domingo, 4 de outubro de 2009

LEITURA GEOGRÁFICA DO DESENVOLVIMENTO E DA RESISTENCIA CAMPONESA A PARTIR DOS CONCEITOS DE CAMPONÊS E AGRICULTOR FAMILIAR.


Munir Jorge Felício[1]
I-Introdução
Como fruto do desenvolvimento tecnológico e do avanço capitalista no campo, há desde a década de 1990, diversos trabalhos acadêmicos objetivando diferenciar o camponês do agricultor familiar como dois sujeitos distintos. Concebem o primeiro como representante do velho, do atraso e do arcaico, enquanto o segundo representa o progresso, o novo e o moderno.
O esforço deste trabalho consiste em demonstrar que esta diferença não é tão nítida como se pretende, advogando a tese de que ambos são os mesmos sujeitos vivendo em condições diferenciadas. São componentes do campesinato e resistem ao avanço capitalista por vias distintas, realidade que persiste em desafiar a Ciência a encontrar o papel e o lugar dos camponeses na sociedade capitalista.
A discussão será proposta por meio de uma leitura geográfica do desenvolvimento e da resistência camponesa presente na Região do Pontal do Paranapanema. Serão discutidos os conceitos de camponeses e de agricultores familiares, por terem a organização do trabalho familiar preponderante no território camponês tanto das famílias assentadas nos projetos de Reforma Agrária, quanto das tentativas das associações dos pequenos produtores rurais.
Por fim, o conceito de conflitualidade será responsável por propor novos questionamentos, bem como, indicar uma nova direção para as discussões sobre a importância e a função dos camponeses na sociedade capitalista, elementos que interessam ao estudo da questão agrária neste início de terceiro milênio.

II - Desenvolvimento e questão agrária: teorias e debates
A leitura geográfica aqui desenvolvida é interessante por focalizar uma região do Estado de São Paulo na qual constatam-se inúmeros conflitos fundiários envolvendo posseiros, grileiros, trabalhadores rurais e governo.

“Para compreender melhor esta questão, é preciso uma breve retrospectiva histórica da ocupação do Pontal do Paranapanema. As terras da região começaram a ser griladas desde a segunda metade do século XIX, com a formação do grilo fazenda Pirapó-Santo Anástacio, com área de duzentos e trinta e oito mil alqueires. Até a década de 1990, com exceção das lutas de resistência de posseiros e de movimentos sociais isolados, os grileiros não encontraram maiores problemas no processo político de assenhoreamento das terras devolutas do Pontal. Grilagem é o processo de apropriação de terras públicas por meio de falsificação dos títulos de propriedades. Não faltaram ações do Estado para tentar impedir esse processo de grilagem” (BERGAMASCO et. al.,2003: 81-82).
O que significa refletir sobre o desenvolvimento territorial rural num contexto como esse? Qual desenvolvimento? Desenvolvimento para quem?
O desafio de quem se põe a refletir neste contexto, poderá contar com autores que, no passado produziram interessantes pesquisas e teorias sobre desenvolvimento, como Caio Prado Júnior (1989), Alberto Passos Guimarães (1977) e Celso Furtado (1964,1974), entre outros.
Para Alberto Passos Guimarães, um determinado tipo de desenvolvimento só se implantará com sucesso se tiver força para exigir o fim da coação feudal e da coação extra-econômica sobre o trabalhador. Força para ordenar a necessária destruição dos monopólios da terra e das relações coercitivas entre o coronel e o morador agregado ou o meeiro. Força para determinar o fim de todas as relações arbitrárias dos senhores da terra e também da produção voltada exclusivamente à exportação.
Na interpretação de Caio Prado Júnior o desenvolvimento implantado no Brasil, desde o período colonial, engendrou um modelo de dependência e subordinação da economia brasileira dentro do contexto internacional do capitalismo comandado pelos seus centros financeiros. Os trustes de ontem são as multinacionais ou transnacionais de hoje a serviço do imperialismo econômico mundial.
Já Celso Furtado, ao analisar a economia brasileira, entende que o subdesenvolvimento é um aspecto do modo pelo qual o capitalismo industrial vem crescendo e se difundindo desde o seu surgimento. A introdução de inovações tecnológicas em uma cultura não se efetiva sem suscitar resistências e estas, as mais das vezes, se manifestam através de conflitos sociais. Constata que a difusão mundial do progresso técnico e os decorrentes incrementos da produtividade não tenderam a liquidar o subdesenvolvimento.
A estes três autores acrescentem-se a análise de outros dois teóricos, Frank (2005) e Oliveira (2003), para os quais, o processo de expansão socioeconômica do capitalismo no Brasil, inclusive na agricultura, vem gerando, ao longo da história, desenvolvimento e subdesenvolvimento ao mesmo tempo. São concepções como estas que corroboram nas explicações dos conflitos fundiários presentes na Região do Pontal do Paranapanema, local em que se dá a disputa política por diferentes projetos de desenvolvimento do campo.
O desenrolar dessa disputa contém os elementos básicos para o estudo da questão agrária, vez que ela se interessa pelas transformações nas relações de produção: como se produz? De que forma produz?
A questão agrária é o movimento do conjunto de problemas relativos ao desenvolvimento da agropecuária e das lutas de resistência dos trabalhadores, que são inerentes ao processo desigual e contraditório das relações capitalistas de produção. Em diferentes momentos da história, essa questão apresenta-se com características diversas, relacionadas aos distintos estágios de desenvolvimento do capitalismo. Assim, a produção teórica constantemente sofre modificações por causa das novas referências, formadas a partir das transformações da realidade (Fernandes, 2001, p. 23).

