já o componente social é representado por uma miríade de ações de órgãos, governamentais e não governamentais, que buscam capacitar a população da favela para uma melhor integração à cidade. O foco deixa de ser o pobre e suas necessidades básicas para se deslocar para o território com sua aglomeração habitacional subnormal e para a população favelada, cuja sociabilidade é tida como incompatível com a ordem e a formalização essenciais à vida na cidade.
O social é concebido como processo de aquisição de habilidades necessárias ao ordenamento dos comportamentos, das moradias, da sexualidade, dos laços familiares e comunitários, das expressões culturais. Os programas e atividades sociais visam ocupar os jovens e adolescentes para evitar que caiam na criminalidade, vista como fruto do ócio, e educar os demais no papel de consumidores e cidadãos que cumprem seus deveres de formalização e pagamento de impostos e serviços, além de capacitá-los para que possam desenvolver habilidades empresariais e, no caso de alguns, inserir-se de forma vantajosa no mercado.
A integração urbana toma a forma de inserção no mercado, na medida em que a própria cidade passa a ser concebida como mercadoria. O ideário de uma cidade participativa, que era parte do projeto de democracia social, cede lugar a um imaginário de cidade que se projeta no cenário internacional, como uma mercadoria que poderá ser vendida em proveito de todos os seus habitantes. Para isso, é preciso que as políticas públicas estejam estreitamente vinculadas aos interesses dos grupos empresariais que passaram à condição de sócios privilegiados do governo.
Os benefícios atribuídos à pacificação das favelas, em relação à presença armada do tráfico, são sentidos pela população da cidade e também pelos moradores das favelas. No entanto, a opinião pública desconhece os conflitos que se apresentam no cotidiano das favelas, onde a ordem repressiva passa a predominar sobre qualquer ordenamento jurídico existente, transformando essa conquista em um tipo de Estado de exceção, cidade de exceção, cidadania de exceção.
Mas é preciso reconhecer que esse modelo decisório sem transparência, participação ou controle social é um modelo de gestão autoritária, que mina as bases da recente construção democrática brasileira, onde regime de exceção vira regra.
Sonia Fleury é doutora em Ciência Política, professora titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape/FGV), onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública (Peep), ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e membro da Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do Século XXI.
Fonte: http://www.viomundo.com.br/

