Queimada é prática ainda comum para o preparo da terra. Foto: Valéria Gonçalves/AE
Oeste da Bahia, sul do Piauí e Maranhão, leste do Tocantins e Mato Grosso concentram devastação
Por Herton Escobar, enviado especial
Depois de quase esgotar a biodiversidade do sul do Cerrado, o desmatamento começa a rasgar também as entranhas do norte do bioma. Dados inéditos da Universidade Federal de Goiás (UFG), aos quais o Estado teve acesso com exclusividade, revelam uma migração alarmante da devastação para regiões de grandes remanescentes, como o oeste da Bahia, sul do Piauí e Maranhão, leste do Tocantins e centro-norte de Mato Grosso, onde o Cerrado se mistura com a Amazônia.
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Na lista dos 30 municípios que mais desmataram o bioma nos últimos sete anos, 29 são desses cinco Estados, segundo os números do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) do Instituto de Estudos Socioambientais da universidade.
Mato Grosso, sozinho, desmatou 11 mil quilômetros quadrados entre 2003 e 2009, período que foi analisado no estudo. Isso equivale a metade do Estado de Sergipe. Já a Bahia desmatou mais do que um Distrito Federal: 6.200 km².
Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais também aparecem com grandes áreas desmatadas no período, porém distribuídas de forma mais fragmentada. Quase tudo o que sobrou do Cerrado nesses Estados, após 40 anos de ocupação intensa pela agropecuária, foram ilhotas de vegetação nativa, espalhadas entre um oceano de gado e grãos.
Os grandes remanescentes estão quase todos dentro de unidades de conservação, terras indígenas ou áreas onde o relevo é ruim para a agricultura. Muitas dessas áreas de capim também são usadas como pastagens naturais, em que o gado se alimenta do capim nativo. Ou seja: só porque aparecem verdes no mapa, não significa que não estejam ocupadas.
O Parque Nacional das Emas é exemplo desse isolamento: uma ilha verde no sudoeste de Goiás, cercada de lavouras e pastos por todos os lados (mais informações nesta página). O padrão parece estar se repetindo em Mato Grosso, onde terras indígenas começam a ficar isoladas na paisagem.
A situação mais crítica é a de São Paulo. Restam apenas 13% dos 80 mil km² do bioma nativo que originalmente cobria um terço do Estado. Sobraram vários parques e estações ecológicas, mas é preciso uma lupa para enxergá-los no mapa. O resto virou cana, pasto e silvicultura.
A fragmentação é péssima para a biodiversidade, pois muitas espécies não conseguem transitar de uma ilhota a outra. É como se o bioma estivesse "extinto na natureza" e sobrevivesse apenas "em cativeiro".
PIONEIRISMO
Os dados do Lapig incluem, pela primeira vez, taxas anuais de desmatamento para o Cerrado - algo que já é feito para a Amazônia há mais de 20 anos.
Os números, a princípio, trazem uma mensagem positiva: redução de 63% no ritmo de devastação do bioma no últimos sete anos. Em 2009 foram desmatados 2.997 km², comparado a 8.172 km² em 2003. Todos os Estados que fazem parte do bioma registraram quedas significativas, apesar de algumas oscilações no meio do caminho.
O diretor do Lapig, Laerte Ferreira, porém, não vê motivo para comemorar. "O que os números mostram é que a ocupação do Cerrado continua. O bioma continua extremamente ameaçado", afirma.
As estatísticas concordam com a previsão pouco animadora feita no início do ano por seu colega, Manuel Ferreira, de que o Cerrado poderá perder 40 mil km² de vegetação nativa por década até 2050.
Entre 2003 e 2009, sumiram 36.610 km². Os três municípios que mais desmataram nesse período foram Formosa do Rio Preto (2.066 km²), Correntina (1.067 km²) e São Desidério (990 km²), todos no extremo oeste da Bahia, uma área de forte expansão agrícola.
A situação fica caótica quando se leva em conta o desmatamento anterior a 2002. A soma dos dados, feita pelo Estado, mostra que mais da metade do bioma já desapareceu ou foi alterada desde a década de 70, quando a agricultura e a pecuária começaram a marchar com mais força na região.
A área total desmatada é de 835 mil km², igual a três vezes o Estado de São Paulo mais um Rio de Janeiro e um Espírito Santo. Isso equivale a 41% do bioma, que originalmente cobria um quarto do País. Outros 230 mil km², uma área do tamanho de Rondônia, são usados como pastagens naturais. Quando isso é levado em conta, a área ocupada do Cerrado sobe para 1,06 milhão de km² ou 52% da área original. Duas vezes o tamanho da Espanha.
