quinta-feira, 8 de outubro de 2009

América Latina: 100 anos de opressão e utopia revolucionária


Por Luiz Fernando B. Belatto

Introdução
Nesta virada de século e de milênio, faz-se interessante discutir muitos pontos que marcaram a história da Humanidade como uma forma de refletir sobre caminhos a serem adotados no futuro. No caso da América Latina, essa discussão é ainda mais importantes. Afinal, o continente passa por uma série de mudanças complexas que, no entanto, ainda convivem com marcas de um passado opressor que faz questão de manter-se vivo. Por exemplo: ao mesmo tempo em que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, num ato histórico, fecham uma coalizão em torno de seu bloco comercial, o Mercosul, contra a extrema ingerência da futura Alca (Aliança de Comércio da América), bancada pelos EUA, em suas economias, ainda dependem de mercados como o norte-americano para escoar sua produção, intermediada pelas multinacionais e a baixos preços, gerando lucro para a matriz e pobreza no mercado interno. Além disso, ao mesmo tempo em que esses países anunciam investimentos na integração econômica dentro do continente, em seus próprios territórios vêem aumentar a miséria da maior parte de sua população, a desintegração entre as regiões produtivas e uma série de protestos contra a desigualdade social. Quando as diferenças não são entre países, tornam-se evidentes no território interno: na Argentina, por exemplo, separada entre Buenos Aires e região, vista por muitos como o país, e a região interior, miserável e desgraçada. Nesse quadro de diferenças sociais, há de se somar também as crises políticas, onde a ditadura populista venezuelana e o instável governo peruano dão mostras de que a democracia na região ainda está longe de se tornar realidade.
As contradições são visíveis na sociedade latino-americana, e elas podem ser usadas como explicação para muitos dos problemas e desafios que o continente enfrenta neste novo tempo que se abre. O que ocorreu de errado? Quais os pontos que precisam ser melhorados no futuro? São perguntas que não se calam facilmente. E é neste aspecto que este pequeno ensaio se encaixa. Antes de fornecer respostas definitivas, ele pretende, à luz da discussão histórica e da narrativa, propor tópicos e interpretações que sirvam como um primeiro esboço para a discussão da realidade continental. Assim, está dividido em três partes: a primeira, mais geral, aborda rapidamente a essência da história da região, com destaque para a exploração comercial, a dominação política e a atualidade. A base dessa parte é o livro As veias abertas da América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. A segunda, mais histórica, mostra os movimentos sociais que tentaram propor vias históricas opostas às mostradas na primeira parte. Para encerrar o trabalho, que será completado em ensaios posteriores, uma rápida apresentação de homens que, bem ou mal, fizeram a história da América Latina atuando no campo político. No final, é oferecida uma bibliografia de referência para o interessado no tema ter a oportunidade de pesquisar por sua conta.
Este texto, conforme já dito, não se pretende completo. Pelo contrário: há pontos que mereceriam maior aprofundamento – o que não se faz pelo pouco espaço disponível e pela proposta de apenas propor tópicos para iniciar a discussão. Espera-se, portanto, que os leitores de Klepsidra participem, enviando suas mensagens e comentários a respeito do texto para que a história da América Latina saia da obscuridade e seja de conhecimento público. Inicia-se aqui, pois, essa viagem histórica.