O estudo da questão agrária, principalmente a partir da década de 1990, constata o enfrentamento de dois modelos de desenvolvimento territorial rural: o modelo em construção concebido pelos movimentos camponeses e o modelo norte-americano.
O modelo norte-americano, denominado agronegócio, forma o seu espaço e ocupa o território com a lógica da concentração de terras, vez que precisa de largas faixas territoriais para a utilização adequada dos seus maquinários, alguns deles guiados por satélite, instalando assim, um enorme complexo agroindustrial de formidável produtividade.
O modelo engendrado pelos movimentos camponeses, forma o seu espaço e ocupa o território guiado por outra lógica: o seu potencial de produção de alimentos está mais na diversidade do que no produtivismo e a utilização, de forma sustentável, dos recursos naturais, cuidado do meio ambiente e de suas fontes renováveis.
Desta forma, o modelo de desenvolvimento engendrado pelos movimentos camponeses no Brasil é a reação à agressão do modelo norte-americano, que, as elites nacionais dependentes, vem implantando, desde a década de 1990, como forma de maquiar o velho latifúndio. Assim, na Região do Pontal do Paranapanema e, em dimensões nacionais, por todo o Brasil, o futuro se dá no confronto da implantação destes modelos de desenvolvimento territorial. Esse é o foco do presente trabalho, interessado em refletir e discutir questionamentos como, por exemplo: qual o papel e o lugar dos camponeses na sociedade capitalista? Até que ponto o camponês e o agricultor familiar são os mesmos sujeitos vivendo em condições diferenciadas? Quais são estas condições? Ou são componentes da mesma classe social, o campesinato, que, ao longo da história foram se diferenciando por comportarem-se de forma distinta diante do avanço capitalista no campo? O futuro do campesinato está na integração do camponês ao mercado ou na luta contra o capital?
A pretensão deste texto consiste mais em abrir espaço para discussões e debates, do que apresentar definições e respostas conclusivas.

III - Os camponeses, os agricultores familiares: paradigmas em questão.
Desde a década de 1990 os conceitos de camponês e agricultor familiar sofreram profundas alterações as quais têm desencadeado pesquisas acadêmicas em diversas áreas. Na área da Geografia, a análise de duas produções acadêmicas, uma de 1990 e outra de 2000 poderá, de forma preliminar, colocar o problema em questão.
No trabalho científico de Silveira (1990, p.231), sua análise demonstra
uma gama muito grande de tipos de camponeses que vai desde aquele que racionaliza ao máximo sua produção, que está ligado a cooperativas, e tenta ajustar-se às necessidades do mercado, minimizando ao máximo seus riscos, até o posseiro, com condições mínimas de existência, que as vezes planta para ter o que comer.
Verificando os conceitos utilizados pela pesquisadora, constata-se uma mistura muito grande impedindo o esclarecimento e a compreensão.
No trabalho científico de Hespanhol (2000) há a refutação do conceito de camponês, pelo fato dele ter perdido o seu poder explicativo e ser substituído pelo conceito de agricultor familiar. Ela afirma:
que a utilização na década de 1990, da categoria de análise agricultura familiar para designar genericamente as unidades produtivas, nas quais a terra, os meios de produção e o trabalho encontram-se estreitamente vinculados ao grupo familiar, deve ser aprendida como um reflexo das alterações recentes ocorridas na agricultura brasileira e que, em última análise, levaram a valorização do segmento familiar. Nesse sentido, as categorias de análise até então utilizadas para caracterizarem essas unidades de produção, como campesinato, pequena produção, agricultura de subsistência, produção de baixa renda, entre outras, perderam seu poder explicativo, favorecendo à emergência de novas concepções teóricas consubstanciadas na categoria agricultura familiar (HESPANHOL,2000, p.2).

