quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A diminuição da violência no campo passa impreterivelmente pela Reforma Agrária




Lugares onde desigualdades, contrastes e violência estão juntos e suscitam debates sobre políticas de mudanças. As regiões Norte e Nordeste do Brasil vivem essa realidade e, a partir dos mapas que precisou fazer para endossar sua tese, o professor Eduardo Girardi concluiu que é preciso realizar políticas especiais para que a situação mude. Dessa forma, ele se posiciona firmemente a favor da Reforma Agrária. “O objetivo da Reforma Agrária é contribuir para diminuir a pobreza, as desigualdades regionais e sociais do Brasil; ela é um problema com relações diretas com a questão ambiental e urbana. Juntamente com essas outras duas questões estruturais do país, a questão agrária se configura como uma etapa cuja transposição é indispensável para promover o real desenvolvimento do país”, afirmou durante a entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Eduardo Paulon Girardi é geógrafo pela Universidade Estadual Paulista, onde também obteve o título de doutor em Geografia. É autor do Atlas da questão agrária brasileira, disponível
neste link.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há alguns dias, levantou-se novamente a questão da necessidade da Reforma Agrária. Como o senhor vê esse debate no Nordeste? A Reforma Agrária é uma política necessária para a região?
Eduardo Paulon Girardi – A
Reforma Agrária é necessária em todo o país e, para que seja efetiva, deve ser realizada em escala nacional. O Nordeste configura um caso prioritário. A Reforma Agrária na região deve considerar principalmente a garantia de condições de produção e a renda mínima aos camponeses, os quais têm grande representatividade na população regional e também no conjunto do Brasil. Em 2000, a população que vivia no campo no Nordeste era de 14,8 milhões de habitantes e representava 30,9% da população total da região e 46,4% da população rural brasileira. Em 2006, havia no Nordeste 7,7 milhões de pessoas envolvidas em atividades laborais nos estabelecimentos agropecuários, sendo que neste conjunto 81,1% (6,2 milhões de pessoas) possuíam relação de parentesco com o produtor, o que indica a importância da agricultura familiar para a região. Se comparado com o total brasileiro, o pessoal ocupado nos estabelecimentos agropecuários do Nordeste e que possui relação de parentesco com o produtor representa 48,6%.
Fragilidade da população
Tomados esses primeiros dados que demonstram a importância do
campo nordestino para o Brasil e para a própria região. Vejamos alguns elementos que explicitam a fragilidade dessa população e a impulsionam a migrar forçadamente para a cidade ou para outras regiões do país, onde se emprega com baixos salários ou até mesmo os trabalhadores são escravizados (os dados dão conta de que 58,9% dos trabalhadores escravizados no campo brasileiro são naturais da região Nordeste). Quando analisado o Índice de Desenvolvimento Humano no Nordeste (IDH), embora tenha havido melhoria do índice entre 1990 e 2000,
Entre 1991 e 2000, o campo nordestino perdeu 1,9 milhões de habitantes, enquanto a região toda apresentou crescimento de 5,2 milhões de pessoas, indicando um intenso êxodo rural
os menores índices do Brasil são verificados na região. Em 2004, o IBGE dava conta de que 58,9% da população do Nordeste (cerca de 29,8 milhões de habitantes) residiam em domicílios com algum tipo de insegurança alimentar. Entre a população urbana, esta taxa era de 56,5% (20,4 milhões de pessoas) e para a zona rural era de 65% (9,3 milhões de pessoas). Entre 1991 e 2000, o campo nordestino perdeu 1,9 milhões de habitantes, enquanto a região toda apresentou crescimento de 5,2 milhões de pessoas, indicando um intenso êxodo rural. Na década de 1990, a migração do Nordeste para outras regiões do país foi de 2,8 milhões de pessoas – a maior migração inter-regional verificada no país no período.
O principal fluxo foi em direção ao Sudeste (quase dois milhões de pessoas) e para o Centro-Oeste (434 mil pessoas) e Norte (381 mil pessoas). A migração para essas duas últimas regiões indica que cerca de 800 mil pessoas, por falta de alternativas, se destinaram à região da
fronteira agropecuária em busca de terra ou trabalho, aumentando a pressão sobre a ocupação da Amazônia. A população economicamente ativa nas atividades agropecuárias no Nordeste é a que apresenta os menores rendimentos no contexto nacional. A tecnologia também é baixa no campo nordestino, já que se tomarmos o número de tratores, um indicador básico de tecnologia, somente 7,4% dos tratores do Brasil estão no Nordeste e apenas 8% dos estabelecimentos agropecuários da região possuem trator.