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Da Alienação à Emancipação


Alienação, fenómeno transversal e intrínseco a todas as sociedades humanas constituídas sob uma relação de poderes, destronador da essência humana, desvirtuando-a pelos caminhos tortuosos da ignorância. Pode a alienação ser voluntária ou forçada, ou ambas simultaneamente? É plausível a admissão de uma auto-alienação? A nossa perspetiva leva-nos a abdicar de uma posição idealista, assente num carácter individualista e reducionista, procurando uma resposta assente sob uma análise sistémica e societária, gerada por uma correlação de forças.
A dialéctica heraclitiana e hegeliana, materializada em Marx, contêm em si os alicerces explicativos de tal fenómeno. No século XVI, Étienne La Boétie, autor menosprezado por diversas comunidades científicas, surge como um dos primeiros estudiosos do comportamento das massas, em que a servidão voluntarista dos súbditos determina o comportamento arbitrário dos tiranos. Para o autor, todas as civilizações humanas consubstanciadas por relações de poder evidenciam a submissão e a passividade das massas.
Marx, nunca esquecendo as influências transatas, identificaria múltiplas formas de alienação, essencialmente a interação que o operário estabelece na estrutura de produção das sociedades capitalistas. Toda esta perspetivação e identificação do presente fenómeno apetrecha-nos de um manancial de ferramentas, no sentido de lidarmos com este cancro social e das vísceras que compõem o totalitarismo racionalista, fundamentado por uma lógica que tem vindo a dar mostras de irromper no espectro sócio-político, como é identificável no vocabulário de Zamiatine.
A realidade distópica que brota deste liberalismo que visa preencher a nossas vidas e as nossas sociedades, abraça a alienação como a sua grande arma. Desde a massificação dos costumes, passando pela formatação ideológica ou padronização dos hábitos, culminando numa arregimentação das massas humanas constitui a oferta política da reação dos nossos dias. Apregoam por uma transparência democrática, mas na realidade esta Democracia de classe, burguesa, nada mais é do que uma cartelização da vida partidária que brota num controlo estatal e toda a vida pública.
A comunicação social, controlada pelas forças do poder vigente, é uma máquina de processamento da alienação, afastando a essência do pluralismo, de que eles se vangloriam como sendo os arautos. Passividade, o homem passivo é aquele que garante o aprazimento dos interesses plutocratas e partidocratas (entenda-se a forças que constitui a cartelização partidária, Partido Cartel), sendo que essa passividade é cultivada pelas sementes do hábito, como defendia o francês La Boétie, na constituição da servidão pelas massas acríticas.
O grande ponto de viragem consiste na reabilitação das nossas capacidades: Serão os nossos órgãos de informação veículos de debate, pluralismo, reflexão e garantes de uma igualdade de acesso de todos os cidadãos a esses devidos meios de comunicação? As nossas Universidades, detêm nos dias de hoje, uma função de cultivação da fruição intelectual, reflexão e aprendizagem ou por sua vez, perfazem-se no sistema mercantil, apresentando-se como estruturas organizadas para sustarem interesses classistas?
Perante submissões ilegítimas, devemos afastar-nos do covil perpetrado pelas forças usurpadoras, tal como a raposa recusa aceder ao convite envenenado do leão para entrar no seu covil. A palavra de ordem, a emancipação das sociedades humanas perante esta tremenda "desnaturalização do homem", deve passar por uma Sociedade Civil fortalecida, incremento da Democracia Local, Democracia de Proximidade, valorização das comunidades locais e da sua participação nos afazeres da coisa pública, enfim, utilizar a arma do inimigo contra ele mesmo, o hábito. O instinto social e organizacional do ser humano é um princípio ordenador, já cultivado, baste reerguê-lo e completá-lo na sua plenitude, desfazendo este individualismo grosseiro, selvagem e ignóbil que pretendem impingir-nos.
Tiago Ramalho
Fonte: http://acomuna.net

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A história secreta da renúncia de Bento XVI

"Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral". 

O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.

Paris - Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama “uma continuidade pesada” de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um informe elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de dinheiro. O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.
Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.
O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da verdade”. Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha ideia é trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica.
A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.
Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.
Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.
Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norteamericano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.
João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.
Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por supostas “irregularidades” em sua gestão. Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro. Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários, construtores e altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.
Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um “documento” que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.  (Tradução: Katarina Peixoto)
Fonte: http://www.cartamaior.com.br

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Os verdadeiros rostos do terrorismo em África

por Komla Kpogli
 
Recursos africanos. Dizem-nos agora que o terrorismo ameaça a África e que em nome da luta contra o mesmo trava-se actualmente uma "guerra humanitária" no Mali. Examinemos o que é realmente o terrorismo sob os trópicos.

Após quatro séculos de razzias negreiras transatlânticas e árabo-muçulmanas e mais de um século de colonização, as populações africanas entraram em luta pela sua libertação. Mas estas lutas foram curto-circuitadas e os seus condutores logo assassinados e substituídos por fantoches sanguinários cuja única missão é confirmar a manutenção do continente na órbita daqueles que investiram para privá-lo de todos os seus recursos – a começar pelos recursos humanos que, depois terem servido nos campos de algodão, nas minas, nos estaleiros de obras longe da África, devem continuar a trabalhar para o seu bem-estar agora no próprio continente. Sob o controle de vigilantes vestidos com fato e gravata, tal como o mestre.