Uma rápida abordagem dos conceitos
Não são poucos os estudos existentes sobre a história da América Latina. No entanto, em sua maioria são especializados em determinados temas: política, cultura, economia, relatos de vida de povos etc, bem como escritos com a única preocupação de se "contar a história", sem analisá-la em seus detalhes e relacionando-a com outros fatos e conjunturas. Poucos são os historiadores que se propuseram a escrever sobre a trajetória de nosso continente sem o medo de propor análises para os problemas enfrentados pelo território: pobreza crônica da população, economia agrária, subdesenvolvimento, instabilidade social etc. Coube então a um jornalista uruguaio, sem as "roupagens acadêmicas", como se autodefine, escrever uma história de seu continente baseada na seleção e interpretação de fatos que considera como essenciais para o entendimento da realidade latino-americana.
Eduardo Galeano, autor de "As veias abertas da América Latina" (clic aqui para e acesse a versão digital do livro) , propôs um inventário dos 500 anos da história do continente retratando as suas principais bases: a economia agrícola e mineradora dominada pelo mercado internacional, com o objetivo de gerar lucros para a potência dominadora; a pobreza social como resultado de um sistema econômico externo e excludente, que privilegia uma minoria financeiramente capaz de integrar-se aos padrões de consumo; a opressão de governos centralizadores contra as minorias, produzindo genocídios e o caos social; a exploração do trabalho e as péssimas condições de sobrevivência para a grande maioria de sua população.
Num relato informal, cujo objetivo é "mostrar uma opinião", para entender a história e a atual situação da América Latina Galeano narra os fatos fora de uma seqüência cronológica, fazendo com que passado e presente conversem entre si na mesma obra, determinando o ponto de vista do autor: o continente foi e é peça importante no enriquecimento de poucas nações, e o preço que paga por isso é o seu subdesenvolvimento crônico, suas eternas crises sociais e seu status de colônia. "A riqueza das potências é a pobreza da América Latina", diz Galeano em certa passagem do livro.
O autor dividiu o livro em três partes. Na primeira, mostra como os espanhóis e portugueses chegaram àquelas terras virgens no século XV e se aproveitaram das riquezas que o continente possuía. Os primeiros, fixados desde o planalto mexicano até os Andes, tiveram sorte e encontraram ouro e prata nas primeiras andanças. Os lusitanos, ocupando a faixa litorânea do Oceano Atlântico, tiveram de construir um império colonial à base da cana-de-açúcar enquanto não encontravam os metais. Embora em áreas diferentes, a tônica da exploração foi a mesma: trabalho forçado, agressão física, enriquecimento, opressão colonial. Os espanhóis encontraram dois exércitos de mão-de-obra disponíveis: os índios astecas no México e os incas no Peru. Estas civilizações, para Galeano, retratam o caráter do domínio colonial: socialmente e militarmente evoluídas, foram destruídas nas minas e com o trabalho forçado nas mitas e encomiendas. Já os portugueses, depois de tentar a exploração dos índios nos engenhos de açúcar e não obter sucesso, transformaram-se no maior traficante de negros mundial. Vindos da África, os negros deixavam à força seus reinos para, em terras brasileiras, ser escravos e motor da produção açucareira.
Após narrar a glória desses centros produtivos de riqueza colonial (que, como faz questão de ressaltar, não ficava na Espanha e Portugal: destinava-se a pagar as dívidas que estes países tinham com a potência que lhes roubaria o domínio econômico da América: a Inglaterra), Galeano traz a exploração para o presente e fala da decadência dessas regiões. São claros exemplos da tese de que a região rica do passado é marcada pela pobreza no presente as minas de Potosí, na Bolívia (região dava todo o ouro e prata que os espanhóis necessitavam e onde se formou uma elite local que enriquecia à base da escravidão indígena. No século XVII, quando os metais escassearam, o sonho de riqueza acabou e a pobreza se enraizou. Hoje, Potosí é o distrito mais pobre da Bolívia, habitado somente por descendentes de índios, e de seu passado glorioso guarda apenas a lembrança); o Nordeste brasileiro, que viveu seu auge com a produção de açúcar nos século XVI e XVII, mas não escapou da decadência quando seu produto passou a sofrer concorrência das Antilhas Holandesas, no século XVIII; e a região de Ouro Preto, quando a efêmera exploração aurífera acabou na entrada do século XIX. Os três casos refletem a formação colonial da América Latina: o continente nasceu para fornecer as riquezas que a Europa necessitava. Na medida em que as terras já não atendiam a essa demanda, foram abandonadas, ficando como marca do passado as gerações seguintes da população historicamente explorada, pobre e sem perspectivas. Citando a teoria marxista da divisão do trabalho entre operário e patrão, Galeano afirma que "enquanto a Europa era o cavaleiro que levava as glórias, a América era o cavalo que fazia todo o serviço".
Dos metais, seguiu-se a exploração agrícola e pecuária a partir principalmente dos séculos XVIII e XIX, por meio da qual cada país, numa engrenagem perfeita com o sistema econômico internacional, se identificou e ainda se identifica com um determinado produto na escala comercial. A América Central se especializou no fornecimento de frutas tropicais; o Equador, bananas; Brasil e Colômbia, café; Cuba e Caribe, açúcar; Venezuela, cacau; Argentina e Uruguai, carne e lã; a Bolívia tornou-se país fornecedor de estanho e o Peru de peixe. Embora com produções diferentes, o sistema permanece com mecanismos idênticos em todos os casos: por se tratar de mercadorias primárias, com baixos preços, os países pouco lucram como a venda agrícola. Por isso, têm de produzir cada vez mais e com métodos baratos para fazer mais divisas e atender à necessidades dos países compradores para não perder mercados. Com isso, aumenta-se a exploração do trabalho e a formação dos latifúndios, impedindo o acesso das classes populares à terra. Este processo de dominação personificou-se principalmente na América Central. Neste território, a indústria nacional não existe ou é primária: os grandes conglomerados pertencem a países estrangeiros, atuando exatamente na industrialização de alimentos. Os países vendiam, no século XIX, sua produção agrícola aos ingleses, substituídos um século depois pelos EUA, potência que domina a área e dita os rumos da política local de acordo com seus interesses. A antiga empresa norte-americana United Fruit Company era o "verdadeiro" poder na América Central, comandando a área a despeito das vontades e anseios de sua população, e inclusive promovendo golpes militares e instalando governantes de confiança para garantir seus direitos (como na Guatemala, em 1954: numa intervenção militar, os EUA derrubaram Jacobo Arbenz, socialista eleito democraticamente). As lutas de guerrilha que caracterizam até hoje a região são decorrentes dessa dominação: grupos paramilitares lutam contra governos corruptos que defendem os interesses norte-americanos para chegar ao poder. Mais uma vez, a vítima é sempre a população, que se não morre explorada nos latifúndios, tem sua vida encurtada nas batalhas da guerra civil.