Ocorre que a pesquisadora optou por
restringir o foco de análise, às formas tradicionais de acesso à terra, representado pelos pequenos proprietários e arrendatários que, conduzindo diretamente as atividades e utilizando predominantemente mão de obra familiar (HESPANHOL,2000, p.3).

Esta opção é responsável pelo desaparecimento dos demais camponeses como, por exemplo, os posseiros, os agregados, os moradores, os rendeiros, os assentados, os acampados, etc...
As duas análises proporcionam vir à tona questões como: quais as principais alterações ocorridas no campo no decorrer dos últimos vinte anos? Qual a participação da produção agropecuária do agricultor familiar e do camponês no total da produção no Pontal do Paranapanema? Quais os impactos da luta pela terra na organização sóciopolítica da região? Como compreender a família como unidade doméstica de produção?
Trata-se de estudar, discutir e compreender as relações sujeito-espaço analisando as ações dos dois sujeitos: o camponês e o agricultor familiar. As Ciências Humanas não conseguiram delinear ainda, de forma satisfatória, as diferenças entre eles.
Diversos teóricos com diferentes concepções construíram inúmeras interpretações de realidades, nas quais as ações destes sujeitos podem ser identificadas. Em tais interpretações encontram-se teorias que indicam direções diferentes, compreendendo, desde a eliminação do camponês, como fruto do avanço capitalista, até sua capacidade de luta e resistência responsáveis pela criação e recriação do campesinato.
Lênin (1980;1985), por exemplo, ao discutir o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e nos Estados Unidos, explica o processo de exploração e destruição do campesinato e a eliminação do camponês, como fruto do avanço capitalista. Para ele o trabalho familiar de fato não existe no campesinato. É pura ilusão. Tudo acaba sendo cooptado pelo capital.
A expressão fundada no trabalho familiar é um termo oco, uma frase declamatória sem qualquer conteúdo, que contribui para confundir as mais diversas formas sociais da economia, beneficiando apenas a burguesia. Essa expressão induz ao erro, ilude o público, levando-o a acreditar na não-existência de trabalho assalariado (LÊNIN, 1980, p.18).

O capitalismo utiliza enorme diversidade para atingir seu objetivo na agricultura e todos os recursos disponíveis são usados para crescer e se desenvolver.
Kautsky (1986) entende que a reprodução do campesinato com o seu trabalho familiar era resultado de um processo de auto-exploração que se aproximava da barbárie. A presença do trabalho familiar camponês significava o atraso econômico e social presente neste meio, pois
em geral sempre desconfiado, o seria em particular diante da organização, porque as condições atuais de seu trabalho e de sua vida o isolam ainda mais do que o artesão, desenvolvendo menos que neste as virtudes sociais (KAUTSKY, 1986:148).

O pequeno proprietário ou arrendatário que cultiva com sua família o seu pedaço de terra é ainda proprietário de seus meios de trabalho, representa, assim um vestígio de um modo de produção próprio de épocas passadas.
Ao estudar a unidade econômica camponesa Chayanov (1974) quer de fato averiguar a força de trabalho familiar como atividade econômica no campo e não a produção deste campo. Assim,

se queremos tener un simple concepto organizativo de la unidad de explotación doméstica campesina independiente del sistema econômico em el cual está insertada, inevitablemente deberemos basar la compresion de su esencia organizativa en el trabajo familiar (CHAYANOV, 1983-34).

