domingo, 11 de outubro de 2009

Brasil: 500 anos de luta pela terra

Por Bernardo Mançano*
Neste artigo apresento uma breve leitura da luta pela terra e da resistência camponesa nesses cinco séculos de história do Brasil. A luta pela terra é uma ação desenvolvida pelos camponeses para entrar na terra e resistir contra a expropriação. A resistência do campesinato brasileiro é uma lição admirável. Em todos os períodos da história, os camponeses lutaram para entrar na terra. Lutaram contra o cativeiro, pela liberdade humana. Lutaram pela terra das mais deferentes formas, construindo organizações históricas.
Desde as lutas messiânicas ao cangaço. Desde as Ligas Camponesas ao MST, a luta nunca cessou, em nenhum momento. Lutaram e estão lutando até hoje e entrarão o século XXI lutando. Desde as capitanias hereditárias até os latifúndios modernos, a estrutura fundiária vem sendo mantida pelos mais altos índices de concentração do mundo. Esse modelo insustentável sempre se impôs por meio do poder e da violência. Agora, ou fazemos a Reforma Agrária ou continuaremos sendo devorados pela questão agrária.
Na leitura desses cinco séculos é impossível dissociar as ocupações de terras da intensificação da concentração fundiária. Esses processos sempre se desenvolveram simultaneamente construindo um dos maiores problemas políticos do Brasil: a questão agrária. Neste século, a luta pela Reforma Agrária passou a fazer parte dessa questão, que possui a seguinte configuração: a ocupação da terra como forma e espaço de luta e resistência camponesa; a intensificação da concentração fundiária como resultado da exploração e das desigualdades geradas pelas políticas inerentes ao sistema socioeconômico; a Reforma Agrária como política pública possível de solucionar o problema fundiário, mas nunca implantada.
No nossa país, a Reforma Agrária é uma política recente, comparada ao processo de formação do latifúndio e da luta pela terra. A luta pela Reforma Agrária ganhou força com o advento das organizações políticas camponesas, principalmente, desde a década de cinqüenta, com o crescimento das Ligas Camponesas. Todavia, a luta pela terra é uma política que nasceu com o latifúndio. Portanto, é fundamental distinguir a luta pela terra da luta pela Reforma Agrária. Primeiro, porque a luta pela terra sempre aconteceu, com ou sem projetos de Reforma Agrária. Segundo, porque a luta pela terra é feita pelos trabalhadores e na luta pela Reforma Agrária participam diferentes instituições.
Na realidade, a diferenciação da luta pela terra da luta pela Reforma Agrária é fundamental, porque a primeira acontece independentemente da segunda. Todavia as duas são interativas. Durante séculos, os camponeses desenvolveram a luta pela terra sem a existência de projeto de Reforma Agrária. O primeiro projeto de Reforma Agrária do Brasil é da década de sessenta — o Estatuto da Terra —, elaborado no início da ditadura militar e que nunca foi implantado. A luta pela Reforma Agrária é uma luta mais ampla, que envolve toda a sociedade. A luta pela terra é mais específica, desenvolvida pelos sujeitos interessados. A luta pela Reforma Agrária contém a luta pela terra. A luta pela terra promove a luta pela Reforma Agrária.
Essa distinção nos ajuda a compreender que ainda não foi implantado um projeto de Reforma Agrária no Brasil, como o governo federal defende, mas está acontecendo uma intensificação da luta pela terra, por meio do crescimento das ocupações massivas, realizadas por diversos movimentos sociais, principalmente pelo MST. Na realidade, nos últimos quatro anos, o aumento do número de assentamentos foi resultado da territorialização do MST, que em duas décadas multiplicou intensamente o número de ocupações em todo o país. A política de assentamentos do governo federal e de alguns governos estaduais é apenas uma resposta às ações dos sem terra. Essa política não existiria sem as ocupações.
A resistência camponesa: o princípio
Há 500 anos, desde a chegada do colonizador português, começaram as lutas contra o cativeiro, contra a exploração e conseqüentemente contra o cativeiro da terra, contra a expulsão, que marcam as lutas dos trabalhadores. Das lutas dos povos indígenas, dos escravos e dos trabalhadores livres e, desde o final do século passado, dos imigrantes, desenvolveram-se as lutas camponesas pela terra. Lutas e guerras sem fim contra a expropriação produzida continuamente no desenvolvimento do capitalismo.
