sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Função social fundamenta reforma agrária, diz desembargador


Por Maurício Hashizume
Segundo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS), o Poder Judiciário pode fazer a reforma apenas exigindo o cumprimento da função social da terra prevista na lei. Declaração foi feita em fórum fundiário
Campo Grande (MS) - A programação do
I Encontro do Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução de Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 29 de setembro as 1º de outubro na capital do Mato Grosso do Sul, reservou momentos raros em que autoridades ligadas ao Poder Judiciário puderam expor seus pontos de vista acerca da função social da terra e da reforma agrária.Em sua palestra, Amilton Bueno de Carvalho, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), não tergiversou ao tratar da relação entre a categoria da qual faz parte e os problemas fundiários. "Nós, juristas, podemos fazer a reforma agrária sem nenhuma nova lei. Apenas exigindo o cumprimento da função social prevista na Constituição".
Há 30 anos na área, ele lembrou que a lei, no sentido mais amplo, surgiu como elemento racionalizador e como condição civilizatória para impor limites ao poder desmesurado. Como conteúdo ético, portanto, a lei é a forma que o mais fraco encontra para limitar o mais forte, sendo que todo o poder tende ao abuso. O poder do juiz, adicionou, é ainda pior, pois impõe conseqüências a outro ser humano. A figura do juiz aparece nas referências bíblicas como o defensor dos órfãos e das viúvas, acrescentou o desembargador. Como o magistrado deve proteger "um contra todos", ele não pode ser escolhido pela vontade da maioria, emendou. Ocorre que a lei, desde o primeiro momento, foi aplicada como meio de dominação. Historicamente, o fardo sempre foi mais pesado para o segmento mais frágil e a lei acabou sendo empregada no sentido inverso: em vez de proteger os mais fracos, ajudou a espoliá-los: o aparato legal serviu para perpetuar os mais fortes no poder. "Tem sido sempre assim. E não só no sistema capitalista.
Quem faz o poder é a autoridade, não a sabedoria. A lei se tornou produto do poder arbitrário".Até por conta desse vício interno, a lei (rigidez da norma) não vem sendo capaz, na opinião dele, de dar respostas aos problemas da sociedade (complexidade do real). Como exemplo, o membro do TJ-RS citou as mudanças no Código Penal com relação ao porte ilegal de armas, que passou de contravenção a crime com punição com reclusão de 2 a 4 anos. Como não é tão simples explicar a violência, sobressai a opção pelo endurecimento da lei. "O mundo continua como está. Mas a lei mudou", ironizou.O momento histórico da legalidade, para Amilton, já passou. Na concepção dele, os princípios supraconstitucionais - que são as regras carregadas de alto grau de abstração e do senso comum da Humanidade, que seguimos como parte da reserva ética e moral - ocupam atualmente o posto de mandamento nuclear do sistema. Os princípios, sustentou, são conquistas históricas obtidas por meio da filtragem do povo que nem o constituinte pode mudar. "Trata-se de uma etapa vencida, uma página virada", comparou.Mesmo assim, o espaço da aplicação dos princípios, conforme avaliou o desembargador, continua ainda muito restrita. "Ainda somos positivistas primários", criticou.
Os princípios ainda geram pânico e insegurança e os magistrados estão muito presos apenas ao que se vê. "Juristas ainda não atingiram a adolescência. Não conseguem abstrair". Por isso, Amilton declarou que, quando se trata dos conflitos sociais agrários, "já será uma grande coisa" caso o Judiciário não interfira para "atrapalhar". "Se não criminalizarmos os movimentos sociais, já estaremos ajudando".
PerplNegritoexidade
O atual secretário municipal de Transportes de São Paulo (SP) e ex-membro do CNJ, Alexandre de Moraes, apresentou no I Encontro do Fórum, por sua vez, proposta controversa de avaliação da "perdurabilidade" dos povos indígenas e quilombolas no processo de demarcação de territórios. Para ele, embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha agregado novas referências no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, variáveis relacionadas à projeção dos povos em termos futuros (como a produtividade das terras envolvidas e a evolução demográfica do contingente particular) não vêm sendo levadas em conta na análise dos processos.
Essa projeção da "perdurabilidade" das comunidades tradicionais, segundo Alexandre, poderia contribuir para o enfrentamento do binômio fundamental da "ocupação tradicional/destinação constitucional", que se traduz na definição do tamanho das demarcações. Para ele, essa avaliação deve focar a "área realmente necessária" aos povos e não deve estar associada à extinção dos indígenas e quilombolas.
Entre a integralidade determinada pelo "direito por continuidade histórica" e o mínimo à sobrevivência sem que a dignidade prevista na Constituição de 1988 seja assegurada, o advogado e doutor em Direito insistiu na possibilidade de uma alternativa intermediária. Nas entrelinhas, Alexandre, que também já foi secretário estadual da Justiça de São Paulo (2002-2005), deu sinais de discordância com relação à homologação em terras contínuas em função do encadeamento de comunidades - como na Raposa/Serra do Sol. Mesmo que indiretamente, engrossou o coro dos que lamentam a destinação de "muita terra para pouco índio" - mesmo que indicadores mais recentes tenham atestado o crescimento da população indígena.
No tratamento da questão quilombola, Alexandre também sugeriu regras mais claras (especialmente no tocante à auto-definição), reiterou a validade do exame de "perdurabilidade" e acabou fazendo referências ao superado Decreto 3912/2001 - assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que foi substituído pelo Decreto 4788/2003, de autoria do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) -, suscitando interrogações e perplexidade por parte dos ouvintes, a maioria operadores do Direito.
A tese da exigência das consultas aos governos estaduais e municipais nos processos de demarcação, citada em parte como uma das 19 condições que emergiram do julgamento do caso Raposa, também foi reforçada pelo ex-conselheiro.
Até em função dos impactos no Pacto Federativo, ele sugeriu novas reflexões para maior segurança jurídica. Apesar de considerar a Constituição Federal de 1988 "generosa com exceções [ambientais, produtivas, sociais e trabalhistas] ao direito à propriedade", ele admitiu que esse direito vem sendo historicamente cumprido com mais rigor que o direito à liberdade. A despeito dos 21 anos da Carta, ainda se discute requisitos básicos, concluiu.