Infelizes os povos governados por escravos seleccionados e libertos para as necessidades da causa pelos mestres que os vestem à sua imagem, criando nestes "vigilantes" a ilusão de que se tornaram seus iguais. O poder do terror que o mestre atribuiu a estes contramestres revela-se tão destruidor que certos africanos não vacilam em lamentar abertamente a substituição do colono de olhos azuis por aqueles que, pela cor da pele, pareciam serem seus irmãos. Juventude remetida ao exílio pelo Mediterrâneo onde, se não for abatida pelos tiros dos guarda-fronteiras do Frontex , é devorada por tubarões, predação, avidez, desprezo para com as populações, violência incessante, destruição metódica de toda ideia voltada para o endógeno... eis alguns dos métodos de governo dos sátrapas.

Aqui está um breve resumo do terrorismo de alguns dentre eles. O leitor nos desculpará não termos mencionado todos. É por falta de espaço e nenhuma outra razão. Assim, o leitor é convidado a completar a lista, mesmo a enumerar os crimes que não puderam ser mencionados aqui.

1. Gnassingbé 1º + Gnassingbé 2º: 50 anos no poder no Togo, pelo menos 50 mil mortos directos por violências militar-policiais. Assassinato de Sylvanuys Olympio e a seguir o retorno do Togo ao regaço da França, pelo menos 100 mil togoleses mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFS, cooperação suicida, ausência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

2. Bongo 1º + Bongo 2º: 46 anos no poder no Gabão, pelo menos 20 mil mortos directos, pelo menos um milhão de africanos no Gabão mortos de diversos modos (financiamento de partidos políticos em França, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, ausência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

3. Paul Mvondo Biya : no poder nos Camarões desde há 31 anos, no mínimo 40 mil mortos directos, pelo menos um milhão de africanos do território dos Camarões mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

4. Blaise Compaoré: Assassino de Thomas Sankara , de Norbert Zongo e seus companheiros, no poder desde há 26 anos, pelo menos 15 mil mortos directos, no mínimo um milhão de africanos do Burkina Faso mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

5. Denis Sassou Nguesso (República do Congo): criminoso reincidente que totaliza 29 anos no poder, pelo menos 100 mil mortos directos por violências militares e policiais, saqueadores profissionais de fundos públicos com a sua família e clientes, pelo menos um milhão de africanos mortos de diversas maneiras (crimes económicos, manutenção do Franco CFA, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

6. Omar Guelleh: no poder no Djibuti desde há 14 anos, mesmos crimes que os terroristas antecedentes.

7. Idriss Deby: no poder no Tchad desde há 23 anos, mesmos crimes que os antecedentes.

8. Alassane Dramane Ouattara (Costa do Marfim): no poder desde há um ano, criminoso com o FMI onde dirigiu directamente o Planos de Ajustamento Estruturais. Chegou à presidência transportado nos carros de combate e bombardeiros franceses, acompanhados de terroristas dirigidos por Guillaume Soro desde há 10 anos, pelo menos 30 mil mortos directos, no mínimo 50 milhões de africanos mortos via FMI e Banco Mundial a quem Ouattara serviu + crimes económicos, manutenção do Franco CFS, cooperação suicida, inexistência de infraestruturas de base de saúde, ausência de água, decadência mental colectiva sabiamente mantida...). Torturas + Manutenção das fronteiras coloniais + Escola colonial + fraudes eleitorais incessantes + Oposição e populações submetidas a um terrorismo permanente + Sabotagem da cultura africana.