Em tal unidade doméstica de exploração não existe a força de trabalho assalariado e por isso difere da unidade de exploração capitalista.
Além de analisar as relações entre terra, capital e família; a circulação do capital na unidade econômica camponesa, Chayanov analisa também as conseqüências que, para a economia nacional, surgem da natureza desta unidade econômica. Cada família conforme sua idade constitui em suas diferentes fases um aparato de trabalho completamente distinto de acordo com sua força de trabalho, a intensidade da demanda de suas necessidades, a relação consumo-trabalho e a possibilidade de ampliar os princípios da cooperação complexa.
A unidade doméstica camponesa, na compreensão de Shanin (1983) consiste na família e na sua exploração agrícola. A família fornece o trabalho necessário principalmente à produção de subsistência para satisfazer suas necessidades básicas e os tributos impostos pelos poderes econômicos e políticos. Era uma comunidade de mesa, antes de ser uma comunidade de sangue, sob a autoridade patriarcal,
una unidad doméstica campesina rusa estaba compuesta, en la mayoria de los casos, por familiares consguineos de dos ou tres generacines. Sin embargo, la condicion básica para convertirse en miembros de la misma no era el vinculo de sangre, sino la participacion total en la vida de ésta, o, en expresion de los campesinos, ‘comer del mismo puchero. (SHANIN, 1983:55).

A unidade doméstica camponesa era uma unidade básica de produção, consumo, posse, socialização, sociabilidade, apoio moral e ajuda econômica mútua.
Em uma perspectiva diferenciada, Abramovay (1992) discute o camponês e a sua forma familiar de organizar o trabalho, não mais como simples “modo de vida”, e, sim como profissão. O mercado oferece condições para profissionalizá-lo, convertendo-o em agricultor familiar cada vez mais integrado e, como novo personagem, racionaliza ao máximo sua produção,
é o que ocorreu de maneira intensa no sul do Brasil – integram-se plenamente a estas estruturas nacionais de mercado, transformam não só sua base técnica, mas sobretudo o círculo social em que se reproduzem e metamorfoseiam-se numa nova categoria social: de camponeses, tornam-se agricultores profissionais. Aquilo que era antes de tudo um modo de vida converte-se numa profissão, numa forma de trabalho (ABRAMOVAY, 1992:126-127).

Nesta mesma perspectiva alinham-se, entre outros, autores como Martins (2001), Wanderley (2001) e Neves (2005), esta última defendendo a hipótese de que o agricultor familiar é “um agente em construção, é um devir, é um emblema instituinte de representações sobre modos de organização da sociedade” (NEVES, 2005 p. 22-23).
Marques (2004), por sua vez, advoga que, por intermédio de seu trabalho, a família camponesa está apenas “perifericamente” vinculada às tramas do mercado, diferenciando assim, da família operária, que, pelo trabalho assalariado, o operário estabelece relações de dependência com o capital, pois, por esse trabalho está assegurada a sua sobrevivência. Enquanto que,

para o camponês, o trabalho se realiza de forma independente e o que ele vende ao capital é o fruto de seu trabalho transformado em mercadoria. Assim, o trabalho não aparece como coisa em si, separada do produto que dele resulta. Por seu trabalho ser independente, sua vida está apenas perifericamente vinculada às tramas do mercado, embora, na maioria dos casos, essa relação venha se adensando crescentemente (MARQUES, 2004 p.152).

Por conseguinte, a família camponesa por produzir seus próprios meios de subsistência, tem condições de suportar melhor os confrontos e os embates na defesa da terra e da vida.
Estas teorias, se agrupadas, configuram duas correntes distintas na analise da questão agrária advogando teses diferentes. Se, de um lado, agrupam defesas do desaparecimento do campesinato, por outro lado, há também quem defenda que, o campesinato não só não desapareceu, mas permanece com força produtiva respeitável desafiando teorias e teóricos a explicar tal paradoxo.
Esse trabalho insere-se nessa discussão aliando-se àqueles que entendem que o campesinato não desapareceu, vez que sua presença e atuação indicam a necessidade de compreensão do papel e do lugar dos camponeses na sociedade capitalista.
O presente trabalho procura compreender o papel e o lugar dos camponeses a partir da análise da realidade sóciopolítico da região do Pontal do Paranapanema discutindo o desenvolvimento da agricultura no capitalismo e, dentro deste quadro, entender a agricultura familiar, conceito presente desde a origem do campesinato, sendo responsável por explicar que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Desta feita o camponês só pode ser agricultor familiar.