Durante os séculos XVI e XVII aconteceram diversas lutas indígenas contra o cativeiro. De Norte a Sul, Potiguares, Tamoios e Guaranis lutaram contra a invasão de seus territórios e contra a escravidão. Nesse tempo, a escravidão indígena foi sendo substituída pela escravidão dos povos trazidos da África. No final do século XVI, havia mais de 15 mil africanos escravizados trabalhando nos engenhos. Também data dessa época a existência do primeiro quilombo. O quilombo era um território de resistência. Era terra de negro, onde reinava a liberdade. Nesses espaços viviam alguns índios e também trabalhadores livres e marginalizados.
O maior quilombo da história da resistência ao cativeiro foi Palmares. No final do século XVII, em torno de 20 mil pessoas viviam neste território de resistência. Foram muitos os quilombos que se formaram por todo o Brasil. Quilombos foram atacados, destruídos e novos quilombos foram erguidos em três séculos de luta contra uma das mais cruéis formas de exploração: o cativeiro. Nessas lutas foi enfrentado e destruído o insustentável sistema escravocrata.
A resistência camponesa: o entretanto
Na segunda metade do século XIX, para fazer avançar o sistema capitalista, no Brasil foi criada a propriedade da terra e em seguida os escravos tornaram-se trabalhadores livres. Quando escravos, os trabalhadores eram vendidos como mercadorias e como produtores de mercadorias. Como trabalhadores livres, vendiam sua força de trabalho ao ex-escravocrata, então fazendeiro-capitalista. Permanecera a separação entre os trabalhadores e os meios de produção. Com a constituição da propriedade da terra mais de trinta anos antes do fim do sistema escravocrata, a terra tornara-se cativa. De modo que os escravos tornaram-se livres e sem terra.
O trabalho livre expandiu-se com a chegada do imigrante europeu. Se por um lado o antigo escravo passou a ser dono de sua força de trabalho, o imigrante europeu, camponês expulso de sua terra, era livre somente por possuir a sua força de trabalho. Se para o escravo a força de trabalho era o que conseguira, para o imigrante era o que restara. Portanto, agora, a luta pela liberdade desdobrara, igualmente, na luta pela terra.
Todavia, os ex - senhores de escravos transformados em senhores da terra passaram a grilar a terra. E para construírem a trama que dominaria as terras do Brasil, exploraram os trabalhadores. Estes transformaram florestas em fazendas de café ou de gado, mas foram expropriados, expulsos, sempre sem terra. Assim, nasceu o posseiro, aquele que possuindo a terra, não tem o seu domínio. A posse era fruto do trabalho e o domínio era resultado do poder.
Para a formação das fazendas desenvolveu-se um processo de grilagem de terras. As terras devolutas foram apropriadas por meio de falsificação de documentos, subornos dos responsáveis pela regularização fundiária e assassinatos de trabalhadores. Assim, os grileiros — verdadeiros traficantes de terra — formaram os latifúndios. Os camponeses trabalhavam na derrubada da mata, plantavam nessas terras até a formação das fazendas, depois eram expropriados. Aos que resistiram na terra, o poder do coronel era explicitado pela perseguição e morte. Dessa forma, os camponeses sem terra formavam fazendas que eram apropriadas pelos coronéis.
Territórios indígenas, terras de camponeses-posseiros invadidas por grileiros. A migração como sobrevivência e resistência, procurando se distanciar da cerca e do cerco do latifúndio. Os diversos enfrentamentos geraram a morte, muitas vezes o massacre e o genocídio. A violência contra esses povos delimitaria as extensões históricas do latifúndio. Em todo o tempo e em todo o espaço, a formação do latifúndio frente à resistência camponesa determinaria a realidade da questão agrária.
O fim do cativeiro humano aconteceu quase 40 anos depois de ter sido instituído o cativeiro da terra. Assim, os escravos libertos que deixaram as fazendas migraram pelas estradas, por onde encontraram terras cercadas. Quando acampavam nas fazendas, os coronéis convocavam a polícia para expulsá-los. Igualmente, os camponeses europeus continuaram neste país, suas caminhadas em busca da terra. Migraram por e para diferentes regiões, lutando contra o latifúndio. Muitos de seus filhos e netos ainda continuam migrando. A maioria absoluta desses trabalhadores começou a formar uma categoria, que ficaria conhecida no final do século XX, como Sem Terra.
A migração e a peregrinação como esperança de chegar à terra liberta são marcas da história do campesinato brasileiro. Na luta contra o cerco da terra e da vida, surgiram várias formas de resistência. Lutar contra as cercas era lutar contra o coronelismo, porque os latifundiários foram senhores absolutos e dominavam a terra e a vida dos camponeses. Na Bahia, camponeses sem terra terminaram uma longa peregrinação no arraial de Canudos. Era um movimento social messiânico que não se submeteu à ordem coronelista e latifundiária. E, por essa razão, foram declarados inimigos de guerra.
E assim começou a guerra contra os camponeses. Canudos foi o maior exemplo da organização de resistência camponesa do Brasil. Os camponeses sem terra acamparam na fazenda Canudos em 1893 e passaram a chamar o lugar de Belo Monte. A organização econômica se realizava por meio do trabalho cooperado, o que foi essencial para a reprodução da comunidade. Todos tinham direito à terra e desenvolviam a produção familiar, garantindo um fundo comum para uma parcela da população, especialmente os velhos e desvalidos, que não tinham como subsistir dignamente.
Foram acusados de defender a volta da monarquia. Expedições militares de quase todo o Brasil atacaram mais de 10 mil camponeses. De outubro de 1896 a outubro de 1897, os ataques do exército foram enfrentados e refreados até o cerco completo e o massacre do povo de Canudos. "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo... caiu no dia 5 de outubro de 1896, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". Foi a guerra mais trágica, mais violenta do Brasil.
Esta guerra representou o desdobramento das disputas pelo poder, entre os coronéis e o governo. Derrotar Canudos significava mais força política entre militares e civis, ligados ao interesse da economia da monocultura cafeeira. Para os sertanejos, combater os republicanos, tinha, antes de mais nada, o sentido de lutar contra os inimigos dos trabalhadores: os fazendeiros e os militares.
Fechava-se o século XIX com uma guerra contra os camponeses e abria-se o século XX com outra. No Sul do Brasil, no Paraná e em Santa Catarina, também, os coronéis controlavam a terra e a vida dos camponeses. Na primeira década deste século, na região fronteiriça desses Estados, começara outro movimento de resistência.
A entrega de terras à empresa norte-americana para a construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande, gerou a expropriação de camponeses, que organizaram a resistência. Em 1912, em Campos Novos - SC, formara-se um movimento camponês de caráter político-religioso. Foram vários enfrentamentos com a polícia, contra o Exército e contra jagunços. Milhares de camponeses foram assassinados. Vencidos, reorganizavam-se e retomavam as lutas de resistência até o massacre final.
Da mesma forma no Contestado, como em Canudos e em diversos outros movimentos messiânicos que ocorreram no Brasil, os camponeses foram destroçados. Foram movimentos populares que acreditaram na construção de uma organização em oposição à república dos coronéis, da terra do latifúndio e da miséria. Em nome da defesa e da ordem, os latifundiários e o governo utilizaram as forças militares, promovendo guerras políticas. Não era a monarquia que combatiam, mas sim a insurreição dos pobres do campo.
A revolta contra o cerco e a submissão gerou novas formas de resistência. Na primeiras décadas do século XX, nas terras do Nordeste, onde a expulsão e a perseguição até a morte eram coisas comuns aos camponeses, surgiu uma forma de banditismo social que ficou conhecida como cangaço. Tornar-se cangaceiro era decorrência da ação em defesa da própria dignidade e da vida de sua família. Nas terras onde e lei não alcança o coronel porque ele é ou está acima da lei, restou bem pouco à resistência camponesa a não ser a rebelião.
O cangaço foi uma forma de organização de camponeses rebeldes que atacavam fazendas e vilas. Os grupos eram formados, principalmente, por camponeses em luta pela terra., expulsos de suas terras pelos coronéis. Os cangaceiros replicavam, vingando-se em uma ou mais pessoas da família do fazendeiro. Os diferentes grupos cangaceiros desenvolviam suas ações por meio de saques nas fazendas e nas casa comerciais. Essa forma de banditismo colocava em questão o próprio poder do coronelismo.
A forma de organização desde os movimentos messiânicos até os grupos de cangaceiros demarcavam os espaços políticos da revolta camponesa. Eram conseqüências do cerco à terra e à vida. Embora fossem lutas localizadas, aconteciam em quase todo o território brasileiro e representaram uma importante força política que desafiava e contestava incessantemente a ordem instituída. São partes da marcha camponesa que percorre o espaço da história do Brasil.
A resistência camponesa: a organização
Os camponeses sempre enfrentaram o latifúndio e se opuseram ao Estado representante da classe dominante. Assim, a resistência camponesa manifesta-se em diversas ações que sustentam formas distintas e se modificam em seu movimento. Desde meados do século XX, novas feições e novas formas de organização foram criadas na luta pela terra e na luta pela Reforma Agrária: as Ligas Camponesas, as diferentes formas de associações e os sindicatos dos trabalhadores rurais.
Em todo o país, diversos conflitos e eventos foram testemunhos da organização camponesa no início da segunda metade do século XX. As lutas dos pequenos proprietários, dos arrendatários e dos posseiros para resistirem na terra, juntamente com as lutas dos trabalhadores assalariados e os congressos camponeses, desenvolveram o processo de organização política do campesinato. Crescia a luta pela Reforma Agrária e o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e a Igreja Católica, entre outras instituições, disputaram esse espaço político, interessadas nesse processo.
As Ligas Camponesas surgiram por volta de 1945. Elas foram uma forma de organização política de camponeses que resistiram a expropriação e a expulsão da terra. Sua origem está associada a recusa ao assalariamento. Foram criadas em quase todos os Estados brasileiros e tinham o apoio do PCB, do qual eram dependentes. Em 1947, o governo decretou a ilegalidade do partido e com a repressão generalizada, as Ligas foram violentamente reprimidas, muitas vezes pelos próprios fazendeiros e seus jagunços.
Em Pernambuco, em 1954, as ligas ressurgiram e se organizaram em outros Estados do Nordeste, bem como em outras regiões. Neste mesmo ano, o PCB criou a ULTAB (União do Lavradores e Trabalhadores Agrícolas), que se organizou em quase todo o território nacional. Com essa forma de organização, o partido pretendia realizar uma aliança camponesa operária. Em 1962, as Ligas realizaram vários encontros e congressos, promovendo a criação de uma consciência nacional em favor da Reforma Agrária. A ação das Ligas era definida na luta pela Reforma Agrária radical, para acabar com o monopólio de classe sobre a terra. Em suas ações, os camponeses resistiam na terra e passaram a realizar ocupações.
O crescimento da luta pela terra dimensionava a questão agrária, colocando a Reforma Agrária na pauta política. Esse avanço foi acompanhado por disputas pela sua representação. A ULTAB era controlada pelo Partido Comunista. A Igreja Católica estava dividida em dois setores: o conservador e o progressista. O primeiro, no Rio Grande do Norte, criou o Serviço de Assistência Rural. Em Pernambuco criou o Serviço de Orientação Rural e no Rio Grande do Sul a Frente Agrária Gaúcha. O segundo setor da ação católica era liderado pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e formou o Movimento de Educação de Base, que trabalhava com a alfabetização e com a formação política dos camponeses.
No Rio Grande do Sul surgiu, no final da década de cinqüenta, o Master (Movimento dos Agricultores Sem-Terra). Os agricultores sem terra eram assalariados, parceiros e também os pequenos proprietários e os filhos destes. Em 1962, os sem terra começaram a organização de acampamentos e territorializaram a luta por todo o Estado. Receberam o apoio do Partido Trabalhista Brasileiro do então governador Leonel Brizola e ficaram circunscritos ao Rio Grande. Com o golpe militar de 1964, todos esses movimentos camponeses foram aniquilados.
De 1940 e 1964, esse tempo foi abundante em lutas de resistência pela conquista da terra. Em Minas Gerais, nos vales dos rios Mucuri e Doce, os posseiros formaram vários movimentos camponeses e resistiram a expropriação. Na região de Governador Valadares, em Minas Gerais, desde o início da década de quarenta, os posseiros enfrentaram fazendeiros interessados naquelas terras, por causa da construção da rodovia Rio-Bahia. Para formar fazendas, os fazendeiros impuseram aos posseiros a condição de derrubar a mata para a formação de pastos, e só poderiam plantar para a subsistência.
Ainda, nos vales dos rios Mucuri e Doce, agora no Espírito Santo, na porção noroeste do Estado, ocorreram vários conflitos, onde muitos camponeses foram assassinados pela Polícia Militar e jagunços. Nessa região está localizado o município de Ecoporanga. No final da década de 40, a região era contestada pelos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Essas terras estavam ocupadas por posseiros e passaram a ser disputadas por fazendeiros-grileiros, que procuravam tirar vantagem daquela situação indefinida.
Em Goiás, no norte do Estado, com a construção da Transbrasiliana e por causa do projeto de colonização promovido pelos governos federal e estadual, as terras da região foram valorizadas. As terras devolutas, ocupadas por posseiros, passaram a ser griladas por fazendeiros. O processo de legalização fundiária foi feito por meio de documentos falsos. Iniciou-se um processo de resistência nos povoados de Trombas e Formoso, que foram atacados por jagunços e pela Polícia Militar. Os camponeses resistiram e as lutas multiplicaram-se por todo o Estado até serem dizimadas pelo governo militar.
No norte e no sudoeste do Estado do Paraná, ocorreram diversos conflitos por terra. Na região de Porecatu aconteceu um enfrentamento armado entre posseiros e a polícia. Desde meados da década de 40, os posseiros estavam em luta com um grande latifundiário, que recebia proteção do governador do Estado, envolvido em negócios irregulares com a compra e venda de terras. No sudoeste do Estado, também aconteceram manobras ardilosas com as terras devolutas, entre o governo e latifundiários, gerando conflitos com os trabalhadores que lá viviam.
No Maranhão, em meados da década de 50, na região do Pindaré chegaram famílias expulsas do vale do Mearin, que foram expulsas do Piauí e que já vinha expulsas do sertão do Ceará. Nessa mesma época, iniciou o processo de grilagem da região, expulsando novamente muitas famílias, que partiram para o oeste e sudoeste do Maranhão, sempre em busca da terra liberta e da conquista da liberdade. Assim, camponeses migrantes e expulsos chegaram na região que depois se tornaria conhecida como Bico do Papagaio. Desde essa época iniciaram os conflitos entre grileiros e posseiros que transformaria região em uma das mais violentas do Brasil, com intensos conflitos por terra e de continua resistência dos camponeses.
Durante toda a história do Brasil, os camponeses, bem como todos os trabalhadores, foram mantidos à margem do poder, por meio da violência. Nos grandes projetos nacionais não foram considerados. Ao contrário, foram julgados como obstáculos que precisavam ser removidos. Em 1964, os militares tomaram o poder, destituindo o presidente eleito João Goulart, numa aliança política, em que participaram diferentes setores da burguesia: latifundiários, empresários, banqueiros etc.
O golpe significou um retrocesso para o país. Os projetos de desenvolvimento implantados pelos governos militares levaram ao aumento da desigualdade social. Suas políticas aumentaram a concentração de renda, conduzindo a imensa maioria da população à miséria, intensificando a concentração fundiária e promovendo o maior êxodo rural da história do Brasil. Sob a retórica da modernização, os militares aumentaram os problemas políticos e econômicos, e quando deixaram o poder, em 1985, a situação do país estava extremamente agravada pelo que fora chamado de "milagre brasileiro".
No campo, o avanço do capitalismo fez aumentar a miséria, a acumulação e a concentração da riqueza. Esse processo transformou o meio rural com a mecanização e a industrialização, simultaneamente a modernização tecnológica de alguns setores da agricultura. Também expropriou, expulsou da terra os trabalhadores rurais, causando o crescimento do trabalho assalariado e produzindo um novo personagem da luta pela terra e na luta pela Reforma Agrária: o bóia-fria.
Em seu pacto tácito, os militares e a burguesia pretendiam controlar a questão agrária, por meio da violência e com a implantação de seu modelo de desenvolvimento econômico para o campo, que priorizou a agricultura capitalista em detrimento da agricultura camponesa. Ainda, o governo da ditadura ofereceu aos empresários subsídios, incentivos e isenções fiscais, impulsionando o crescimento econômico da agricultura e da indústria, enquanto arrochava os salários, estimulava a expropriação e a expulsão, multiplicando os despejos das famílias camponesas. Essas ações políticas tiveram efeitos na questão agrária, intensificando ainda mais a concentração fundiária,
O Brasil se transformara no paraíso dos latifundiários e os camponeses foram forçados a migração pelo território brasileiro e para o Paraguai. O ataque contra os trabalhadores, e especificamente contra os camponeses, agregou novos elementos à questão agrária, aumentado e expandido os conflitos, fazendo eclodirem as lutas camponesas.