Etc, etc. Todos estes terroristas beneficiam do apoio logístico, intelectual e mediático da França, bem como de outros "Amigos da África" que não hesitam em combater directamente nas suas costas contra os africanos que actualmente "salvam" no Mali do terrorismo que corta mãos e pés. Quem libertará os africanos dos terroristas?
18/Janeilro/2013
Ver também:
  • A guerra no Mali
  • No African Union troops to Mali
  • Pentagon’s Hand Behind French Intervention in Mali

    O original encontra-se em http://lajuda.blogspot.com/ e http://www.legrandsoir.info/les-vrais-visages-du-terrorisme-en-afrique.html


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • O PCF e a guerra no Mali

    por Greg Oxley [*]
    Cartoon de Latuff. A intervenção militar no Mali envolveu a França numa nova guerra imperialista. Por trás das motivações oficiais, esta visa garantir e estender as posições económicas e estratégicas do capitalismo francês naquela região. Além dos seus recursos naturais – actuais e potenciais –, o Mali, terceiro produtor africano de ouro, está rodeado por vários países em que grandes grupos franceses, como a Total e a Areva, estão fortemente implicados. O grupo Areva encontra no Níger um terço das suas necessidades de urânio. A Total explora o petróleo da Mauritânia. O capitalismo francês domina a Costa do Marfim. Com as suas vastas reservas de gás e de petróleo, a Argélia é o primeiro parceiro comercial da França na África. São sobretudo os interesses dos grandes grupos franceses nestes países vizinhos que fazem do Mali uma aposta estratégica importante do ponto de vista do imperialismo francês.

    François Hollande saudou a aprovação "unânime" desta guerra tanto na Assembleia Nacional como no Senado. A UMP (direita) e a Frente Nacional (extrema direita) aprovam-na. O Partido Socialista também aprovou. Mas Hollande também pôde contar com o apoio da direcção do nosso próprio partido, o PCF, o que chocou numerosos militantes comunistas. Esta decisão, como em 2001, aquando da invasão do Afeganistão, associa o partido à política imperialista da França diante da opinião pública. Ela vai contra a tradição anti-imperialista e antimilitarista do PCF.

    A verdade é a primeira vítima de uma guerra imperialista. A dissimulação dos verdadeiros objectivos das guerras é de importância vital para os imperialistas. O primeiro dever do movimento operário – e do nosso partido em particular – é explicar as suas verdadeiras causas e objectivos. Quanto à guerra no Mali, a direcção do nosso partido fracassou neste dever.

    Uma guerra contra o fundamentalismo?

    Segundo o governo francês, a intervenção em Mali justificava-se pela ameaça iminente da tomada de Bamaco [a capital] por "fundamentalistas islâmicos". Oficialmente, a intervenção visava portanto bloquear o avanço das milícias islâmicas, destruí-las e proteger assim a população dos seus abusos. Motivações tão nobres são dificilmente criticáveis. O problema é que a explicação oficial é uma farsa. Serve só para mascarar os verdadeiros objectivos desta operação. Cada vez que as potências imperialistas lançam uma guerra, armam-se de pretextos "humanitários" deste género: a guerra contra a Sérvia era para proteger os albaneses, os Estados Unidos invadiram o Iraque para proteger os xiítas e o Afeganistão para proteger a mulher afegã e erradicar o terrorismo; a guerra na Líbia visava impedir um massacre iminente da população de Bengazi. Deveríamos por isso apoiar estas intervenções?

    No Mali, a França estaria em guerra contra o jihadismo e a intervenção responderia a um pedido do regime local. No entanto, este regime é uma ditadura militar, culpada, também ela, de numerosos abusos e assassinatos. Mas o governo dá a entender que, em comparação com os jihadistas, a ditadura militar seria um "mal menor". Em contraste, na Líbia, a aviação francesa – em aliança com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos – apoiou fortemente milícias jihadistas para derrubar a ditadura de Kadafi. As potências ocidentais coordenaram seus ataques para facilitar os movimentos em terra de grupos como o de Abdel-Hakim Belhaj. Ligado à Al Qaeda, Belhaj tomou o controle de Tripoli após a derrota das forças de Kadafi. Naquela época os media apresentavam-nos estes jihadistas não só como o "mal menor", mas até como autênticos "revolucionários"!