Sociedades nascidas para fora, isto é, para fornecer produtos e condições econômicas de desenvolvimento às potências mundiais, as nações latino-americanas nunca se esqueceram de sua trágica condição. E nem os movimentos de independências nacionais das duas primeiras décadas do século XIX libertaram os novos países da dominação colonial, pois a estrutura permaneceu idêntica: a economia agrário-exportadora dominada por elites locais ligadas aos mercados compradores – principalmente a Inglaterra. A fragmentação que o território latino-americano sofreu após o movimento libertador de Simón Bolívar representa a impossibilidade de formar uma unidade nacional: cada elite identificou-se com um pedaço do território e nela formou seu país, de acordo com seu papel no comércio internacional. Como diz Galeano, "cada novo país identificou-se com seu porto exportador, acima de qualquer idealismo". O imperialismo britânico substituiu o domínio ibérico no século XIX, fomentando seu próprio desenvolvimento às custas da produção dos novos países e exterminando toda e qualquer tentativa de desenvolvimento autônomo. A Guerra do Paraguai, de 1865 a 1870, é o exemplo mais claro desse argumento: capitaneados pelos interesses comerciais britânicos, Brasil e Argentina promoveram um conflito bélico contra a nação guarani, à época a mais industrializada e comercialmente independente do continente. O resultado foi o maior genocídio da história latino-americana (1,3 milhão de mortos numa população de 1,8 milhão) e o enfraquecimento do Paraguai, que até hoje não deixou de ser um protetorado sob a ingerência do imperialismo brasileiro e argentino.
No século XX, com a decadência inglesa, surge no cenário os EUA como nova potência gestora da América Latina. Não é à toa que, já em 1823, os norte-americanos promulgaram a famosa Doutrina Monroe: "A América para os americanos". O que significava dizer: os EUA estenderiam seus interesses sobre seu continente irmão e continuariam a exploração iniciada quatro séculos antes, por meio do controle econômico e político. O início da longa e duradoura intervenção norte-americana no continente data de 1898, quando os EUA derrotaram a Espanha na batalha de independência de Cuba, e se apossaram dos direitos políticos e econômicos sobre a ilha – os quais mantiveram até 1959, quando Fidel Castro e seus guerrilheiros derrubaram o governo de Fulgencio Batista e tomaram o poder. No entanto, mesmo longe de Cuba, é sabido que os interesses norte-americanos criaram ramificações em outros países do continente, com destaque para a já citada América Central e o México.
Mesmo os países com certo desenvolvimento industrial – Brasil, Argentina e México – não escapam dessa dominação econômica imposta pelas potências internacionais. Basta uma análise mais detalhada nos índices econômicos dessas nações para se comprovar o argumento. Grande parte das receitas comerciais dessas nações ainda vêm da exportação de matérias agrícolas, pecuárias (destacadamente o caso argentino) ou minerais. O campo, a agricultura e as indústrias primárias ainda são marcos dos tempos coloniais. Na verdade, as indústrias desses países têm força local, ou seja, encontram mercado apenas em países subdesenvolvidos que não produzem tais mercadorias. Perante as potências, não passam de apêndice das multinacionais com o objetivo de fornecer lucros à matriz, e não em desenvolver um forte mercado interno. A industrialização latino-americana não nasceu dos anseios de desenvolvimento sócio-produtivo, mas da impossibilidade de importar produtos manufaturados durante a recessão econômica mundial dos anos 30. Formou-se uma indústria baseada na "substituição de importações", reforçada durante os anos 50 e 60 com o advento das multinacionais e políticas internas de crescimento. No entanto, a industrialização latino-americana nunca deixou de estar ligada aos interesses estrangeiros, ao fornecer produtos que tais mercados necessitavam e importar tecnologias que, em vez de incrementar o desenvolvimento, só aumentavam a dependência. A demanda interna e o crescimento do mercado consumidor não foi atendida. Assim, entende-se que o movimento industrial do continente foi mais uma etapa do colonialismo perante as potências mundiais: fornece-se produtos baratos, baseados no baixo valor da mão-de-obra e na exploração do assalariado, para se encaixar no mercado internacional e obter técnicas que a indústria local é incapaz de produzir. Mudam os tempos e os métodos, mantém-se a exploração, o subdesenvolvimento e a inviabilidade de um crescimento autônomo e principalmente voltado às classes mais injustiçadas do sistema.
A iniciativa de um mercado de cooperação econômica que visa reduzir essa dominação, como o Mercosul, tem efetividade apenas em nível local, ou seja, perante os demais países do continente, que não dispõem das mesmas tecnologias e condições para produzir as mercadorias que o bloco comercializa. O Mercosul não tem forças para competir ou fazer afrontas à futura Alca, por exemplo, ou à União Européia: estes blocos, além de poderosos economicamente, produzem mercadorias mais baratas e de melhor qualidade que o bloco latino-americano, o que lhes abrem as portas para conquistar os mercados onde o Mercosul atua hoje. A tentativa norte-americana de enfraquecer o bloco reflete que as condições mudam, mas a essência é a mesma: a potência mundial dita as regras e exige o cumprimento das colônias. Embora diga que ainda é muito cedo para se pensar na Alca, o Mercosul vive sob o temor da formação desse novo bloco, que lhe faria concorrência direta ao englobar todos os mercados americanos restantes e limitar sua área de atuação. Tratar-se-ia de um pacto colonial moderno: as colônias seguem a orientação superior, mesmo com contestação, por saber que, se não o fizerem, as conseqüências e retaliações serão muito piores.
Mas não é apenas isso. O Mercosul é enfraquecido em função das diferenças sociais e econômicas entre seus membros que, reforçadas ao longo dos séculos, fazem com que o bloco tenha atritos internos. É inegável que o Brasil é o grande motor econômico do acordo, ao possuir economia e produção diversificados e que gozam de certa estabilidade financeira. Quem lhe poderia fazer concorrência, a Argentina, vive uma crise econômica de grave intensidade que estagnou seu sistema produtivo; o Uruguai oscila seu apoio aos dois países, pois necessita muito dos produtos que eles produzem, já que sua economia é basicamente pecuária; na mesma situação se encontra o Paraguai, país mais pobre e dependente do bloco. Nenhuma decisão pode ser tomada sem a participação das quatro nações, e os desníveis de desenvolvimento de cada uma delas, bem como tradicionais rixas políticas, atrapalham a tomada de políticas conjuntas. Tome-se como exemplo o recente acordo automotivo entre Brasil e Argentina para a construção conjunta de carros. Os argentinos vetaram as primeiras versões do acordo, acusando o Brasil de querer manipular o Mercosul para favorecer a sua produção de peças para carros em detrimento dos outros membros. O que estava implícito na reclamação argentina era a crise da economia local e o inflacionamento da produção: as peças locais saiam mais caras que as brasileiras, o que encareceria o produto final. No final, um acordo definitivo foi assinado, dividindo a produção das peças e os custos de montagem dos carros. Para compensar a crise argentina, quem perdeu foi o Brasil, que arcará com os preços mais caros do parceiro e, conseqüentemente, encarecerá a mercadoria. Esta, na concorrência com outros mercados, sairá em desvantagem.
A América Latina nasceu para poucos desfrutarem da riqueza da terra e do trabalho de muitos. O sangue das "veias abertas" do continente é um manjar que alimenta o crescimento das potências e das elites locais, mas também faz-se veneno que mata a população de sua terra. No entanto, como veremos no próximo tópico, esse continente, mesmo protagonizando uma história trágica e permeada da exploração, elites de interesses limitados e governos repressores, nunca deixou de ter esperanças de mudar. Afinal, a América Latina também protagonizou acontecimentos que tentaram desviar o rumo da história e soam até hoje como esperanças de transformação. São casos como a Revolução Cubana, ocorrida há 40 anos, e a atual guerrilha zapatista no México que ainda permitem o sonho em uma terra melhor. Como disse Marx, a respeito do processo histórico, são os homens que fazem a história, na sua luta diária pela sobrevivência e pelo bem-estar. Assim, somente a luta do povo latino-americano, após séculos de exploração e pobreza, poderá libertar o continente das amarras que o oprimem, desenvolvê-lo em suas potencialidades e, principalmente, dar-lhe uma cara latino-americana, ou seja, voltada às necessidades de seu povo. E, para incitar essa reflexão, apresenta-se agora alguns dos movimentos que tentaram mudar a ordem das coisas no continente