Direito à vida
Em mesa anterior do mesmo evento, Edilson Mougenot Bonfim, foi enfático ao recomendar mudanças na Carta brasileira com relação aos conflitos agrários. No entendimento dele, a Constituição mirou ao mesmo tempo no passado e na promessa de futuro e acabou resultando num conglomerado de direitos que tende à polarização. Assim como a noção de Justiça, o procurador seguiu direção diferente do desembargador Amilton, do TJ-RS, e disse que a função social da terra também está ligada à moral.
Por esse motivo, seria necessário preciso quantificar o que seja a função social com mais especificidade para dar mais segurança jurídica na abordagem do tema. Nas palavras dele, a norma hoje ainda é "extremamente aberta, sujeita a forças e ingerências".Mais uma mudança que ele considera essencial é a innstituição do habeas vita (HC), novo instrumento para garantir a vida dos ameaçados de morte por conflitos fundiários. O direito à vida, reforçou, antecede o direito à propriedade. Portanto, os homicídios precisam ser evitados de forma mais enfática. Atualmente, um ameaçado precisa que a denúncia seja feita e aceita pelo Judiciário. Enquanto esse pedido não é julgado, a pessoa pode ser morta. O HV seria uma forma de obrigar o Judiciário a rever a decisão em caso de recusa da proteção especial "Os ingleses inventaram o habeas corpus (HC) e exportaram. Por que nós não podemos exportar o habeas vita (HV)?".Conforme o procurador, "todo o crime no campo tem o Estado como réu", pois o poder público falhou no mínimo ao não proteger a pessoa humana, ao não fazer a reforma agrária e ao não decidir justamente no caso específico. Sobre as ações do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul (MPE/RS), ele salientou que a tipificação do movimento como organização criminosa e terrorista está mais para opinião pessoal, controversa e é muito difícil de ser comprovada. "É fundamental separar o movimento social do crime praticado por um militante", afirmou. Os delitos cometidos por um indivíduo, continuou, dizem respeito à sua conduta humana e pessoal - e não necessariamente a uma organização coletiva.

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