    Na Síria, o alinhamento de forças é comparável àquele que prevaleceu durante a guerra na Líbia. Aqueles que os media nos apresentam como "revolucionários" são, no essencial, financiados, armados e enquadrados por agentes da Arábia Saudita e do Qatar. O mesmo François Hollande que justifica a guerra no Mali pela necessidade de bater o "fundamentalismo" faz ao mesmo tempo sermões a favor de uma intervenção militar na Síria a fim de apoiar as milícias fundamentalistas. Ele já concedeu o reconhecimento diplomático da França ao Conselho Nacional Sírio (CNS), cujo componente dominante é nada menos que a Irmandade Muçulmana.

    Assim, a França imperialista – da qual Hollande não é senão o executante – não se opõe por princípio ao "fundamentalismo islâmico". Ao contrário, não hesita em apoiar fanáticos fundamentalistas quando isso pode beneficiar seus interesses. Em outras circunstâncias, o imperialismo francês poderia apoiar os jihadistas no Mali, chamando-os oportunistamente de "rebeldes" ou "revolucionários", contra o regime de Bamaco. Mas, neste caso, a guerra actual no Mali é conduzida no interesse dos grandes grupos capitalistas franceses e para contrariar as ambições de seus rivais, nomeadamente, nesta região, o Qatar, que financia milícias (Mujao e Ansar Eddine) para expandir a sua zona de influência e fortalecer a sua posição em futuras "negociações". A intervenção francesa é apoiada pela Arábia Saudita que, apesar de armar e financiar movimentos fundamentalistas por todo o mundo, quer travar a expansão dos interesses do Qatar na África do Norte. O Qatar reforçou consideravelmente as suas posições na Líbia, no Egipto e na Tunísia.

    Para tentar justificar a sua posição, a direcção do PCF explica que quaisquer que sejam nossas análises sobre os objectivos reais da intervenção, esta ainda assim permitiu repelir as milícias fundamentalistas, bloqueando seu avanço rumo à capital e libertando várias cidades que estavam sob o seu controle. Estes são factos que ninguém pode negar. Mas o reconhecimento desta realidade não esgota a questão. Se considerarmos a "protecção das populações" contra abusos, e repressões, etc, como um pretexto suficiente para justificar intervenções militares, então seria preciso apoiar e até mesmo exigir intervenções militares em numerosos países do mundo! É verdade que a intervenção francesa repeliu a milícia para o Norte, por enquanto sem grande dificuldade. Ainda que essas milícias continuem a estar omnipresentes no Mali ou alhures – e talvez, conforme as circunstâncias do momento, com o apoio da França! – O seu recuo actual é, por assim dizer, um subproduto de uma intervenção que continua a ser imperialista. Portanto, este recuo dos jihadistas não deveria justificar a caução a esta intervenção pelos dirigentes de nosso partido.

    Que fazer?

    Isso não impede que a nossa posição sobre a guerra no Mali não possa limitar-se a uma simples oposição de princípio. Muitos camaradas que são contra a intervenção ou que sentem, pelo menos, que algo "não claro" nas justificações oficiais, não querem ver o fundamentalismo propagar-se e instalar-se ainda mais, seja na África ou alhures. Opor-se à intervenção, dizem no essencial, equivaleria a permanecermos passivos perante a ameaça fundamentalista. De facto, a nossa atitude para com a guerra não pode resumir-se a uma espécie de pacifismo passivo. A guerra é um problema concreto que requer uma abordagem política também concreta. Como comunistas, precisamos de um programa de acção contra esta guerra e contra a guerra imperialista em geral, em solidariedade internacionalista com as vítimas de agressões militares – quer das milícias fundamentalistas quer dos exércitos "regulares".