Os processos revolucionários
Guerras, mortes, ditaduras militares, exploração social, economia dependente. Estas palavras e expressões são muito bem usadas para se expressar o andamento da história latino-americana neste século. Existem pensadores que, de forma cética, consideram que a trajetória do continente nos últimos 100 anos foi marcada exclusivamente pela submissão das massas a regimes políticos autoritários e a um sistema produtivo baseado na exportação. Não haveria, na opinião desses intelectuais, nenhum fato que indicasse uma tentativa de transformação das estruturas sociais ou mudança do rumo histórico seguido. Essa opinião, muito difundida entre aqueles que vêem a América como o "quintal" dos Estado Unidos e descrevem sua população como alienada e explorada, sem capacidade de lutar por uma vida melhor, é falsa. As correntes historiográficas mais modernas, guiadas por uma linha interpretativa menos generalizadora e mais investigativa dos detalhes dos fatos históricos, consideram que, em determinados momentos, a massa popular em alguns países se rebelou e procurou modificar a estrutura social em que se encaixava. Mesmo quando não ocorreu o autêntico levante popular, alguns líderes buscaram seguir o ideal de transformação para construir uma nova nação, e a partir daí uma nova história.
Os historiadores definiram, na história contemporânea da América Latina, quatro eventos que podem ser analisados como tentativas de quebra do domínio imperialista das grandes potências mundiais, buscando uma política mais nacionalista. Alguns de forma limitada, outros de maneira mais direta, todos possuíram algumas características em comum: criticaram o domínio internacional em seus territórios e procuraram introduzir mudanças sociais para beneficiar a população. Até hoje são referências na luta de movimentos sociais no continente como uma esperança de que a história latino-americana, por meio da mobilização, pode tomar outros rumos. Elas são descritas aqui em seus pontos principais, e não em uma análise mais detalhada, pela falta de espaço.

O revolucionário Zapata
Revolução Mexicana – O acontecimento mexicano é descrito como a primeira grande mobilização social da América Latina no século XX. O processo começou como uma autêntica revolução, isto é, com o objetivo de promover uma transformação estrutural na sociedade, para depois normalizar-se e garantir algumas mudanças que não representam um processo completo de modificação. Tanto é verdade que até hoje existem movimentos sociais que buscam retomar o ideal da Revolução Mexicana para completá-la e transformar a estrutura social e produtiva da sociedade do país. A guerrilha no Estado de Chiapas, ao mesmo tempo que protesta contra o imperialismo norte-americano e contra a pobreza da região, luta por uma reforma agrária justa e pela memória de Emiliano Zapata, líder da revolução do começo do século que ecoa no México até hoje.A revolução teve início em 1910. Liderados por Zapata, os camponeses do estado de Morelos levantaram-se contra os latifundiários da região e toda a exploração que estes representavam. Logo o exército do país foi chamado para conter a revolta, que não demorou a espalhar-se para todo o território mexicano. Em combates sangrentos, com diversas mortes em ambos os lados, o exército de camponeses comandado por Zapata e seu aliado Pancho Villa foi conquistando as principais terras, minando o poder agrícola mexicano e a própria força política do ditador Porfirio Díaz. No final de 1910, Díaz foi derrubado para a subida de Francisco Madero ao poder. Este, apesar de ter a confiança de Zapata, representava os interesses da nascente burguesia mexicana: pouco lhe importava tocar na estrutura agrária do país e criar impasses com os latifundiários. A reforma agrária que estava na promessa revolucionária não se realizou, e Zapata voltou ao combate. Reuniu os camponeses, tomou para si mesmo o governo do México em 1914 e iniciou um gradual processo de divisão agrária e reorganização da produção agrícola em pequenas propriedades. Inclusive convocou uma Assembléia Constituinte em 1917, na qual foi aprovada a Lei da Reforma Agrária. No entanto, a burocracia do governo atrapalhava a execução da lei, e a repartição de terras não era executada da forma mais adequada. A ascensão de governos burgueses, que buscavam a industrialização do Estado, e a morte de Zapata numa emboscada em 1919, e a de Pancho Villa quatro anos depois, congelaram o processo e a revolta camponesa.
A reforma agrária foi retomada no período 1934-1940, no governo de Lázaro Cárdenas. Presidente com traços populistas, Cárdenas aplicou de forma séria a lei de 1917, distribuindo 18 milhões de hectares a 772 mil camponeses, num ato predominantemente de oposição aos latifundiários. Bondade do governante? Uma análise mais profunda das transformações que a sociedade passava pode explicar os motivos de tal distribuição. No mandato de Cárdenas, a indústria já despontava como a base da economia mexicana, com o conseqüente declínio do latifúndio agrário-exportador. Além disso, a distribuição acalmava os ímpetos revolucionários dos camponeses e lhes dava um pedaço de terra para desenvolver uma pequena agricultura substancial, sem incomodar o grande latifúndio. Afinal, o presidente não mexeu em toda a estrutura de concentração de terras: em 1940, o censo registrou pouco mais de 300 propriedades de mais de 40 mil hectares – os latifúndios ainda ocupavam uma extensão de mais de 30 milhões de hectares. As terras expropriadas foram, em sua maioria, as improdutivas ou pertencentes a grandes empresas.
A Revolução Mexicana, assim, promoveu uma alteração substancial na sociedade mexicana, ao estimular a reforma agrária e a distribuição de terras para os camponeses. Embora a estrutura social não tenha sofrido modificações radicais, com o poder econômico se concentrando nas mãos da nova burguesia industrial, e muitos dos novos proprietários, sem incentivo ou capacidade para desenvolver a agricultura em sua terra, não tenha largado seu estado de pobreza, tratou-se de um processo com importância ao ser o primeiro grande movimento de massas da América Latina contemporânea, provocando reflexos no continente até hoje, evocada por movimentos nacionalistas que buscam justiça social e reforma agrária.
Revolução Boliviana – Processo inspirado na Revolução Mexicana e que alcançou grande amplitude, com as classes populares inclusive tomando o poder e os meios de produção econômica. No entanto, a incapacidade para manter esse controle, a falta de força política e as pressões de setores mais fortes, incluindo o imperialismo norte-americano, acabaram por minar as bases da revolução e seu potencial renovador que pretendia transformar a exploradora e miserável estrutura social boliviana numa sociedade mais justa e igualitária.
O levante ocorreu no dia 9 de abril de 1952. Incitados pelo MNR (Movimento Nacional Revolucionário), partido de centro-esquerda formado por pequenos burgueses que fora alijado do poder um ano antes por um golpe militar, os mineiros do país iniciaram uma greve por melhores condições de vida e salários. Ao mesmo tempo, explodia a revolta nas grandes fazendas, com os índios e camponeses tomando as terras, e na capital La Paz, onde a população mais pobre se organizou, com a ajuda do MNR, em milícias armadas que invadiram quartéis e, numa incrível guerrilha urbana, venceram o Exército mandado às ruas para combatê-las. O povo boliviano, oprimido ao longo de séculos, tomara o poder em todo o país, e o MNR parecia ser seu representante legítimo para ocupá-lo. Aqui, entretanto, começam as falhas do processo revolucionário do país. O partido, mais preocupado em retomar o governo perdido um ano antes e formado por elementos de classe média, não soube atender às reivindicações básicas da população. Pelo contrário: aos poucos minou as conquistas dos trabalhadores e abriu espaço para a intensificação da penetração do capitalismo norte-americano na economia do país.
Dois marcos da Revolução Boliviana, e que a fazem carregar esse título, são as provas mais evidentes de como o MNR apenas se apoiou na revolta popular para tomar o poder, e não para promover mudanças estruturais na sociedade. O primeiro deles foi a lei de Reforma Agrária, promulgada em agosto de 1953 e destinada a organizar a desordem instalada com a tomada de fazendas pelos camponeses, um ano antes, durante o processo revolucionário. A Lei evitou criar polêmicas com os latifundiários, determinando que os camponeses deveriam devolver parte das terras ocupadas aos proprietários ainda vivos. Ficava com uma pequena faixa de terreno, geralmente improdutiva, antieconômica e pela qual ainda tinha de pagar indenização pela posse. Assim, o campesinato, que em 1952 ocupara a maior parte das terras do país, fizera uma divisão razoavelmente igualitária e eliminara estruturas feudais de exploração de mão-de-obra, como o servilismo, sofria um processo de regressão. Sem incentivo fiscal e grande espaço nos mercados consumidores, o pequeno proprietário, em sua maioria, vinha a perder sua terra para o latifundiário, voltando a ser seu empregado e morando em suas dependências por caridade e em troca de trabalho pesado na lavoura. O sistema de exploração campestre voltara a ser o mesmo: grande propriedade, monocultura, trabalho servil. A diferença é que fora introduzido no campo formas capitalistas de exploração comercial: a produção em larga escala para venda em menor tempo e mais barata. Mas a grande conquista camponesa – as terras -, foram perdidas em sua maior parte graças à lei de Reforma Agrária, feita às pressas pelo governo do MNR e que revelava a incapacidade do partido de se desvencilhar dos grupos economicamente mais fortes do país para promover uma mudança radical na sociedade.
O segundo marco da revolução engana por sua demagogia. Em outubro de 1952, o governo nacionalizou as minas de estanho, supostamente rompendo com um domínio secular da principal fonte de divisas do país por parte da família Patiño, dona das minas e refinarias. O ato poderia simbolizar um desejo de autonomia nacionalista na exploração do minério, se não escondesse certas conjunturas que serviram para reduzir ainda mais o papel e a importância da revolução. Quando nacionalizadas, as minas de estanho já tinham rendimento limitado, tão exploradas que foram pelos Patiño. Assim, a Bolívia não teria muito minério para exportar e fazer divisas no mercado internacional. Além disso, o estanho bruto tem valor reduzido no mercado, tendo de ser tratado em fundições – e o país não possuía nenhuma à época. O país se acostumara a receber pouco pelo estanho retirado das minas pelas empresas dos Patiño e levado para ser fundido no exterior. Com a nacionalização, o processo não se inverteu. A Bolívia continuou a receber pouco pelas toneladas de minério, por exportá-lo bruto, e via em seguida as grandes potências pagar caro pelo produto refinado. A nacionalização das minas não trouxe autonomia econômica à Bolívia, nem melhorou a vida dos mineiros, mas trouxe um problema: teve de herdar minas decadentes e de baixa produtividade, livrando os antigos proprietários de maiores prejuízos. Como se não bastasse, estes receberam indenizações pela expropriação, num total de 22 milhões de dólares. Vendendo muito e recebendo pouco, o governo do MNR ainda tentou reativar a exploração do estanho, fundando uma empresa estatal – a COMIBOL – para descobrir novas jazidas. A iniciativa, no entanto, só trouxe mais prejuízos e quase nenhum estanho. A solução foi recorrer a empréstimos junto aos EUA, em troca do fornecimento, a baixos preços, de minérios e outros produtos, como o petróleo e o gás natural.
O processo de nacionalização das minas se transformou rapidamente numa continuação do retrocesso observado na reforma agrária: as conquistas dos mineiros são gradualmente perdidas pelo líderes políticos que, pertencentes à classe média e ao poder econômico, não podem negar suas origens. Os presidentes do MNR que governaram a Bolívia de 1952 a 1964 tentaram mudar a sociedade boliviana e sua estrutura por meio de decretos, e nunca de forma efetiva. A população não recebeu os benefícios da revolução: pelo contrário, foi dominada ainda mais pela miséria e teve sua força política reprimida quando as milícias urbanas armadas foram suspensas para a reconstituição do Exército, no final dos anos 50.
No entanto, a revolução boliviana, apesar de frustrada em seus planos, serviu como exemplo para movimentos sociais posteriores de como a mobilização popular pode provocar abalos na ordem estabelecida, em busca de melhorias em sua vida. Foi denominada assim por ser um caso em que o povo foi às ruas e batalhou por sua conta, por seus objetivos, acima de ideologias partidárias. Talvez a ausência de um autêntico líder que canalizasse suas aspirações reformistas, evitando o MNR e seu oportunismo pequeno-burguês, tenha sido o principal motivo da derrota das massas no processo revolucionário. Mesmo sem alterar as estruturas sociais e produtivas do país, a revolução deixou heranças, como a modernização das relações no campo (apesar da exploração prosseguir), a politização da sociedade boliviana e a fundação da COB (Central Obrera Boliviana), sindicato urbano de trabalhadores que teve papel fundamental no combate às ditaduras nos anos 70 e 80.