Contradições e desigualdades
Em relação à estrutura fundiária, a Zona da Mata, municípios do Vale do São Francisco, oeste das Bahia e sul do Piauí apresentam índices de
concentração da terra superiores à média regional, que já é alta. Isso quer dizer que as melhores áreas para a agricultura são também aquelas em que a concentração da terra é maior, o que mais uma vez contribui para a desarticulação da agricultura camponesa da região. Os imóveis de posse são significativos e sua distribuição no Nordeste apresenta uma disposição leste-oeste. No leste, predominam os pequenos imóveis de posse, cuja regularização contribui para fortalecer a agricultura camponesa; já no oeste, numa região que engloba o oeste da Bahia e o Sul do Piauí, predominam os grandes imóveis de posse, cuja regularização não serve à outra coisa senão fortalecer ainda mais o agronegócio monocultor que monopoliza esta região, não contribuindo para a Reforma Agrária. Também nesta porção leste predominam as terras exploráveis não exploradas, indício da ociosidade da terra.
É com base nesse conjunto de contradições e desigualdades que me baseio para defender a Reforma Agrária na região e, da mesma forma, no país. Esta é uma reforma fundamental que afetará diretamente este grande contingente de brasileiros pobres que resiste no campo ou quer nele se estabelecer e, por consequência, a reforma também contribuirá para a melhoria de
vida da população urbana. O objetivo da Reforma Agrária é contribuir para diminuir a pobreza, as desigualdades regionais e sociais do Brasil; ela é um problema com relações diretas com a questão ambiental e urbana. Juntamente com essas outras duas questões estruturais do país, a questão agrária se configura como uma etapa cuja transposição é indispensável para promover o real desenvolvimento do país. O primeiro e imediato resultado de uma Reforma Agrária será a diminuição ou extinção da fome no Brasil, um dos maiores exportadores de gêneros agropecuários do mundo, mas com 13 milhões de desnutridos e 72 milhões sob condições de insegurança alimentar. Além de ajudar esses brasileiros a saírem desta condição degradante, a Reforma Agrária também contribuirá para a melhoria de vida de outros milhões que habitam o campo e a cidade.

IHU On-Line – Que tipo de políticas especiais o Nordeste necessita?
Eduardo Paulon Girardi – A questão agrária no Nordeste se configura principalmente pela baixa renda e baixa qualidade de vida da população rural. Esta condição incentiva o êxodo rural e a migração inter-regional, o que tem como resultado, na maioria das vezes, a superexploração da mão-de-obra desta
população de migrantes. Assim, a Reforma Agrária no Nordeste deve se basear principalmente na garantia de condições para produção e de uma renda mínima aos agricultores. Para o primeiro objetivo, deve ser considerada a assistência técnica, crédito subsidiado para aquisição implementos, sementes e insumos, seguro agrícola e, no caso da região, a solução do problema da seca, seja pela transposição do São Francisco ou pela adoção de métodos alternativos com eficiência comprovada. É necessário dizer que a água deve ser priorizada para o consumo humano, animal e para as pequenas propriedades voltadas à produção de alimentos para consumo interno (na região ou no país).
Paralelamente, para garantir o escoamento dos alimentos produzidos pela agricultura familiar, em regiões mais críticas, o Estado deve atuar na compra e distribuição de alimentos à população que sofre com sua falta, investindo em modelos de circuitos curtos de produção-consumo, o mais lógico para a realidade regional. As culturas destinadas à produção de agrocombustíveis não devem ser incentivadas em locais onde a irrigação é necessária, restringindo essas áreas à produção de alimentos de origem animal ou vegetal e sob um sistema que integre pecuária e agricultura. Um programa de garantia de rendimento mínimo e de seguro agrícola aos agricultores indispensável, vistas as características climáticas da região. As ações de Reforma Agrária devem ser centralizadas no Polígono das Secas, no Maranhão (pela peculiaridade de ser uma área de transição e por comportar componentes da fronteira agropecuária), e no oeste da Bahia e sul do Piauí, onde a reforma da
estrutura fundiária deve ser procedida.

IHU On-Line – O Nordeste sempre será uma região mais voltada para o turismo e menos industrializada do que a região central do país?
Eduardo Paulon Girardi – A industrialização do Centro-Sul é fruto da coerência de ações do Estado e do capital industrial nacional e internacional. Historicamente está ligada à migração de capitais do setor agropecuário para o setor industrial, principalmente no estado de São Paulo. O Estado pode, através de uma política de ordenamento territorial, incentivar a instalação de parques industriais em qualquer área do território, basta ver o caso de Manaus. Contudo, é necessário que pensemos que a implantação de indústrias, ao contrário do discurso político predominante, não é a única solução para o problema do emprego; ela nunca conseguirá absorver toda a mão-de-obra disponível. Não há perspectivas de criação de muitas novas indústrias no país ou então de sua
migração internacional em massa par o Brasil.