    Quais deveriam ser os pontos chave do programa do PCF quanto à guerra no Mali?· Em primeiro lugar, o PCF deveria explicar que para lutar contra o fundamentalismo é preciso começar por atacar os poderosos interesses financeiros e industriais que são os principais fornecedores de armas e equipamentos das milícias, a saber, a Arábia Saudita, o Qatar e os outros países do Golfo. Na guerra contra Kadafi, os haveres do Estado líbio no estrangeiro foram apreendidos sob o pretexto de que os seus recursos iam servir para financiar massacres. Devemos portanto exigir a expropriação em França dos haveres do Qatar – e eles são consideráveis. Os sindicatos do sector bancário deveriam interessar-se pelos movimentos de capitais entre a França e os países promotores do integrismo – e torná-los públicos. O PCF deveria exigir o fim de todas as vendas de armas (aviões, fragatas, sistemas de defesa, etc) assim como a travagem dos programas de treino e outras formas de cooperação militar com os Estados envolvidos.·Nos portos, o partido e a CGT deveriam fazer campanha para convencer os trabalhadores a bloquearem todos os carregamentos militares destinados a Arábia Saudita, ao Qatar, etc. Os trabalhadores dos aeroportos deveriam bloquear os voos das suas companhias aéreas.·Finalmente, os grandes grupos capitalistas que praticam o "terrorismo económico" pilhando os recursos de Mali e que apoiam regimes corrompidos e ditatoriais em toda a África deveriam ser nacionalizados, seus dirigentes afastados, sua gestão reorganizada em bases democráticas e seus recursos utilizados para fins progressistas.

    Não esqueçamos, em meio a todos esses cálculos imperialistas, a classe trabalhadora maliana, a juventude e o conjunto do povo explorado e oprimido do país. É preciso estender-lhes uma mão fraternal e internacionalista, na base de uma política independente, ao invés de se atrelar à máquina de guerra imperialista. É aos trabalhadores do Mali que é preciso ajudar. É preciso dar-lhes os meios de se defenderem, não só contra alguns milhões de fanáticos islamistas, como também contra os elementos não menos reaccionários das forças armadas malianas. Este exército mostrou-se incapaz de defender o povo. Seus líderes são corruptos. Deve ser expurgado a partir de dentro e reorganizado em bases democráticas. Os soldados, saídos do povo e vivendo como ele, aliados aos trabalhadores de Bamaco e outras cidades, seriam o melhor baluarte contra o fanatismo armado.

    Ao defender a posição de classe e internacionalista que propomos é muito possível o PCF num primeiro momento não fosse seguido, nem em França nem no Mali. O PCF não pode dar uma solução imediata a este problema. Ninguém lhe pede isso. Mas em contrapartida o que se pode fazer, aqui e agora, é explicar os verdadeiros interesses que estão em jogo nesta guerra, dissociando-se completamente da política imperialista da França e das suas justificações falaciosas – e contribuir assim para formar a consciência antimilitarista e revolucionária dos trabalhadores, tanto em França como no Mali.

    A intervenção militar francesa não conduzirá a qualquer "estabilização", assim como não o fez na Líbia ou no Afeganistão, assim como a invasão estado-unidense tão pouco "estabilizou" o Iraque. Tanto na Europa como na África, o capitalismo não oferece nenhum futuro aos povos. Ele está na origem dos problemas que se colocam. Mais do que nunca, temos necessidade de um partido que se posicione claramente como o adversário implacável deste sistema e das suas consequências nefastas, tanto em França como no estrangeiro. Devemos nos esforçar por corrigir a política do PCF. Nosso partido deve opor-se à intervenção imperialista no Mali, na base de uma política revolucionária e internacionalista.
    02/Fevereiro/2013
    Ver também:
  • A invasão real da África não está nos noticiários , John Pilger
  • A guerra no Mali , R. Teichman

    [*] Editor do sítio web La Riposte, de militantes do PCF. O autor é um dos autores da tese "Combater a austeridade e acabar com o capitalismo" (ver texto alternativo do 36º Congresso do PCF ).

    O original encontra-se em http://www.lariposte.com/le-pcf-et-la-guerre-au-mali,1891.html


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .