O permanente estado de espanto-quase-choque em que tenho sido mantido, nos últimos 16 meses (desde que voltei ao Brasil e a São Paulo), pelos atos da dupla Serra-Kassab quase fez com que eu esquecesse das mazelas do Rio de Janeiro.Explico: vou ao Rio quase todas as semanas, para jornadas intensas de trabalho, pesquisa e estudo, mas que trazem em seu bojo o contato com a atmosfera acadêmica mais relax dos fluminenses, além de, eventualmente, alguns finais de noite deliciosos.Assim, e embora eu esteja ciente dos desmandos de Cabralzinho e Maia, criou-se, no meu íntimo, uma espécie de falsa dicotomia, em que São Paulo seria a terra do protofascismo serrista e o Rio o éden onde jorra o leite e o mel.Fui acordado desse transe hipnótico durante um almoço, enquanto degustava o delicioso medalhão ao molho madeira do Universidade do Chopp, em Niterói. Na TV, Márcio Gomes (que é a antítese do carioca e a figura-síntese do jornalismo yuppie) e outra apresentadora, simpática como um sabonete mas cujo nome não guardei, apresentavam o RJ TV.Primeiro veio uma reportagem, mais longa do que o habitual, sobre a greve dos professores estaduais. A manipulação é tão evidente que é preciso ser Eremildo, o Idiota, para não percebê-la: a locutora introduz, em palavras poucas e que nada de essencial explicam, a greve, enfatizando sua duração. Corte para o “sofrimento dos alunos”, que não têm aulas e, em seguida, para o Secretário Estadual de Educação, que, em seu gabinete e metido num terno cheio de firulas, fala por longos minutos, afirmando não estar aberto a negociações – um democrata inato, como se vê.Ouvir o outro lado? A apresentadora-sabonete, com cara de quem lambeu sabão, limita-se a ler uma brevíssima declaração do representante do sindicato dos professores – uns 3 segundos, se tanto. Não é preciso ser especialista em Análise do Discurso para perceber a assimetria no tratamento dos dois pólos em disputa.Até porque, hoje em dia, essa gramática televisiva parece estar evidente para muitos. Tão logo a matéria acabou, uma senhora vestida com simplicidade e sem apresentar nenhum cacoete acadêmico ou exibição de veleidades intelectuais, fez um discurso desvelando, para espanto dos comensais, tintin por tintin a situação dos professores que o “jornalismo” recém-praticado ocultara. (Era professora do depto. de Pedagogia da UFF, vim a saber depois).Mas a matéria omitia informações ainda mais graves. Ocorrera violência e acusação de emprego exagerado da força pelos policiais encarregados de reprimir a passeata que os professores promoveram no centro do Rio no dia anterior – e que acabou com uma prisão e bombas lançadas contra os que protestavam. Essas informações o RJ TV sonegou a seus telespectadores (mas você pode lê-las aqui), assim como também não informou o dado essencial de que os professores estaduais do Rio estão há 13 anos sem aumento salarial.Mas não para por aí. O almoço, saboroso ao paladar mas indigesto à mente, reservava ainda mais exemplos de bom jornalismo: uma longa reportagem mostrava o que o telejornal chamava de “os problemas” de Madureira - mais exatamente, de seu famoso mercadão popular, onde um repórter que faz a linha extrovertido/cara-de-pau, chato como um pernilongo, comanda o show de moralismo raso, digo, o jornalismo de utilidade pública da prestativa emissora.Ele entrevista – melhor seria dizer inquere - uma senhora que tira seu ganha-pão das cadeiras e lixeiras de plástico que vende. Seu crime? Sua mercadoria não se limita ao espaço da barraca, ocupando meio palmo de calçada. O repórter insiste tanto com a coitada por conta dessa grave violação do espaço urbano – ameaçando, como a típica pequena autoridade, que logo passearia com o administrador regional pelo mercado - que, confesso, me causou vergonha alheia. Pensei no simpático povo de Madureira, berço do samba e das feijoadas da Portela, tendo que aturar aquele pentelho.Como já posso ter escrito em algum lugar deste blog, acho o grande compositor e cantor Caetano Veloso uma zebra quando abre a boca para fazer outra coisa que não cantar. Mas reconheço que, ainda assim, ele tem seus momentos. Sobre jornalismo, ele cunhou uma frase definitiva: “devemos ler os jornais psicologicamente”. Note, caro(a) leitor(a), que ele não se referiu a terceiras intenções, subtextos ou interesses dissimulados – mas à necessidade de desvelamento dos mecanismos inconscientes de produção da notícia.Trata-se de um referencial essencial para chegarmos à razão de ser de minha crítica às matérias do RJ TV aqui citadas: elas são a expressão de um mecanismo de compensação. Impedida, por razões óbvias – que vão de suas alianças político-econômicas à violência urbana que já vitimou até mesmo seus jornalistas no passado – de retratar os problemas reais do Rio de Janeiro, a Globo vinga-se de sua própria incompetência e de seu rabo preso elegendo bodes expiatórios, como professores - uma das categorias profissionais mais sistematicamente aviltadas neste país - e a pobre coitada que se utiliza de alguns centímetros de calçada para ganhar a vida. Eis a essência do neoudenismo: desierarquizar problemas, enfatizando os falsos para que encubram os verdadeiros, em relação aos quais se omite.Ao final do almoço, enquanto saboreava o quindim que o simpático restaurante franqueia aos clientes, meditava: são duas faces de uma mesma moeda, o protofascismo paulista e o neoudenismo fluminense – ambos perpassados por uma mídia omissa e que os estimula. Até quando?
Texto Original publicado em: http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com/
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