Fidel Castro, líder da Revolução Cubana

Revolução Cubana – O processo liderado por Fidel Castro é descrito até hoje como a mais radical mudança política no cenário latino-americano. Afinal, Cuba tornou-se, a partir de 1959, o primeiro país socialista do mundo ocidental e o único em que tal regime sobreviveu, quebrando a hegemonia norte-americana no continente e o "anti-comunismo" que esse domínio pregava e combatia – o golpe militar de 1954 contra o presidente Jacobo Arbenz, de tendências socialistas, na Guatemala, expressa bem isso. Hoje, mesmo com a queda do mundo soviético, o país insiste em se denominar socialista e resiste a uma total abertura econômica, guiada pelos organismos internacionais como FMI e Bird.
A Cuba moderna, segundo o sociólogo Emir Sader, incomoda os outros países por ser fruto de uma revolução que, negando os EUA, deu certo e mudou a estrutura social, apesar dos problemas econômicos e políticos que enfrenta na atualidade.
Sader considera que uma revolução implica numa total transformação do sistema sócio-produtivo da nação, instalando um novo sistema e dando à sociedade novas condições de sobrevivência. Para ele, a guerrilha de Fidel Castro, ao tomar o poder, tinha em mente a necessidade de modificar a estrutura cubana para conseguir o apoio da população e autonomia internacional. É fundamental entender como era tal estrutura antes de Fidel assumir o comando político de Cuba. Incentivada pela colonização espanhola, a ilha se tornou grande produtora de açúcar, cuja venda na Europa enriquecia os senhores locais e atiçava seus desejos de independência para se libertar dos impostos coloniais. O processo de libertação do domínio espanhol se consumou em 1898, mas o novo país, localizado a poucos quilômetros dos Estados Unidos, não escapou da ingerência econômica e política desta nação. Desde o início do século, os norte-americanos se instalaram em Cuba, controlando o comércio de açúcar e todos os demais setores da economia agrária. Os latifúndios dominavam a maior parte do território, reinando a exploração dos camponeses e a opressão política nos centros urbanos. Os EUA faziam e desfaziam presidentes à sua vontade, até que o sargento Fulgencio Batista, a partir dos anos 40, dominou a cena política cubana e acalmou, à base da repressão, as diversas manifestações que eclodiam no país contra a recessiva política econômica e os privilégios norte-americanos. Um dos levantes que conteve foi em 1953, no assalto ao quartel Moncada liderado por um jovem advogado chamado Fidel Castro. Extraditado de Cuba com outros colaboradores, Fidel foi viver no México para, três anos depois, retornar e promover, a partir das sierras e com o apoio camponês, a guerrilha contra a ditadura de Batista. Mesmo com parcos recursos e poucas armas, o exército guerrilheiro cresceu e derrotou a maior parte das forças de Batista, assumindo gradualmente o controle dos principais distritos do país. Quando chegou à capital, Havana, em 1º de janeiro de 1959, Batista já fugira para a República Dominicana, e Fidel foi proclamado presidente e primeiro-ministro.
Após assumir o poder, os revolucionários tiveram, de cara, de enfrentar o governo norte-americano, que ordenou a saída de todas as empresas nacionais do território cubano e decretou o embargo econômico contra o país após a fracassada invasão da Baía dos Porcos, em 1961. A medida norte-americana foi seguida pela maior parte dos países do continente, que romperam as relações comerciais com Cuba e inclusive votaram por sua exclusão da Organização dos Estados Americanos (OEA). De uma hora para outra, Cuba teria de buscar novos parceiros para sobreviver e, principalmente, cumprir seus objetivos de transformação social. Para tanto, optou, em contrapartida ao capitalismo, pelo socialismo e por acordos com os países do bloco liderado pela União Soviética. Vendendo açúcar e níquel a essas nações, Cuba recebia em troca maquinaria pesada e petróleo para desenvolver indústrias de bens de consumo e gerar, com a diversificação das exportações, divisas que permitiam a manutenção de serviços públicos gratuitos à população. A saúde e a educação, entre outros, deixaram de ser privilégio daqueles que poderiam pagar, pois se tornaram serviços estatizados. Além disso, o governo passou a mandar anualmente os universitários ao campo, para ensinar os camponeses a ler e escrever. O resultado desse processo contínuo é visível até hoje. Cuba é o país com maior índice de alfabetização no continente, com 85%. O tratamento de saúde é mantido pelo Estado, e os equipamentos são elogiados ao redor do mundo pela qualidade e tecnologia.
A própria estrutura produtiva – o campo – foi transformada. O primeiro ato do governo revolucionário foi promulgar uma Lei de Reforma Agrária, que determinava a nacionalização de terras improdutivas pertencentes a empresas norte-americanas e latifundiários. Além disso, o governo tomou para si terras que foram abandonadas pelos donos, que fugiram com a vitória guerrilheira. Aos camponeses foram oferecidas duas alternativas: a organização em cooperativas ou a posse individual da terra. O Estado importou maquinaria agrícola, treinou técnicos para ensinar os novos proprietários como gerir a terra e usar os novos mecanismos de produção, incentivou a produção com apoio financeiro e subsídios. As safras de açúcar cresceram e novas culturas foram desenvolvidas, como o tabaco e frutas cítricas. O índice de desempregados e empregados sazonais (durante as safras) diminuiu, com a posse efetiva da terra. Nas cidades, o crescimento industrial e novos serviços, como o turismo, também ofereceu oportunidades à população.
Com o fim da União Soviética, em 1991, e consequentemente de seu principal mercado de açúcar, Cuba enfrentou uma séria crise interna, com diminuição da produção industrial e redução do abastecimento de energia. Mesmo assim, o país sobrevive, ao reatar suas relações com os países latino-americanos e europeus e visualizar, ainda que distante, um princípio de abertura por parte dos EUA. A crise cubana levantou sérias dúvidas quanto à validade do regime de Fidel e as conquistas do país durante seu governo.
É claro que, no sentido mais liberal, o governo de Fidel não é democrático, ao negar o direito às eleições e perpetuar-se no poder. No entanto, sob seu comando Cuba conseguiu a tão procurada "revolução": de um país agrário-exportador e constituído de uma população predominantemente rural e explorada, tornou-se uma nação com economia diversificada e que oferece a seus habitantes condições de vida mais dignas do que muitos países latino-americanos. O exemplo cubano soou no continente durante os anos 70 como um modelo de libertação do imperialismo norte-americano, e até hoje atrai muitos movimentos sociais e guerrilheiros à sua causa. Por mais contestado que seja, o exemplo de Cuba mostra que a transformação radical da sociedade é possível se houver interesse e mobilização popular.
Revolução Peruana – O caso peruano foi atípico em todos os sentidos, e gera diferentes interpretações até hoje na historiografia do país. Em outubro de 1968, uma junta militar liderada pelo general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente Belaúnde Terry e instalou-se no poder. Seu lema, expresso no "Estatuto do Governo Revolucionário", se resumia a três pontos: tornar a estrutura do Estado mais dinâmica para modernizar o país; dar níveis de vida superiores à população desassistida; e desenvolver no povo e na economia uma mentalidade nacionalista e independente perante as potências estrangeiras. Quem lê tais tópicos pode estranhar como um grupo de militares, tradicionalmente conservadores, limitados à força bélica e de pouca instrução, poderia se preocupar com assuntos tão complexos. A explicação é simples. Desde os anos 40, influenciados pela força demonstrada pelo exército norte-americano na Segunda Guerra, os militares peruanos começaram a interferir na política nacional, chegando ao poder em 1945 com um golpe liderado pelo general Manuel Odría. Este promoveu um gradual processo de abertura até 1952, quando foram realizadas eleições livres. No entanto, os militares continuaram a representar uma "eminência parda" na presidência, interferindo nas decisões presidenciais e no andamento do processo político.
Em 1960, o Exército fundou o "Centro de Altos Estudos Militares" (CAEM), destinado a formar militares com consciência crítica sobre os problemas sociais do país. O CAEM representava a extrema politização das forças armadas peruanas e seu desejo mais do que explícito de chegar ao poder na primeira oportunidade. Dois anos depois, essa chance apareceu. Víctor Haya de la Torre, candidato da Apra (partido popular, de caráter populista), venceu as eleições presidenciais, mas não chegou a tomar posse, pois os militares o derrubaram, acusando-o de liderar um levante comunista. Esse governo militar caracterizou-se por iniciar uma "reforma social controlada": tentou uma reforma agrária em terras improdutivas, sem ferir os interesses dos latifundiários, ao mesmo tempo que reprimia e prendia líderes sindicais que clamavam por mais espaço político. Em 1963, pressionados pela opinião pública e pelos EUA, os militares promoveram novas eleições, com a vitória de Belaúnde Terry. Este, apesar de defender em campanha um discurso demagógico, prometendo inclusive a nacionalização do petróleo. Não cumpriu o prometido, como concedeu novos direitos de exploração dos campos petrolíferos peruanos a empresas norte-americanas a baixos preços e impostos. Foi esse ato, aliado ao aumento da pobreza da maior parte da população e da crescente violência rural pela reforma agrária, que estimularam o golpe de Velasco Alvarado, também formado no CAEM.
O primeiro ato de Velasco já foi cercado de polêmica. Na primeira semana de governo, ele nacionalizou a empresa norte-americana "International Petroleum Company", que detinha as principais concessões de exploração do óleo no país. Em seguida, numa clara provocação aos EUA, anunciou que não pagaria indenização à empresa enquanto ela não pagasse uma dívida de 690 milhões de dólares de impostos não pagos. O ato cercava-se de um discurso nacionalista e de independência perante os negócios internacionais, mas foi desmistificado pelo próprio presidente. Para tranqüilizar os investidores estrangeiros, Velasco foi à televisão dizer que somente nacionalizaria outras firmas internacionais se estas não cumprissem as leis do país e não pagassem os impostos devidamente.
Com isso, garantia-se as inversões estrangeiras no Peru e a manutenção dos mercados para onde exportava sua produção. A estrutura econômica estava assegurada. A nacionalização da International Company representou mais um ato demagógico, destinado a mostrar à população a força do novo regime e sua preocupação com princípios nacionalistas, do que uma efetiva demonstração de independência perante as potências e vontade de construir uma nova sociedade. Essa demagogia é comprovada pela importância do óleo na economia do país: na época, o petróleo representava apenas 10% das exportações peruanas. A indústria pesqueira e agrícola, dominada por consórcios norte-americanos, ficou intocada. Apesar de bramar contra o capital estrangeiro e nacionalizar setores menos importantes, o regime não diminuiu a dependência peruana perante as potências.
Mas o governo do Peru entrou para a história da América Latina por ser a primeira ditadura militar no continente a promover uma considerável reforma agrária. No final de 1968, Velasco Alvarado decretou a divisão das terras dos latifúndios improdutivos em cooperativas administradas pelos camponeses. Ficou famosa, na expropriação da primeira fazenda, a frase pronunciada por Alvarado: "Camponês, o patrão não comerá mais de tua pobreza". Tal expressão fora dita, duzentos anos antes, por Tupac Amaru, índio que se rebelara contra a exploração espanhola e acabou morto ao ser derrotado. A iniciativa foi boa, mas, seguindo o exemplo das nacionalizações das empresas, mais demagógica do que efetiva. Apesar de grande quantidade de terras ser dividida, numa reforma agrária radical, o governo não forneceu meios técnicos ou qualquer tipo de ajuda para que os camponeses, que há pouco tempo eram servos de poderosos senhores de terras, se tornassem administradores. A produtividade das cooperativas não rendeu o esperado, e com o enfraquecimento do regime, nos anos 70, muitos ex-proprietários entraram na justiça para reaver as terras, alegando desapropriação indevida. Aos poucos a estrutura latifundiária normalizou, ou seja, os camponeses, ameaçados pela falência das cooperativas e pressionados pela justiça, voltaram a ser servos nas grandes propriedades. Alguns, no entanto, conseguiram manter um pedaço de terra, promovendo um regime de pequena propriedade.
Pressionada pelos interesses econômicos internacionais e mergulhada em suas próprias contradições – atacar o capital estrangeiro enquanto não detinha sua penetração na economia, promover uma reforma agrária sem dar a devida estrutura aos camponeses e pregar um discurso nacionalista ao mesmo tempo em que calava a imprensa e suspendia eleições e partidos políticos -, a ditadura peruana perdeu força ao longo dos anos 70. Velasco Alvarado foi derrubado por setores militares mais conservadores em 1975, assumindo o poder o também general Francisco Bermúdez. Este preparou o terreno para a normalização democrática do país, promovendo eleições em 1980.
O regime peruano entrou na história como uma "revolução" por ser o primeiro governo militar que, livrando-se da aura conservadora, tomou consciência dos problemas sociais de seu país e promoveu algumas reformas estruturais de peso na sociedade.
Mesmo não modificando a estrutura básica, a ditadura peruana mostrou que os militares também poderiam ser entendidos na realidade social e ter idéias para modificá-la. O regime de Velasco Alvarado reforçou o papel militar na política peruana, e o grande medo de Alberto Fujimori, quando ainda era o presidente, de ser derrubado do poder pelo Exército reflete a politização das Forças Armadas peruanas: se a corrupção e desmoralização do poder público houvesse se tornado mais crônicas, os militares poderiam intervir como uma forma de "limpar" a política nacional e promover as melhorias buscadas pelo povo. Ou seja, seguir a lição iniciada por Juan Velasco Alvarado. Mas a renúncia e fuga de Fujimori, seguidas pela aparente normalização democrática, tranqüilizaram as Forças Armadas, pelo menos até o momento.