A criação de empregos no setor industrial é muito cara ao Estado, já que as empresas exigem a instalação
No Nordeste, a instalação de indústrias pode ser um dos elementos de um amplo projeto de desenvolvimento regional que precisa, em primeiro lugar, promover a estabilidade e qualidade de vida no campo
de toda uma infra-estrutura de base, a renúncia fiscal por décadas e o incentivo através de empréstimos com dinheiro público. No Nordeste, a instalação de indústrias pode ser um dos elementos de um amplo projeto de desenvolvimento regional que precisa, em primeiro lugar, promover a estabilidade e qualidade de vida no campo, de forma que não reste aos camponeses em vias de desintegração unicamente a alternativa o êxodo rural e a procura, na maioria das vezes sem sucesso, de emprego na indústria ou no setor de serviços.
Reforma Agrária no Nordeste
Com a
Reforma Agrária, poderão ser criadas pequenas agroindústrias para transformação dos alimentos a serem consumidos regionalmente, nacionalmente e, em caso de excesso, exportados. Isso assegurará a soberania alimentar da região e do país. A Reforma Agrária também contribuirá possibilitando que a grande massa de sem-terras da região tenha acesso à terra, ajudando assim mais uma vez a resolver o problema da falta de postos de trabalho. Neste contexto, a indústria certamente pode ainda contribuir para o aumento dos postos de trabalho na cidade e para a atração de divisas para o país. Para isso, o Estado deverá investir em plantas para a transformação dos recursos naturais e agropecuários exportados, agregando valor. A criação de pólos de desenvolvimento tecnológico também deve ser considerada. Quanto ao turismo, é necessário lembrar que, no Nordeste, ele está concentrado na região litorânea. A criação de outros circuitos turísticos na região pode contribuir para o desenvolvimento no sentido amplo, mas será sempre restrita a algumas regiões, diferente da agropecuária. O mesmo ocorre para a indústria, pois seu impacto será sempre mais localizado e principalmente nas cidades.

IHU On-Line – O Nordeste e Norte são regiões onde a luta pela terra é forte e violenta. Que políticas o senhor vislumbra para resolver essa pendência?
Eduardo Paulon Girardi – Devido à
diferença histórica da ocupação das duas regiões, a luta pela terra no Nordeste e no Norte apresenta particularidades. Em 2006, participaram de ocupações de terra no Nordeste cerca de 21 mil famílias, 35% do total nacional. Entre 1988 e 2006, o Nordeste foi a região que concentrou o maior número de famílias em ocupações de terra, com cerca de 340 mil famílias, ou seja, 32,4% do total nacional. Já a região Norte concentrou 8,1% do total Nacional, com cerca de 85 mil famílias em ocupações de terra.
No Nordeste, região onde a terra foi primeiramente apropriada privadamente no Brasil, ela já tem seus “donos”. Por isso, a luta pela terra na região está muito mais ligada à requisição de reforma de propriedades improdutivas ou cujos títulos são ilegais. Paralelamente, a região, com grande densidade populacional e penúria social, impele aqueles que almejam um pedaço de terra para produzir a lutar por ela. Por isso, as ocupações são mais significativas no Nordeste do que em qualquer outra região do país e se assemelha ao que verificamos no Centro-Sul. Já na região Norte, cuja apropriação privada da terra ainda está em marcha, as ocupações são menos numerosas do que em qualquer outra região do país, já que a possibilidade dos camponeses se tornarem pequenos posseiros não é tão remota nas regiões mais profundas da fronteira agropecuária, mesmo que
no futuro as chances de serem expulsos da terra por grileiros sejam grandes. Além da denúncia de propriedades improdutivas ou com títulos questionáveis, a luta pela terra no Norte está também relacionada ao processo de grilagem recente das terras, quando grileiros expulsam os pequenos posseiros.
Luta antiga: a violência
O que relaciona a luta no Norte e no Nordeste é a violência contra trabalhadores rurais e camponeses, sendo o Maranhão, um estado de transição regional, o caso mais exemplar desta ligação. No Norte, os camponeses e trabalhadores rurais
sofrem violência dos grileiros e fazendeiros contra as ações de ocupação de terra e também quando são expulsos pelos grileiros de suas pequenas posses. Já no Nordeste, a violência ocorre principalmente contra as ações de ocupação, quando os camponeses sem-terra são expulsos pelos fazendeiros. A dimensão da violência contra trabalhadores rurais e camponeses pode ser observada nos dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Entre 1988 e 2006, no Nordeste, se considerarmos a violência contra trabalhadores rurais e camponeses, foram 264 assassinatos, 1.120 ameaças de morte, 352 tentativas de assassinato, 103 mil famílias despejadas da terra e outras 22.579 expulsas por particulares. Outro tipo de violência no campo é o trabalho escravo, cujos casos em denúncias no Nordeste entre 1988 e 2006 totalizam 9.093 escravizados e os trabalhadores libertados pelo MTE de 1995 até 2006 foram 3.685. Como já afirmei, o trabalho escravo atinge o Nordeste porque a região é a principal origem dos trabalhadores aliciados, sendo o emprego do trabalho escravo mais significativo no Norte e Centro-Oeste. A região Norte, apesar de ter menos ações de ocupação de terra, é caracterizada por um
campo mais violento do que aquele do Nordeste.