De meados da década de 60 até o final da década de 70, as lutas camponesas eclodiam por todo o território nacional, os conflitos fundiários triplicaram e o governo, ainda na perspectiva de controlar a questão agrária, determinou a militarização do problema da terra. A militarização proporcionou diferentes e combinadas formas de violência contra os trabalhadores. A violência do peão que é o jagunço da força privada, muitas vezes com o amparo da força pública. A violência da polícia, escorada na Justiça desmoralizada, que decretou ações contra os trabalhadores, utilizando recursos dos grileiros e grandes empresários, defendendo claramente e tão somente os interesses dos latifundiários. No ano derradeiro do governo militar, 1985, os jagunços dos latifundiários e a polícia assassinavam um trabalhador rural a cada dois dias.
No começo dos anos 60, nasceram as primeiras CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base). Em meados dos anos 70, elas existiam em todo o País. No campo e na cidade foram importantes lugares sociais, onde os trabalhadores encontraram condições para se organizar e lutar contra as injustiças e por seus direitos. À luz dos ensinamentos da Teologia da Libertação, as comunidades tornaram-se espaços de socialização política, de libertação e organização popular. Em 1975, A Igreja Católica criou a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Trabalhando juntamente com as paróquias nas periferias das cidades e nas comunidades rurais, a CPT foi a articuladora dos novos movimentos camponeses que insurgiram durante o regime militar.
Ao reprimir a luta pela terra e não realizar a Reforma Agrária, os governos militares tentaram restringir o avanço do movimento camponês. Com a implantação do atual modelo de desenvolvimento econômico da agropecuária, apostou-se no fim do campesinato. No entanto, por causa da repressão política e da expropriação resultantes do modelo econômico, nasceu o mais amplo movimento camponês da história do Brasil: o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
A luta marca a vida e fica na memória. Aos que lutam, a memória persiste e jamais se esquece da história. Foi assim que em 1979, no dia 7 de setembro, 110 famílias ocuparam a gleba Macali, no município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul. Essa ocupação inaugurou o processo de formação do MST. As terras da Macali eram remanescentes das lutas pela terra da década de sessenta, quando o Master organizara os acampamentos na região. Portanto, a luta pela conquista destas terras estava registrada na memória dos camponeses, que agora participavam de uma luta maior: a luta pela construção da democracia.
No inicio da década de oitenta, as experiências com ocupações de terra nos Estados do Sul e em São Paulo e Mato Grosso do Sul, reuniram os trabalhadores que iniciaram o processo de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A construção do Movimento se constituiu na interação com outras instituições, especialmente a Igreja Católica, por meio da CPT. Aprendendo com história da formação camponesa, na sua caminhada o MST construiu o seu espaço político, garantido a sua autonomia, uma das diferenças com os outros movimentos camponeses que o precederam.
O MST leva na memória a história camponesa que está construindo. Esse conhecimento explica que o fato dos camponeses não terem entrado na terra até os dias de hoje é político. É a forma estratégica de como o capital se apropriou e se apropria do território. Portanto, as lutas pela terra e pela Reforma Agrária são antes de mais nada, a luta contra o capital. É essa luta que o MST vem construindo nessa história que completa 500 anos.
A resistência camponesa: o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra
De 1979 a 1985, os trabalhadores sem terra reuniram as principais lutas e fundaram o MST. Essas lutas foram realizadas no Centro-Sul e representaram o processo de formação do Movimento. Em janeiro de 1984, no município de Cascavel - PR, os sem terra fundaram o MST e partiram para a construção de um movimento nacional. Com a realização do Primeiro Congresso em 1985, na cidade de Curitiba, abriram caminhos para a organização do Movimento nas regiões Nordeste e Amazônia, territorializando a luta pela terra. Nesse período de reconstrução da democracia no Brasil e início da Nova República, os camponeses sem terra definiram a ocupação da terra como forma de resistência da luta camponesa.
Em 1985 foi apresentado à sociedade o Plano Nacional de Reforma Agrária. Em quatro anos, menos de 10% do previsto no Plano foi realizado. Em parte, as desapropriações ocorreram porque os sem terra intensificavam as ocupações de terra. Por essa razão surgiu a UDR (União Democrática Ruralista), organização dos latifundiários criada para defender seus privilégios e interesses. Em 1988, essa organização conseguiu minar a criação de uma lei de Reforma Agrária no processo Constituinte e inviabilizou a solução para a questão agrária.