Os grandes líderes



Também é possível narrar e entender a história do continente por meio de alguns dos líderes que marcaram sua história ao longo deste século. Eles entraram, pela frente ou pelos fundos, para a história do continente. Inscreveram seus nomes na trajetória de seus países até hoje e influenciaram diretamente a vida das populações com as quais conviveram. Seria impossível, dessa forma, não falar de alguns dos mais importantes líderes que a América Latina conheceu. Os homens aqui citados são apenas exemplos, pois muitos outros poderiam figurar ao lado deles ou substitui-los nestas apresentações. Privilegiou-se o critério técnico: a importância do escolhido em seu país e, por sua vez, a proposta em abordar aspectos específicos de algumas dessas mais importantes nações. Pois tratar de seus personagens é uma maneira de se fazer isso e constituir uma idéia mais completa sobre o continente como um todo. Foram definidas três categorias, com dois exemplos em cada.

Os Libertadores
Simón Bolívar (1783 – 1830)


Apesar de fazer parte do século XIX, é impossível falar de América Latina sem se falar de Simón Bolívar. Conhecido como El Gran Libertador, Bolívar foi o primeiro líder a defender e buscar uma unidade latino-americana. Filho de comerciantes que residiam na atual Venezuela, Bolívar teve uma vida cercada de luxos e conforto. Ainda jovem, foi enviado à Europa para estudar, tomou contato com os ideais libertários da Revolução Francesa e, em 1807, voltou à Venezuela, disposto a organizar batalhões militares para promover a independência da colônia. Após combates de dois anos, favorecidos pela fraqueza do exército espanhol, cuja maioria fora enviada para lutar contra a invasão napoleônica na Espanha, Bolívar libertou a Venezuela em 1809. Seu sonho, agora, era expandir a liberdade para todo o continente. Para tanto, formou novos exércitos e aliou-se a militares que já promoviam movimentos de libertação em outras comarcas, como o uruguaio José Artigas e o argentino José de San Martín. Recrutando populares como soldados e dividindo as áreas de atuação, os três generais gradualmente proclamaram a independência dos territórios, até a expulsão definitiva dos espanhóis.
No entanto, os esforços de Bolívar terminaram nessas lutas de libertação. Consciente de que somente uma América unida poderia fazer frente às grandes potências européias e aos EUA, o general tentou unificar todos os territórios libertados. Mas os interesses das elites criollas de cada comarca falaram mais alto, e a fragmentação da América se tornou inevitável. Cada oligarquia não quis perder a área onde desenvolvia sua riqueza para um processo de unificação, pois isso representaria a perda de seu poder político e econômico. O exemplo mais claro da morte do ideal de Bolívar ocorreu na antiga Grã-Colômbia, libertada e governada pelo general venezuelano. Os oligarcas da região não aceitaram a decisão de Bolívar de manter a região unificada num único país, promovendo uma guerra para tirá-lo do poder em 1827. Após a vitória, exilaram o militar e dividiram o território em três novos países: Venezuela, Colômbia e Equador.
Bolívar morreu em 1830, acometido pela tuberculose. Reconhecera que cada elite latino-americana se identificou com sua luta apenas para se libertar da tutela política espanhola, mas não para formar um novo país. Desiludido, profetizou o que a história do continente, marcada por ditadores, mortes e submissão econômica, comprovou: "A América cairá infalivelmente nas mãos de um bando desenfreado de tiranos mesquinhos de todas as raças e cores, que não merecem consideração".



Augusto César Sandino (1893-1934)
Ex-cortador de cana e mecânico, foi trabalhando nas minas de ouro e prata que Sandino conheceu a realidade da população mais pobre da Nicarágua, bem como percebeu que a economia e a política de seus país eram dominadas pelos EUA, por meio de empresas e governos tampões. A dura vida nas minas e a repressão do exército contra as revoltas dos mineiros foram gerando a consciência revolucionária e opositora aos norte-americanos no jovem Sandino, até que, em 1926, ele iniciou um movimento guerrilheiro na região mineradora, ao norte do país. Depois de uma série de derrotas, os guerrilheiros conseguiram se recuperar e vencer as forças militares enviadas pelo governo, avançando em direção ao centro. Ao mesmo tempo, os camponeses dos latifúndios de café da região sul, e os trabalhadores da capital, Manágua, se levantaram em apoio a Sandino. Os lemas revolucionários eram expulsar os norte-americanos da Nicarágua e melhorar as condições de vida da população.
Diante da intensa movimentação e da ameaça de perder seu domínio, os EUA intensificaram a repressão contra a Nicarágua, exigindo que o governo eliminasse os focos guerrilheiros ao mesmo tempo que enviava tropas para combatê-los. De tão dura e violenta, a ação norte-americana provocou protestos na própria opinião pública do país, levando os EUA a promover uma retirada estratégica do país. No entanto, deixaram como herança a Guarda Nacional, um corpo militar que garantia o poder yankee em território nicaragüense comandada à época por Anastacio Somoza.
Este, apoiado pelos norte-americanos e com ganas de chegar ao poder, iniciou novo levante contra as tropas de Sandino e seus aliados. Foi numa dessas pequenas batalhas que Somoza seqüestrou o líder guerrilheiro, em 1934, e o assassinou. Em seguida, intensificou a repressão contra as populações que apoiavam Sandino e, dois anos depois, assumiu o poder por meio de um golpe de estado.
No entanto, Somoza e sua família, que ficaram no poder durante 43 anos, não foram capazes de matar a herança revolucionária sandinista. Nos anos 60, surgiu a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSNL) que, canalizando a revolta popular e das classes médias contra a opressora ditadura, derrubou o regime em 1979 e assumiu o governo com o intuito de promover as reformas estruturais defendidas por Sandino em sua luta. Sua tentativa, em onze anos de mandato, foi infeliz, pois antes de desenvolver a economia e transformar a sociedade, os líderes sandinistas tiveram de lutar pela manutenção de seu regime contra as tropas financiadas pelos EUA, denominadas "contra-revolucionários". Desgastado pela guerrilha, em 1990 o candidato sandinista, Daniel Noriega, perdeu as eleições presidenciais para Violeta Chamorro, apoiada pelos vizinhos norte-americanos.




Os Populistas
OBS: Esta categoria é provavelmente a mais polêmica, pois muitos outros políticos, como Getúlio Vargas, no Brasil, e Paz Estenssoro, na Bolívia, poderia entrar nela. Mas privilegiou-se o critério de mostrar preferencialmente a história dos países que nos cercam no continente, para desenvolver uma visão mais global. Num próximo ensaio, o tema do Populismo será abordado de maneira mais abrangente, envolvendo todas as suas variantes. No momento, fiquemos com duas de suas mais importantes variantes.