IV – Desenvolvimento e conflitualidade: entre a resistência e a submissão.
Analisar a produção, o trabalho e a ocupação do território nas terras do Pontal do Paranapanema não é preocupação recente, como indicado anteriormente, nas duas produções acadêmicas: de Silveira (1990) e Hespanhol (2000), por contemplarem, em suas análises, a questão agrária e, nela, o trabalho familiar.
Silveira (1990) investiga a especificidade da produção familiar camponesa como componente da produção econômica na Região do Pontal do Paranapanema, dentro da qual ocorre um processo de desterritorialização e reterritorialização com as ações de desapropriações e implantações de projetos de assentamentos e reassentamentos.
Hespanhol (2000) entende que as expansões de formas capitalistas de produção no campo levaram parcela considerável desses produtores a expropriação de seus meios de produção. Isso provocou uma grande diversidade de unidades produtivas que, não obstante as enormes diferenças de ordem econômica, social, cultural e política que as caracterizam, apresentam em comum, o fato de terem a terra, o trabalho e a família vinculados.
Assim sendo, as famílias camponesas que exploram as terras do Pontal do Paranapanema possuem pelo menos duas características comuns: a de ocupar o mesmo e determinado tipo de território: o território camponês, e, de organizar a produção tendo o trabalho familiar predominante. Desta perspectiva, contrariando a tese de Abramovay (1992), é possível afirmar que não há como diferenciar o camponês do agricultor familiar, pois são os mesmos sujeitos vivendo em condições diferenciadas.
Nos assentamentos da Reforma Agrária, implantados na Região do Pontal do Paranapanema nos últimos vintes anos, dão conta de que a história da família assentada, quase na sua totalidade, contém, entre outras informações, suas angustias e esperanças na luta pela terra. Anos de espera nos acampamentos e nas ocupações e reintegrações de posse. Marchas, ocupações de prédios públicos, atos públicos utilizados para demonstrar à sociedade a real situação de quem vive na e da terra.
Nas pequenas propriedades rurais, nos últimos vinte anos, a história da família, contém suas angustias e esperanças nas tentativas de se organizarem em associações de pequenos produtores rurais, como forma de permanecer na roça. A Associação dos Pequenos Produtores Rurais (APPR) não deixa de ser uma forma de resistência por procurar uma alternativa diante do avanço do capitalismo como demonstram, por exemplo, os dados atuais da APPR do Bairro Palmitalzinho e da FARAM do município de Alvares Machado (SP).
A APPR do Bairro Palmitalzinho possui 37 filiados entre pequenos proprietários de Regente Feijó e Anhumas. São propriedades de tamanho variados de 15 até 110 alqueires. A sede da associação se localiza no bairro rural do Palmitalzinho e disponibiliza aos associados uma máquina beneficiadora de café; um trator MF 265 equipado com uma plantadeira (para lavoura branca); um micro computador com Internet; uma unidade abastecedora de óleo diesel. Esses bens pertencem aos associados em sistema de cotas.
Seus principais produtos são leite, café, feijão, milho e algodão, além da engorda de suínos para o consumo familiar e da horta.
A análise dos seus quinze anos de existência não autoriza dizer que seus associados conseguiram proporcionar um pujante desenvolvimento, pois, além do uso comum dos equipamentos citados acima, os proprietários se unem uma vez por ano para a compra coletiva do adubo. Juntos conseguem melhor preço do que individualmente.
A FARAM do município de Álvares Machado (SP) é a extinta Federação das Associações Rurais de Álvares Machado que chegou congregar 10 APPRs daquele município, que, num universo de 805 pequenas propriedades de até 50 hectares, essa federação congregou metade delas. Nada desprezível.
Hoje a FARAM está juridicamente constituída, mas deixou de funcionar. Em outras palavras, existe no papel, mas não na prática. Para montar a estrutura física e administrativa há recursos do governo estadual e federal, porém os agricultores não conseguiram mantê-la em exercício, em virtude do seu alto custo de funcionamento. Como informou um agricultor: “Não conseguimos manter a máquina funcionando” (depoimento do Sr. João Vitorino de Moura, ex-integrante da FARAM)
A luta pela terra nos assentamentos da Reforma Agrária e as iniciativas das associações dos pequenos produtores rurais do Pontal do Paranapanema configuram os resultados do modelo de desenvolvimento territorial rural que vem sendo implantado pelas elites dependentes neste país. Modelo que privilegia o latifúndio em detrimento das unidades menores de produção, acirrando a luta de classes e o conflito entre a territorialidade capitalista e a territorialidade camponesa.
Neste contexto, a pequena produção cuja organização tem como preponderante o trabalho familiar é atividade secundária, periférica e acessória (Wanderley, 2001). São os

