por Reinaldo José Lopes
Está difícil pensar em qualquer outra coisa que não seja o apocalipse porcino nesta semana (ainda mais trabalhando com jornalismo em tempo real. *Suspiro*.) Portanto, melhor usar a histeria (?) em favor de uma lição arqueológica importantíssima: como a domesticação de porcos e outros animais transformou a saúde das sociedades humanas. Em muitos casos, para pior -- muito pior.
Colocando a coisa de forma um tanto resumida e simplificada, é quase certo que a nossa espécie só enfrenta doenças infecciosas de avanço rápido e potencialmente letais porque aprendeu a criar outros bichos em larga escala. Gripe (claro!), varíola, coqueluche, sarampo, cólera, difteria, tifo, tuberculose -- antes do desenvolvimento de antibióticos e da medicina moderna em geral, dá para imaginar como essa listinha matava gente. Acontece que todas essas doenças começaram sua "carreira" como zoonoses, a julgar pela proximidade genética dos patógenos responsáveis por elas com vírus ou microrganismos carregados por animais domésticos.
A tese é um dos elementos proeminentes do já clássico livro "Armas, Germes e Aço", do biogeógrafo americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles -- daí o título deste post. É só olhar para o processo que transformou javalis (como o simpático bicho da foto acima) em porquinhos domésticos para se dar conta de que a dinâmica epidemiológica virou do avesso por causa da domesticação.
Densidades, densidadesPrimeiro, mal dá para comparar as densidades populacionais de humanos e bichos antes dos eventos de domesticação e depois dos eventos de domesticação. É verdade que mamíferos de grande porte como cavalos, javalis, ovinos e bovinos selvagens já viviam em bandos antes de virar criaturas de fazenda, mas raramente tantos bichos eram confinados em espaços tão pequenos quanto por obra e graça da ação humana.
E, claro, houve um feedback positivo entre população de animais domésticos e população humana. A quantidade de proteína animal (carne e leite), combustível (fezes), adubo (fezes again), matéria-prima (ossos) e agasalho (peles) disponível para criadores de grandes mamíferos é exponencialmente superior à que podia ser adquirida pelo melhor dos caçadores-coletores. Junte a isso a agricultura e você tem, claro, a possibilidade de sustentar muito mais gente no mesmo espaço de terra. Com sorte, esse excedente de gente, também graças aos bichos, fica até mais móvel, podendo se deslocar e colonizar novas terras no lombo de cavalos, bois, jumentos e búfalos.
Pare para pensar um instante em quão antinatural (do ponto de vista dos 6 milhões de anos de evolução humana) é essa situação dos últimos dez milênios. A chance de contato próximo com grandes mamíferos ou mesmo bandos de aves que os caçadores-coletores tinham era minúscula. Neguinho dava graças a todos os deuses se abatesse um bisão por mês. Só que agora você tem um monte de gente e um monte de bicho amontoado no mesmo assentamento -- pessoas mexendo com esterco, carne, sangue, banha e sabe-se lá o que mais de vaquinhas, porquinhos e cabrinhas. (O "sabe-se lá o que mais" não é só pra efeito dramático. Em Papua-Nova Guiné, mulheres de certos tribos amamentam leitões órfãos. É, amamentam leitões.)
Esse cenário inédito não só facilitou a transmissão de doenças entre humanos e animais como também fez com que doenças infecciosas epidêmicas se tornassem autossustentáveis pela primeira vez. Se você é um caçador-coletor e tem o desprazer de ser infectado por um patógeno assassino oriundo, digamos, de macacos, tem o grande consolo de saber que sua tribo de 50 pessoas vai morrer inteirinha, ou ficar inteirinha imune, rapidão. E a doença muito provavelmente vai ficar por ali mesmo, porque aqueles 50 coitados raramente têm contato com outros grupos.
A coisa muda completamente de figura quando temos densas populações de criadores de animais e agricultores interligadas por rotas de comércio e interação extratribal constante. Agora até patógenos assassinos podem se beneficiar da massa crítica populacional para se espalhar por um ou mais continentes inteiros e fazer muito, muito estrago, coisa um bocado improvável de acontecer na era pré-domesticação.
Vencedores e vencidosDiamond extrai uma conclusão interessante desse raciocínio todo. (Confira, aliás, o trecho da adaptação em documentário do livro dele no vídeo abaixo, o qual trata desse tema.) Quando invasores europeus pisaram nas Américas, na Polinésia e na Austrália pela primeira vez, quem morreu dizimado por varíola, gripe, sarampo e outros flagelos eurasiáticos foram os nativos. Não há nenhum caso de doença oriunda desses locais que tenha detonado os europeus.
Ora, nenhum desses povos domesticou animais em grande escala, com exceção das lhamas incas (as quais, aliás, são o único grande* mamífero domesticado das Américas). Diamond aponta que, junto com a menor densidade populacional, a falta de animais domésticos é a chave. Os europeus eram os herdeiros de um caldeirão de microrganismos transferidos por bichos, o qual matou tanta gente na Eurásia que acabou levando ao surgimento de imunidade entre os conquistadores -- mas não entre os nativos.
Não dá para negar que a conclusão que a gente tira de tudo isso é um tanto sombria. Medidas modernas de higiene e monitoramento contínuo podem ajudar. Mas, se a história serve de guia, a criação intensiva de animais e o contato de seres humanos com eles ainda vai nos dar muitos sustos ligados a epidemias no futuro.
Os povos andinos também domesticaram o porquinho-da-índia. Além disso, quase todas as tribos americanas tinham cães, assim como muitas das polinésias. Nada, no entanto, que se compare em escala ou variedade aos mamíferos domesticados da Eurásia.