O processo de territorialização do MST aconteceu por meio da construção do espaço de socialização política. Nas periferias das cidades, os sem terra organizados realizaram levantamentos das realidades da luta pela terra nos municípios. Com o apoio da Igreja Católica, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e de partidos políticos, reuniram as famílias para refletirem sobre suas vidas e as perspectivas de vida e trabalho. Formaram organizações locais, analisaram as conjunturas políticas por meio da construção de conhecimentos e tomaram decisões para transformar os seus destinos. Esses trabalhos foram feitos pelos próprios sem terra, que têm na experiência de vida a história da luta. Dessa forma, dimensionam os espaços de socialização política e os transformam em espaços de luta e resistência.
Os espaços de luta e resistência são materializados na ocupação da terra. A ocupação é condição da territorialização. A terra conquista é uma fração do território, onde os sem terra se organizam para promoverem um novo grupo de famílias que irá realizar uma nova ocupação, conquistando outra fração do território. Assim, a luta se renova e se amplia, territorializando-se. Dessa forma, os sem terra migram por todo o território nacional, plantando as raízes da luta e minando a concentrada estrutura fundiária.
Em 1989, a Reforma Agrária saiu da pauta política do governo federal, com a eleição de Fernando Collor, árduo defensor dos latifundiários. Começaram as mais fortes repressões contra os sem terra, que não se limitavam nas ações da força policial, e se valiam também da intervenção do Poder Judiciário como uma nova cerca para impedir as ocupações, por meio da incultivável criminalização das ações das famílias sem terra. Criou-se, assim, a judiciarização da luta pela terra e pela Reforma Agrária, resultando em prisões e massacres de camponeses sem terra. Embora esse processo seja histórico, com o aumento das ocupações, o Poder Judiciário mostrou sua face, descoberta pela realidade construída pelos sem terra.
Por causa de tamanha repressão e sem perspectiva de fazer a luta pela terra avançar, os sem terra voltaram-se para outra dimensão organizativa, investindo no desenvolvimento do Sistema Cooperativista dos Assentados, criando cooperativas locais e regionais. Desse modo, o MST fundou a Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil). Esse fortalecimento da luta promoveu a territorialização do Movimento, que a cada dia contava com o apoio da sociedade, enquanto o presidente fora impedido pelo Congresso Nacional, por ser criador e criatura de um profundo e não explicado processo de corrupção.
Em 1992, a FAO — órgão das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação — apresentou o relatório de uma pesquisa nacional a respeito da realidade econômica dos assentamentos, em que demonstrava a sustentabilidade das experiências dos assentados na consolidação da agricultura camponesa. A luta pela Reforma Agrária tinha uma nova amplitude: construir um outro modelo de desenvolvimento para a agropecuária. Durante séculos, o desenvolvimento do campo esteve referenciado nos padrões do latifúndio e da agricultura capitalista. Agora será preciso pensar um modelo para a agricultura familiar, em que o campesinato seja o principal protagonista.
Em 1994, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, a Reforma Agrária torna-se uma política compensatória, com a implantação de assentamentos rurais, de acordo com a territorialização da luta pela terra e, também, com a regularização das terras de posseiros nas áreas de fronteira da Amazônia.
Nesse ano, o MST estava territorializado por todas as regiões e se consolidava como uma das principais forças políticas do país. O governo FHC ampliou a política neoliberal, que vinha sendo implanta desde o governo Collor, agudizando a crise da agricultura, transformando muitos camponeses em sem terra, entre outros fatores econômicos que atingiram a classe trabalhadora.
Da mesma forma, o desenvolvimento tecnológico da agricultura patronal contribuiu para o desemprego de milhões de trabalhadores assalariados. Esses problemas aumentaram a população na luta pela terra e por conseguinte multiplicaram os conflitos fundiários, que resultam no assassinato de trabalhadores. Segundo pesquisa da Comissão Pastoral da Terra, nos 20 anos da ditadura militar (1964 –1984), foram assassinados 42 trabalhadores por ano. De 1985 a 1989, esse número triplicou e chegou a 117 assassinatos por ano. De 1990 a 1993, morreram 52 pessoas na luta pela terra. No período governo FHC (1994 – 1997), esse número foi 43 pessoas assassinadas por ano. Número maior que do período da ditadura.
Em 1995, em Rondônia, na porção ocidental da Amazônia, aconteceu o primeiro grande conflito, no governo FHC, que resultou na chacina de 9 sem terra e dezenas de feridos e desaparecidos. Naquele ano, 500 famílias haviam ocupado uma fazenda no município de Corumbiara. Por ordem da Justiça, 300 policiais realizaram o despejo das famílias de forma violenta. Aquela ação era um indicador que nada mudara na luta pela terra e a resistência camponesa.