... pequenos agricultores que, ao longo do tempo, gravitaram marginalmente em torno da agricultura de exportação e de suas crises e vicissitudes. Nunca no centro dos projetos nacionais (MARTINS, 2001).

Contudo, a cada ano, a cada safra os resultados demonstram o paradoxo que se instalou nos campos do Brasil, pois as pequenas unidades de produção são responsáveis pelos melhores índices:

1. Em 2003, o PIB da Agropecuária Familiar cresceu 14,31% em relação ao ano anterior. Esse valor é superior ao crescimento do PIB da Agropecuária Patronal (11,08%).
2. Em 2003, o PIB das Lavouras da Agricultura Familiar cresceu 18,41% em relação ao ano anterior. Esse valor é superior ao crescimento do PIB das Lavouras da Agricultura Patronal (14,61%). (apud. FERNANDES, 2005a p. 52).

Como compreender isso? Qual a função do trabalho familiar dentro desta conjuntura? O futuro do campesinato está na sua integração ao mercado ou na luta contra o capital?
Esse entendimento é mais bem construído se se partir de uma visão crítica e comprometida com a transformação da realidade, aprofundando e ampliando a discussão numa perspectiva que confronte o pensamento consensual. Nesta perspectiva torna-se indispensável à construção da análise que contemple de forma inerente à dimensão da conflitualidade.
Conflitualidade é um conceito que, recentemente, vem sendo utilizado para a leitura e interpretação da realidade atual dentro da questão agrária conforme Fernandes (2005 a; 2005 b); Gonçalves (2005) e Santos (2004). São contribuições que corroboram para a compreensão de realidades como a violência no campo, a criminalização da luta pela terra, a violência do Poder Público e privado (Comissão Pastoral da Terra, 2004).
A conflitualidade é o processo de enfrentamento perene alimentado pela contradição estrutural do capitalismo que produz concentração de riqueza de um lado e expande a pobreza e a miséria do outro. Ou, como dito anteriormente, o capitalismo produz desenvolvimento e subdesenvolvimento simultaneamente.

Um conflito por terra é um confronto entre classes sociais, entre modelos de desenvolvimento, por territórios. O conflito pode ser enfrentado a partir da conjugação de forças que disputam ideologias para convencerem ou derrotarem as forças opostas. Um conflito pode ser ‘esmagado’ ou pode ser resolvido, entretanto a conflitualidade não. Nenhuma força ou poder pode esmagá-la, chaciná-la, massacrá-la. Ela permanece fixada na estrutura da sociedade, em diferentes espaços, aguardando o tempo de volta, das condições políticas de manifestações dos direitos. [...] Os acordos, pactos e tréguas definidos em negociações podem resolver ou adiar conflitos, mas não acabam com a conflitualidade, porque esta é produzida e alimentada dia-a-dia pelo desenvolvimento desigual do capitalismo. (FERNANDES, 2005a:26).