Juan Domingo Perón (1895-1974)
Nascido em Villa de Lobos, no interior da Argentina, Perón teve uma infância pobre. Quando jovem, mudou-se para Buenos Aires para estudar medicina, mas logo foi atraído pela carreira militar e ingressou na Academia Militar Nacional. Promovido constantemente na hierarquia, na década de 30 tornou-se general e começou a se envolver com a política do país. Participou, em 1943, de um golpe de estado que derrubou o regime militar liderado pelo general Ramón Castillo. Perón foi nomeado para o Ministério da Guerra e para o Departamento Nacional do Trabalho, no qual iniciou sua ascensão política. Com o objetivo de ganhar o apoio dos trabalhadores, Perón, durante seu mandato, colocou em prática uma série de leis que visavam melhorar o estado de vida do proletariado urbano, como a instituição do 13º salário, previdência social e benefícios em caso de demissão. Ao mesmo tempo, eliminava e despolitizava os sindicatos independentes, agrupando os trabalhadores em torno do Departamento Nacional.
Com esses atos, Perón canalizava o apoio dos operários para sua pessoa e criava uma enorme base popular em torno de sua personalidade cativante. Não demorou muito, e suas medidas o desgastaram perante os industriais e a classe média, que não aceitavam o espaço e direitos dados à classe trabalhadora. Em 8 de outubro de 1945, Perón foi demitido de seus cargos pelos militares e preso. No entanto, nove dias depois, uma multidão dirigiu-se à frente da Casa Rosada, sede do governo, e pediu sua libertação, num movimento de massas jamais visto no país. Solto, Perón apareceu na sacada e discursou para o povo eufórico. Encerrava-se nesse ato simbólico o regime militar, ao mesmo tempo que o general lançava sua candidatura à presidência.
Eleito em 1946 pelo Partido Laboralista (mais tarde convertido para Peronista, e depois Justicialista, que existe até hoje), Perón levou adiante seus planos de industrialização da economia e concessões aos trabalhadores. Nacionalizou empresas estrangeiras, com altos custos para os cofres do governo, e exerceu forte censura contra a imprensa. Com altos índices de popularidade, Perón e sua esposa, Evita, representavam uma Argentina moderna e independente, que crescia e não enfrentava crises. No entanto, estas começaram a surgir após a reeleição de Perón, em 1952. As nacionalizações de empresas, manutenção dos sindicatos e concessões aos trabalhadores consumiram as reservas financeiras nacionais, gerando redução na produtividade e aumento da inflação. Além disso, o presidente passou a enfrentar a oposição de setores que iam contra sua política, como os industriais, militares conservadores e a Igreja. A economia da Argentina estagnou, e pequenos levantes contra Perón tornaram-se comuns em Buenos Aires. Pressionado pela Marinha e Aeronáutica, ele renunciou em 1955 e exilou-se no Paraguai e Espanha. No entanto, permaneceu como referência política para os anos seguintes, quando o país enfrentou um recrudescimento político, em função de regimes militares opressores.
Com a crise dos governos militares no início dos anos 70 em função de vários fatores, como grave crise econômica, instabilidade social e revolta popular, as diversas forças políticas argentinas uniram-se em torno do nome de Perón para volta ao poder e tranqüilizar a situação, inclusive aquelas que se opuseram a ele nos anos 50. Esse fato demonstra o poder do Peronismo de congregar tendências políticas diferentes em torno de seu discurso trabalhista, defendendo justiça para os operários e independência perante o capital estrangeiro. O velho general voltou em 1973, e logo em seguida foi eleito presidente. No entanto, com a saúde debilitada, Perón morreu um ano depois, sem melhorar a situação de seu país, que veria, a partir de 1976 até 1983, o período mais negro de sua história, com a instalação de uma nova ditadura militar no poder que não teve pudores em matar e desaparecer com todos aqueles que lhe faziam oposição.
Perón foi um líder tipicamente populista, encarnando a ambigüidade dessa filosofia política em seus atos. Defendia em seus discursos uma postura nacionalista, defendendo a soberania nacional, nacionalizando firmas estrangeiras e pregando o sacrifício do povo pelo país. No entanto, ao mesmo tempo oferecia concessões ao capital internacional para promover a industrialização e não mexia na questão da terra, para não promover atritos com os poderosos latifundiários e estancieros exportadores de carne. Concentrava seu poder no apoio dos trabalhadores às suas medidas laborais, mas eliminava sindicatos autônomos e restringia o direito às leis trabalhistas apenas aqueles que se filiassem ao Departamento de Trabalho do governo. Com isso, Perón atrelou os sindicatos e a política trabalhista ao Estado, limitando a ação independente dos trabalhadores e suas reivindicações. Mesmo com essas contradições e a vontade das elites argentinas, o mito de Perón não morreu perante a população. Afinal, ele foi o primeiro líder do país a transformar as massas trabalhadoras em objeto de discurso e melhoria social, dando-lhes direitos e uma existência mais digna.
Até hoje o Peronismo, sob a forma do Partido Justicialista, está vivo. Sua ideologia é a defesa dos direitos do trabalhadores e a industrialização da economia. No entanto, após ficar quase dez anos no poder com Carlos Menem, foi derrotado nas últimas eleições para a presidência da República para Fernando de La Rúa, candidato da União Cívica Radical.

Lázaro Cárdenas (1895-1970)
Cárdenas chegou ao poder em 1934, com o objetivo de recuperar o México do desastre econômico e social instalado com a crise mundial de 1929. Sua política voltava-se, a exemplo de Perón, para os trabalhadores. A diferença é que, enquanto o argentino destinou suas atenções para a massa de trabalhadores urbanos, Cárdenas centrou sua atuação no campo, onde estava a maior parte da massa trabalhadora do país. Em seu primeiro ato, determinou o cumprimento da lei da Reforma Agrária promulgada em 1917. Nacionalizando terras pertencentes a empresas estrangeiras e expropriando fazendas improdutivas, o governo distribuiu, em seis anos, um total de 18 milhões de hectares a 770 mil camponeses. Embora muitos dos novos proprietários, sem a devida orientação e apoio para manter a terra e incentivar a produção, a tenha perdido para outros latifúndios, a reforma foi uma das maiores já feitas na América Latina e cumpriu seu objetivo político: atrair o apoio camponês para o governo e canalizá-lo em sindicatos controlados e geridos pelo Estado e, em seguida, pelo partido dominante.
Assim, Cárdenas lançou as bases para o aparecimento do PRI, em 1946, como uma agremiação política que detinha o controle e apoio dos sindicatos rurais (e mais tarde dos urbanos), vencendo com facilidade as eleições. Conforme dizem alguns autores, o PRI tornou-se um "partido corporatizado".
Mas Cárdenas não parou por aí. Disposto a transformar os trabalhadores em uma massa ativa, que colaborasse com o Estado em seu processo de modernização, o presidente modernizou as leis operárias e determinou seu cumprimento, apesar das críticas da burguesia industrial. Além disso, definindo os operários como parte fundamental da sociedade mexicana, decretou constitucional o direito às greves. Para completar seu processo de modernização do México, Cárdenas, em 1938, dois anos antes do final de seu mandato, nacionalizou os poços de petróleo, então pertencentes a empresas norte-americanas, sob pagamento de indenizações. Em seguida, fundou a Pemex, empresa estatal destinada à exploração e comercialização do óleo. Este foi o principal investimento estatal na indústria do país. Nos outros setores, como bens de consumo e maquinaria leve, o capital estrangeiro dominou.
O governo de Cárdenas procurou inserir o México numa nova ordem social e econômica, ao mesmo tempo que buscou a normalização dos anseios da população (especialmente a rural) para promover o desenvolvimento e a consolidação do poder nas mãos da burguesia. Tanto é verdade que, apesar das críticas sofridas por conceder muitos direitos aos trabalhadores, foi durante seu governo que a indústria mexicana conheceu seu primeiro grande impulso rumo ao crescimento. Embora, como um bom líder populista, criticasse o capital estrangeiro e a exploração que ele acarretava, Cárdenas incentivou sua participação em setores importantes da economia. Além disso, como Perón, atrelou os trabalhadores ao Estado, centralizando o poder e as classes sociais nesta instituição maior. Mas sua grande realização foi no campo. Concedendo terras aos camponeses, numa ampla reforma agrária, Cárdenas atendeu os anseios de propriedade que ecoavam desde a Revolução Mexicana, em 1910-20, ao mesmo tempo que não mexeu nos latifúndios que formavam a base da agricultura do país. Em levantamento feito no final de seu governo, em 1940, 300 propriedades controlavam 30 milhões de hectares de terras, o que mostra que a reforma não foi completa, e parte do campesinato mexicano seguiu em seu estado de pobreza. Mesmo sem alterar as estruturas básicas da sociedade, concentrando o poder no PRI e definindo a dominação burguesa, Cárdenas passou à história como o primeiro líder do país a pensar e estimular a participação dos trabalhadores na economia nacional.
Os Ditadores