Os dados da violência contra trabalhadores rurais e camponeses na região Norte mostram que entre 1988 e 2006 foram 434 assassinatos, 1.321 ameaças de morte, 247 tentativas de assassinato, 38.078 famílias despejadas da terra e 7.755 expulsas. Quanto ao trabalho escravo, as denúncias à CPT contabilizam 27.144 trabalhadores escravizados e, entre 1995 e 2006, 8.278 trabalhadores escravizados que foram libertados pelo Ministério do Trabalho. A diminuição da violência no campo passa impreterivelmente pela Reforma Agrária.

On-Line – O senhor afirma, em sua tese, que o Brasil pode continuar expandindo a produção agropecuária por um período de mais 20 anos, a uma taxa de 4% ao ano, sem precisar tocar na Amazônia. Para onde se pode expandir?
Eduardo Paulon Girardi – Realizei este cálculo com base nos dados de terras ociosas e desflorestamento na Amazônia Legal. Segundo este cálculo, em 2007 as terras exploráveis não exploradas da Amazônia Legal totalizavam 86,7 milhões de hectares, o que seria suficiente para que a agropecuária no Brasil se expandisse por mais 22 anos, mantendo-se a taxa de ocupação de terras de 4% ao ano, verificada entre os Censos Agropecuários de 1996 e 2006. Esta observação, porém, não considera as terras exploráveis não
Temos 22 anos para repensar a investida sobre a Amazônia e adotar modelos diferentes de desenvolvimento que dispensem a destruição da floresta.
exploradas das outras regiões do Brasil, que em 1998 totalizavam 19,6 milhões de hectares, o que já poderia aumentar a projeção. Desta forma, unicamente pela utilização das terras ociosas, temos 22 anos para repensar a investida sobre a Amazônia e adotar modelos diferentes de desenvolvimento que dispensem a destruição da floresta.
Reformação da estrutura agrária e o papel social da terra
Esta perspectiva considera a manutenção da estrutura agrária brasileira, concentrada, com terras subutilizadas (como no caso do Nordeste, por falta de políticas que viabilizem a produção adequada), e com a manutenção do sistema de pecuária extremamente extensiva, cujas pastagens cobrem 48,6% da superfície dos estabelecimentos agropecuários (172,3 milhões de hectares contra 76,7 milhões de hectares de lavouras). Sendo assim, a previsão pode ser estendida com uma reforma agrária ampla, visto que ela deve contemplar um sistema de produção agropecuária que otimize os resultados obtidos pelos agricultores médios e pequenos, principalmente. Com isso, as terras subutilizadas em todo o país passariam a produzir mais, aliviando a pressão sobre a região Centro-Oeste e Norte. Em especial nessas duas regiões, a estrutura agrária deve ser reformada e o papel social da terra deve ser a premissa adotada, tornando as terras já desflorestadas produtivas e extinguindo a especulação fundiária, sendo que o mesmo deve ocorrer para as outras regiões do país. É importante ressaltar que esta melhoria no sistema técnico deve procurar alternativas ao modelo do agronegócio, buscando outros métodos com comprovada eficiência. A difusão dessas práticas com assistência técnica aos agricultores camponeses é fundamental para a reforma agrária no Brasil.
Assim, a
Reforma Agrária necessária deve priorizar os camponeses, dando-lhes condições de permanecer ou de entrar na terra. O fornecimento de condições adequadas para a produção é indispensável para que a reforma tenha sucesso. Obviamente, a grande produção não irá desaparecer, pois a dimensão do país permite a existência de ambas. O que deve haver é equidade de possibilidades entre esses dois modelos, para o que é necessário dar atenção à agricultura camponesa, já que ela se encontra em desvantagem. A maior importância da agricultura camponesa ocorre porque ela é a única que pode, comprovadamente, ajudar a resolver os problemas sociais no Brasil. No conjunto geral da Reforma Agrária, a garantia de alimentação aos consumidores pobres e o estabelecimento da soberania alimentar do país devem ser priorizadas como parte de uma Reforma Agrária ampla.

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