Gonçalves (2005) elenca alguns elementos para compreender a reprodução continuada da conflitividade e da violência no campo brasileiro que aqui serão sucintamente reproduzidos. São eles:
a) além da violência física, há a violência simbólica praticada pela imprensa, omitindo informações e veiculando uma noção acrítica do que seja progresso;
b) a simples presença de organizações indígenas, de afrodescendentes, de camponeses e de mulheres, enquanto protagonistas, já é por si indício de que uma outra ordem está em curso e que a ordem estabelecida está em questão;
c) nossa formação social e política desde os primeiros momentos, não se pautaram pela mediação pública na resolução de conflitos;
d) são os pactos políticos responsáveis pela segurança e garantia de governabilidade;
e) a estrutura fundiária desigual que admite e aceita que mais de 50% das terras do País não sejam sequer cadastradas (GONÇALVES, 2005, p.150-156).
A reprodução da conflitividade e a violência no campo indicam que os movimentos camponeses no passado e no presente simbolizam e concretizam um caminho alternativo, uma proposta diferente, que, pelo confronto presente perspectivas futuras são inauguradas, como ensina Fernandes (2005 a: 27) “o tratamento da questão agrária não pode contemplar apenas o momento de conflito, mas sim o movimento da conflitualidade, seu caráter histórico e geográfico em todas as dimensões atingidas pela questão agrária”.
A conflitualidade se faz presente na análise da realidade, mas pode também estar presente nas discussões teóricas objetivando convencer ou derrotar oponentes. A conflitualidade presente nas teorias, nos paradigmas, nos discursos promove verdadeira disputa intelectual confrontando compreensões e leituras, as quais indicam necessariamente alternativas distintas, às vezes opostas, outras antagônicas e nem sempre complementares.
Quando estas defesas forem executadas por um conjunto de pensadores e suas respectivas produções cientificas, diz-se tratar de um “think tank”.
Os “think tanks” configuram um conjunto de pensadores e um conjunto de produções cientificas necessárias, para com elas, dominarem a política. O domínio político é a sua razão de ser e existir. Para atingirem esse objetivo, constroem referências teóricas a partir de suas leituras e interpretações da realidade e com elas, estabelecem paradigmas, como um conjunto de pensamentos, teorias e teses através das quais almejam compreender e explicar a realidade.
O pensamento consensual, aquele que defende a expansão do capitalismo de maneira única e homogênea, agrupa alguns de seus teóricos como “think tank” denominado RIMISP
[2] - Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural, trata-se de
una organizacion sin fin de lucro, fundada en 1986, que apoya el aprendizaje organizacional y la innovacion para promover la inclusion, la equidade, el bienestar y el desarrollo democrático en las sociedades rurales latinoamericanas.

O pensamento crítico, aquele que defende o aprofundamento e a ampliação da discussão numa perspectiva que confronte o pensamento consensual possibilitando a compreensão das realidades em suas complexidades e diversidades, agrupam alguns de seus teóricos como “think tank” denominado CLACSO
[3] – Centro Latino Americano de Ciências Sociais.
O RIMISP está vinculado ao Banco Mundial, enquanto que a CLACSO vincula-se a Via Campesina.
Assim, a análise da produção, do trabalho familiar e da ocupação do território na Região do Pontal do Paranapanema, onde se encontram as associações dos pequenos produtores e as famílias assentadas nos projetos de Reforma Agrária torna-se cenário provocativo para uma leitura geográfica sobre o desenvolvimento e a resistência camponesa numa realidade onde acontece concomitantemente resistência e submissão.
V - Conclusão
A leitura geográfica do desenvolvimento e da resistência camponesa construída neste trabalho analisou a questão agrária a partir da observação da realidade sóciopolítico da Região do Pontal do Paranapanema.
Nesta região do Estado de São Paulo há uma acirrada disputa política por um determinado modelo de desenvolvimento territorial. A disputa se dá entre o modelo norte-americano, denominado agronegócio e o modelo engendrado pelos movimentos camponeses. A resistência camponesa, como componente inerente deste último modelo, é empreendida pelas famílias acampadas e pelas famílias assentadas nos projetos de Reforma Agrária. É empreendida também pelas famílias dos pequenos produtores rurais que se organizam em pequenas associações.
Ambas resistem ao avanço capitalista no campo e, simultaneamente, são submissas ao capital. Ambas têm o trabalho familiar predominante. Ambas usufruem os laços de parentesco e de vizinhança como as colaborações mútuas, o uso do mutirão em determinadas ocasiões e os vínculos de solidariedade. Assim sendo, o camponês só pode ser agricultor familiar, não havendo como estabelecer diferenças entre eles. Na verdade o que há são duas formas de resistências contendo métodos e perspectivas diferentes.
A resistência torna-se ainda mais pujante quando estas forças se aglutinarem formando uma frente de oposição ao avanço capitalista, como promove a Via Campesina juntando, em determinadas ocasiões, as organizações camponesas que são as forças vivas de resistências no campo.
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[1] Professor universitário e membro do NERA((Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária – UNESP – campus de Presidente Prudente/SP).
[2] Conferir: www.rimisp.org
[2] Conferir www.clacso.org

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