Alfredo Stroessner (1912-)
Um dos militares mais destacados do Paraguai nos anos 40 e início dos 50, quando se tornou chefe supremo das Forças Armadas, Alfredo Stroessner sempre teve veneração pelo poder e pela exaltação de sua pessoa. Para obtê-lo, não mediu esforços e, em 1954, comandou um golpe militar que, apoiado pelo latifundiários, classe dominante do país, veio a colocá-lo no governo e instalar a primeira ditadura militar de uma série que dominaria o continente nos anos 60 e 70. Além de reforçar o caráter agrícola da economia paraguaia, favorecendo a classe que o levou ao poder, Stroessner transformou o país no paraíso mundial do contrabando, centralizado em Ciudad del Este, na fronteira com o Brasil.
Aliás, o ditador paraguaio sempre teve nos governos militares brasileiros uma fonte de apoio a seu governo: a maior prova dessas boas reações é a construção conjunta da usina de Itaipu, inaugurada em 1974 e que abastece os dois países. No plano interno, o ditador, sempre com o reforço do Exército e do Partido Colorado, que controla até hoje a cena política paraguaia, procurou calar as oposições esquerdistas, seja por meio do exílio, das prisões e da morte. Os sindicatos se tornaram ilegais e as manifestações de rua, proibidas sob ameaça de prisão.
No entanto, o regime de Stroessner começou a se enfraquecer no final dos anos 70, junto com todas as ditaduras latino-americanas, quando os EUA, que até então eram o principal sustentáculo desses governos, passaram a criticar suas políticas repressivas e os abusos contra os direitos humanos. Aos poucos, as oposições se reacenderam no Paraguai, associadas a protestos populares contra a pobreza, o desemprego e por eleições livres. O governo teve de ceder, e em 1984 a anistia foi concedida aos exilados políticos. Diante da instabilidade da situação, a ala mais moderada dos militares retirou seu apoio a Stroessner, e houve um racha no Partido Colorado nas facções "moderada", que defendia a continuidade do ditador no comando, e "tradicionalista", defensora de uma pequena abertura para garantir o poder pela via eleitoral. Personalista, Stroessner não aceitou deixar o governo, e para mostrar que ainda tinha força colocou na reserva o general Andrés Rodríguez, o segundo homem forte no país. Esse ato, ocorrido em janeiro de 1989, pôs um ponto final à ditadura. A facção tradicionalista, aliada de Rodríguez, obteve o apoio das tropas de cavalaria do Exército e invadiu o Palácio Presidencial no mês seguinte, obrigando Stroessner a renunciar e se exilar no grande aliado de sempre: o Brasil. Hoje, morando em Brasília, Stroessner vive, apesar dos problemas de saúde, tranqüilamente e na impunidade. Há oito anos foi condenado à prisão pela justiça paraguaia por participação em assassinatos, mas, como é tradicional na América Latina, nada ocorreu a ele.

Jorge Rafael Videla (1925-)
Militar de formação tradicional e anti-comunista, Videla foi um destacado aluno do Escola Nacional das Forças Armadas. Sua lealdade aos comandantes e coragem na repressão às manifestações de estudantes durante a ditadura militar nos anos 60 lhe renderam a nomeação para as chefias do Exército argentino, em 1973, e das Forças Armadas, em 1975. Um ano depois, diante da grave crise econômica do país e da instabilidade política ainda provocada pela morte de Perón, Videla liderou um golpe militar que derrubou a presidente Isabelita Perón. No poder, o general tratou de eliminar a todo custo o terrorismo e as oposições a seu regime, por meio do exílio e principalmente dos desaparecimentos e mortes.
Seu governo, de 1976 a 1981, é visto pela Organização de Defesa dos Direitos Humanos como o que mais incentivou a perseguição contra pessoas, fossem contra o regime ou não. Um relatório de 1980 da Comissão Inter-Americana dos Direitos Humanos afirma que, nos quatro primeiros anos do mandato de Videla, mais de 6.000 argentinos haviam desaparecido somente no país. Mais tarde descobriu-se que o general mantinha uma rede de conexões de espionagem com a Junta Militar boliviana, pela qual ambos os governos denunciavam as atividades de líderes oposicionistas que atuavam nos dois países. Foram essas perseguições e assassinatos em massa que criaram o movimento das mães da Plaza de Mayo, que se reúnem todas as quintas-feiras para protestar, até hoje, pelo sumiço de seus filhos.
Mas Videla não mostrou eficiência apenas no combate a supostos oposicionistas e nas táticas para semear o medo na população. No campo econômico, ele intensificou a crise já existente, desorganizando a produção industrial com a falta de investimentos estatais e a perda de capitais internacionais, que não obtinham garantia de retorno em um clima político tão instável. Para combater a inflação, arrochou os salários, gerando insatisfação nos trabalhadores urbanos, cujas manifestações foram reprimidas pelo Exército. A total ausência de liberdade de expressão e segurança foram sendo divulgados ao redor do mundo e atraindo o protesto de vários países, ao mesmo tempo em que a crise interna tonava incontrolável a revolta popular. A saída dos militares foi sacar Videla do poder e colocar um presidente tampão, Leopoldo Galtieri, que, além de invadir as ilhas Malvinas em 1982, convocou eleições livres um ano depois.
Videla, a princípio, pagou por seus crimes. O presidente eleito, Raul Alfonsín, o levou a julgamento, no qual foi condenado à prisão. No entanto, militares descontentes com a medida pressionaram o governo, exigindo a anistia para o general. Foi-lhe concedida a prisão domiciliar, em 1985. Os protestos militares continuaram, e a ameaça de um novo golpe caso Videla não fosse libertado também. Quatro anos mais tarde, o novo presidente Carlos Menen, concedeu anistia total ao ex-ditador, evitando problemas com a cúpula militar para realizar um governo tranqüilo. No entanto, a morte não larga a vida de Videla. Em 1998, um juiz federal ordenou novamente sua prisão por participação no seqüestro e desaparecimento de crianças durante seu governo.
Mortes, medo e desaparecimentos como eixo de governo. Se relembrasse seu passado, Videla poderia mostrar ao mundo que ele já previra a utilização desse tripé caso fosse o governante da Argentina. Afinal, em 1975, na XI Conferência dos Exércitos Americanos, em Montevidéu, ele disse profeticamente: "Se for preciso, na Argentina deverão morrer todas as pessoas necessárias para logra a segurança do país".



Uma conclusão

Como se vê, a história da América Latina é diversa. Mas segue uma linha clara: a da opressão iniciada quando Colombo e suas naus pisaram nas terras do Caribe – opressão que dizimou as populações indígenas e instituiu o caráter econômico e exportador das sociedades latino-americanas, o qual elas ainda não perderam. Até hoje, as desigualdades sociais que se multiplicam nesses países, aliadas a movimentos de guerrilha civil, crises econômicas cíclicas e dependência dos mercados internacionais, caracterizam a formação social destas terras e são o grande desafio a ser enfrentado no século XXI: a proposta de romper com o desenvolvimento regulado ou a submissão extrema para se construir um crescimento autônomo e integrado entre todas as nações continentais – o mesmo sonho de Simón Bolívar, quando, há quase dois séculos atrás, iniciou os movimentos de libertação que resultaram nos atuais países que compõem a América Latina.
Che Guevara

Zapatistas mexicanos
A utopia revolucionária não morreu nas revoluções citadas ao longo deste texto: ela prossegue na luta dos zapatistas no México, apesar da violenta opressão do governo mexicano, e no retorno dos sandinistas ao poder na Nicarágua, conquistando as principais prefeituras do país nas recentes eleições. A história mostra que não há caminhos inalteráveis. Pelo contrário, a resistência contra as dificuldades e o desejo dos homens em mudar sua trajetória faz com que, pouco a pouco, o quadro social mude. O inferno econômico argentino, o aumento da pobreza no Brasil e a complicada conjuntura política peruana, entre outros fatos, apenas comprovam que o continente tem que refletir sobre o que está errado nesta trajetória.

Discutir alguns desses tópicos foi o propósito deste texto: afinal, como dizia o historiador francês Lucién Goldmann, é olhando o passado que podemos melhorar o presente e o futuro. No caso, o opressor passado latino-americano, marcado pelo imperialismo europeu e norte-americano e pela desigualdade social, pode servir como base para uma transformação generalizada no continente. A revolução virá da revolta das classes historicamente oprimidas. A América não se libertará de sua agonia por meio de heróis personalistas e demagógicos, mas sim com a mobilização das maiorias, incentivada pela discussão da realidade continental, poderá provocar tais mudanças há muito tentadas.
Sub-comandante Marcos,
líder zapatista
Bibliografia recomendada
GALEANO, Eduardo – As veias abertas da América Latina. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1971
WASSERMAN, Claudia (coordenação) – História da América Latina: Cinco Séculos. Porto Alegre, Editora da Universidade, 2000. )
BOMFIM, Manuel – América Latina: males de origem. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1993
CHIAVENATO, Júlio José – Bolívia com a pólvora na boca. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980
FILHO, Omar de Barros – Bolívia: vocação e destino. São Paulo, Editora Versus, 1980
SADER, Emir – A Revolução Cubana. São Paulo, Editora Brasil Urgente, 1992
SADER, Emir – Cuba, Chile, Nicarágua: socialismo na América Latina. São Paulo, Atual Editora, 1992
PRADO, Maria Lígia – O Populismo na América Latina. São Paulo, Editora Brasiliense, 1981 – Coleção Tudo é História
ROSSI, Clóvis – Militarismo na América Latina. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980 – Coleção Tudo é História
BRIGNOLI, Héctor Pérez – América Central: da colônia à crise atual. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980 – Coleção Tudo é História
DeCHANCIE, John – Perón. São Paulo, Editora Nova Cultural, 1987 – Coleção Os Grandes Líderes.

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