De fato, um ano depois, no dia 17 de abril, agora na porção oriental da Amazônia, outro massacre aconteceu. No município de Eldorado dos Carajás, no Pará, centenas de famílias sem terra caminhavam por uma rodovia em direção à cidade de Belém, quando foram surpreendidas pela ação policial. Resistiram e foram massacradas. A ação violenta da Polícia Militar causou 19 mortes e dezenas de feridos. A caminhada tinha como objetivo pressionar o governo para que as famílias fossem assentadas. O MST denominou o dia 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa.
A impunidade dos assassinos e de seus mandantes também continua sendo uma realidade, em que o Poder Judiciário é inoperante. Uma liminar de reintegração de posse com ordem de despejo é expedida em horas. Um julgamento de assassinos de trabalhadores demora anos e, na maioria absoluta das vezes, os criminosos não são condenados.
Desde 1994, com o aumento da intensidade do problema fundiário, surgiram novos movimentos sociais na luta pela terra. Alguns como dissensão do MST, outros formados a partir de suas próprias lutas. O desemprego gera uma demanda crescente, principalmente nas médias e pequenas cidades. Uma opção para os trabalhadores rurais e urbanos é a luta pela terra. Dessa forma, é constante a formação de um movimento social no interior do Brasil. Os latifúndios estão em toda a parte, assim como os sem terra.
Em 1997, o MST realizou a Marcha Nacional por Terra, Emprego e Justiça. Duas mil pessoas partiram de três diferentes pontos do país em direção ao Distrito Federal. A caminhada durou dois meses e na chegada em Brasília tornou-se o principal assunto, chamando a atenção e ganhando a admiração do Brasil e do mundo. Chegaram no dia 17 de abril, lembrando e registrando na memória de toda a sociedade o massacre de Eldorado dos Carajás.
O MST atua numa nova conjuntura da questão agrária. O prolongamento dessa questão deve-se ao emperramento causado pelo sobrepoder do latifúndio, que determina o controle político do problema fundiário. Por ser estrutural, o arranjo do problema mantém-se firme, quase inabalável, pelo seu vigor astucioso e fundamentado em um projeto político linear e evolutivo, relacionado com a dependência de uma política internacional.
Durante séculos, os movimentos camponeses tentaram romper com essa estrutura de poder, por meio da luta pela terra. Entretanto, todas as lutas ainda não foram suficientes para uma mudança eminente. Pela sua perenidade, a questão agrária nutre-se de conflitos, assumindo diferentes feições sem modificar sua essência. Portanto, a persistência da questão agrária é um cerco político a um projeto camponês. A questão agrária hoje já não coloca mais a pergunta: quem é contra ou a favor da Reforma Agrária? A sociedade em geral é favorável à sua realização. Mas, como será feita a Reforma Agrária? O que está em questão é a fundamental participação política dos trabalhadores.
O poder e a astúcia dos ruralistas e o papel fundamental do Poder Judiciário em defesa dos interesses e privilégios dos latifundiários e grileiros têm um resultado perverso para a sociedade. Em vários Estados, as propriedades em desapropriação são supervalorizadas pela perícia e pelo Judiciário, tornando as indenizações impraticáveis. Atualmente, o governo federal possui um precatório de 4 bilhões para pagar aos latifundiários. Essas ações inescrupulosas ainda são utilizadas para convencer a sociedade que o melhor para o Brasil é a mercantilização da terra, por meio da venda direta do latifúndio aos sem terra.
Por causa da diminuição do preço da terra, têm muitos latifundiários interessados em vender suas terras. Como o único comprador em potencial é o Estado, a criação de uma política imobiliária é de interesse dos latifundiários para manterem seus privilégios. Dessa forma, os latifundiários transferem suas riquezas para outros setores da economia. Nesse sentido, a Reforma Agrária como política pública de desapropriação precisa ser mantida. Para isso, é fundamental a participação dos trabalhadores.
O Censo Agropecuário de 1995/1996 registrou que a concentração fundiária aumentou. Mesmo a multiplicação das ocupações, o crescimento da luta pela terra na territorialização do MST e a implantação de milhares de assentamentos não foram suficientes para causar alguma mudança na estrutura fundiária, por menor que seja. A luta pela Reforma Agrária passa ser uma das principais políticas do século XXI. E não é uma luta do passado. É uma luta do presente e do futuro, por construir.
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* Bernardo Mançano Fernandes, geógrafo, professor e pesquisador do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista)

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