Está difícil pensar em qualquer outra coisa que não seja o apocalipse porcino nesta semana (ainda mais trabalhando com jornalismo em tempo real. *Suspiro*.) Portanto, melhor usar a histeria (?) em favor de uma lição arqueológica importantíssima: como a domesticação de porcos e outros animais transformou a saúde das sociedades humanas. Em muitos casos, para pior -- muito pior.
Colocando a coisa de forma um tanto resumida e simplificada, é quase certo que a nossa espécie só enfrenta doenças infecciosas de avanço rápido e potencialmente letais porque aprendeu a criar outros bichos em larga escala. Gripe (claro!), varíola, coqueluche, sarampo, cólera, difteria, tifo, tuberculose -- antes do desenvolvimento de antibióticos e da medicina moderna em geral, dá para imaginar como essa listinha matava gente. Acontece que todas essas doenças começaram sua "carreira" como zoonoses, a julgar pela proximidade genética dos patógenos responsáveis por elas com vírus ou microrganismos carregados por animais domésticos.
A tese é um dos elementos proeminentes do já clássico livro "Armas, Germes e Aço", do biogeógrafo americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles -- daí o título deste post. É só olhar para o processo que transformou javalis (como o simpático bicho da foto acima) em porquinhos domésticos para se dar conta de que a dinâmica epidemiológica virou do avesso por causa da domesticação.
Densidades, densidadesPrimeiro, mal dá para comparar as densidades populacionais de humanos e bichos antes dos eventos de domesticação e depois dos eventos de domesticação. É verdade que mamíferos de grande porte como cavalos, javalis, ovinos e bovinos selvagens já viviam em bandos antes de virar criaturas de fazenda, mas raramente tantos bichos eram confinados em espaços tão pequenos quanto por obra e graça da ação humana.
E, claro, houve um feedback positivo entre população de animais domésticos e população humana. A quantidade de proteína animal (carne e leite), combustível (fezes), adubo (fezes again), matéria-prima (ossos) e agasalho (peles) disponível para criadores de grandes mamíferos é exponencialmente superior à que podia ser adquirida pelo melhor dos caçadores-coletores. Junte a isso a agricultura e você tem, claro, a possibilidade de sustentar muito mais gente no mesmo espaço de terra. Com sorte, esse excedente de gente, também graças aos bichos, fica até mais móvel, podendo se deslocar e colonizar novas terras no lombo de cavalos, bois, jumentos e búfalos.
Pare para pensar um instante em quão antinatural (do ponto de vista dos 6 milhões de anos de evolução humana) é essa situação dos últimos dez milênios. A chance de contato próximo com grandes mamíferos ou mesmo bandos de aves que os caçadores-coletores tinham era minúscula. Neguinho dava graças a todos os deuses se abatesse um bisão por mês. Só que agora você tem um monte de gente e um monte de bicho amontoado no mesmo assentamento -- pessoas mexendo com esterco, carne, sangue, banha e sabe-se lá o que mais de vaquinhas, porquinhos e cabrinhas. (O "sabe-se lá o que mais" não é só pra efeito dramático. Em Papua-Nova Guiné, mulheres de certos tribos amamentam leitões órfãos. É, amamentam leitões.)
Esse cenário inédito não só facilitou a transmissão de doenças entre humanos e animais como também fez com que doenças infecciosas epidêmicas se tornassem autossustentáveis pela primeira vez. Se você é um caçador-coletor e tem o desprazer de ser infectado por um patógeno assassino oriundo, digamos, de macacos, tem o grande consolo de saber que sua tribo de 50 pessoas vai morrer inteirinha, ou ficar inteirinha imune, rapidão. E a doença muito provavelmente vai ficar por ali mesmo, porque aqueles 50 coitados raramente têm contato com outros grupos.
A coisa muda completamente de figura quando temos densas populações de criadores de animais e agricultores interligadas por rotas de comércio e interação extratribal constante. Agora até patógenos assassinos podem se beneficiar da massa crítica populacional para se espalhar por um ou mais continentes inteiros e fazer muito, muito estrago, coisa um bocado improvável de acontecer na era pré-domesticação.
Vencedores e vencidosDiamond extrai uma conclusão interessante desse raciocínio todo. (Confira, aliás, o trecho da adaptação em documentário do livro dele no vídeo abaixo, o qual trata desse tema.) Quando invasores europeus pisaram nas Américas, na Polinésia e na Austrália pela primeira vez, quem morreu dizimado por varíola, gripe, sarampo e outros flagelos eurasiáticos foram os nativos. Não há nenhum caso de doença oriunda desses locais que tenha detonado os europeus.
Ora, nenhum desses povos domesticou animais em grande escala, com exceção das lhamas incas (as quais, aliás, são o único grande* mamífero domesticado das Américas). Diamond aponta que, junto com a menor densidade populacional, a falta de animais domésticos é a chave. Os europeus eram os herdeiros de um caldeirão de microrganismos transferidos por bichos, o qual matou tanta gente na Eurásia que acabou levando ao surgimento de imunidade entre os conquistadores -- mas não entre os nativos.
Não dá para negar que a conclusão que a gente tira de tudo isso é um tanto sombria. Medidas modernas de higiene e monitoramento contínuo podem ajudar. Mas, se a história serve de guia, a criação intensiva de animais e o contato de seres humanos com eles ainda vai nos dar muitos sustos ligados a epidemias no futuro.
Os povos andinos também domesticaram o porquinho-da-índia. Além disso, quase todas as tribos americanas tinham cães, assim como muitas das polinésias. Nada, no entanto, que se compare em escala ou variedade aos mamíferos domesticados da Eurásia.
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