Grande parte desse desmatamento foi feito na base do "correntão", sistema pelo qual uma corrente gigante é ligada a dois tratores e arrastada sobre o cerrado, derrubando tudo pelo caminho. Depois era só juntar a madeira, tocar fogo e vender o que sobrava como carvão.
"Trinta anos atrás, o correntão era ensinado em sala de aula. Era uma técnica agrícola", lembra a agrônoma Leonor Assad, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Hoje ainda é usado, mas em menor escala. Virou sinônimo de destruição em massa da natureza.
Os dados sobre o que aconteceu de 2002 em diante são tão recentes que os pesquisadores ainda não tiveram tempo de analisá-los a fundo. Não sabem, por exemplo, qual é a explicação para o sobe e desce das taxas anuais. É provável que estejam associados a fatores de mercado e flutuações nos preços de commodities (soja, carne, milho), a exemplo do que ocorre na Amazônia.
"A Amazônia e o Cerrado precisam ser vistos como um binômio, como duas partes de um mesmo sistema. O que afeta um, afeta o outro também", defende Ferreira. Outro fator que precisa ser levado em conta é o geográfico. "O filé mignon do Cerrado já foi ocupado. São as áreas mais planas e mais próximas aos mercados consumidores." Ou seja: o desmatamento pode estar caindo só porque deixou de ser um bom negócio.
O desafio dos cientistas agora é qualificar esse desmatamento mais recente, mapeando o uso que foi dado a cada hectare desmatado. Até 2002, a pecuária era a atividade que mais havia devastado o Cerrado: 542 mil km² (quase uma Bahia), comparado a 216 mil km² convertidos para a agricultura. "Só saber o que foi desmatado não basta; temos de saber o destino que foi dado a essas áreas", diz Ferreira.
Bioma é a grande caixa d’água do País
Oito bacias hidrográficas estão inseridas na região, como a do Velho Chico
FORMOSO DO ARAGUAIA (TO) - Por trás da aparência ressecada dos meses de inverno, quando a umidade do ar cai a níveis alarmantes em algumas regiões, o Cerrado esconde uma identidade secreta: o bioma é um gigantesco coletor e distribuidor nacional de água, crucial para o abastecimento das regiões Centro-Sul, Nordeste, do Pantanal e até partes da Amazônia. Um serviço ecológico gratuito que corre o risco de ser racionado por causa do desmatamento.
Das 12 bacias hidrográficas do País, 8 estão inseridas no Cerrado. A localização central do bioma, combinada com sua elevação topográfica e alta concentração de nascentes, faz com que ele funcione como uma caixa d’água. Cerca de 94% da água que corre na Bacia do Rio São Francisco em direção ao Nordeste brota no Cerrado - apesar de apenas 47% da bacia estar dentro do bioma, segundo cálculos da Embrapa.
No caso do sistema Araguaia-Tocantins, que corre para o Norte e vai desaguar no Pará, 71% da água da bacia nasce no Cerrado. A proporção é a mesma para o conjunto das Bacias do Paraguai e do Paraná, que drenam grandes áreas do Centro-Sul. "O rio é só o encanamento superficial pelo qual a água corre", diz o pesquisador Felipe Ribeiro, da Embrapa. "Mas onde a água nasce é no Cerrado. As besteiras que a gente fizer aqui em cima vão repercutir rio abaixo."
E as besteiras já estão em curso. Estudos realizados pelo pesquisador Marcos Costa, da Universidade Federal de Viçosa, mostram que o desmatamento nas cabeceiras do sistema Araguaia-Tocantins aumentou a descarga dos rios em 25%, apesar de não ter havido mudanças nos índices pluviométricos da bacia. Ou seja: a quantidade de água nos rios aumentou, apesar de a chuva ter continuado igual.
Mais água, nesse caso, é má notícia. O problema é que o solo coberto por pastagens e lavouras absorve menos água do que o solo com vegetação nativa. Consequentemente, mais água escorre para os rios e é levada para fora do Cerrado, diminuindo a quantidade de umidade que fica disponível para os ecossistemas locais e a própria agricultura - além de aumentar o risco de enchentes para as comunidades que vivem rio abaixo.
Segundo Costa, se o desmatamento continuar, é provável que os níveis de precipitação no bioma também sejam afetados. "Acho que estamos próximos do limite em termos climáticos."
"O problema mais sério que vamos ter daq
ui dez anos é com a irrigação", diz o pesquisador Hilton Silveira Pinto, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Unicamp.O Pantanal também está de olho no problema. Praticamente todos os rios que deságuam no bioma nascem no Cerrado. "A sobrevivência do Pantanal depende diretamente da conservação do Cerrado", diz o ecólogo Leandro Baumgarten, da ONG The Nature Conservancy.
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