sábado, 5 de setembro de 2009

A escola precisa aprender a construir coletivos com base na outra lógica que a do "ganhar-perder"

por Ricardo Prado - Carta na Escola
Para educador colombiano, Bernardo Toro, a escola precisa aprender a construir coletivos com base em outra lógica que a do "ganhar-perder"


Bernardo Toro

Bernardo Toro gosta de fazer uma distinção entre escola pública e escola estatal. A pública é aquela dirigida a todos e capaz de oferecer ensino de qualidade. E, neste pacote educacional, também entra na conta a capacidade que o corpo docente tem de tornar o ambiente de aprendizagem um lugar livre de humilhações e preconceitos, combatendo a todo custo o bullying. Para isso, Toro dá muita importância à capacidade humana de se articular, de criar “contratos sociais” que tanto protegem quanto controlam seus envolvidos. Para ele, a explicação que o historiador Aléxis de Tocqueville usou, no século XVIII, para mostrar a força da democracia nos Estados Unidos vale integralmente para o ambiente escolar: "Nos países democráticos, a ciência da associação é a ciência-mãe; o progresso de tudo mais depende dela".
O mais difícil neste caminho rumo a uma escola mais associativa e democrática é mudar nossa forma de pensar, por demais impregnada em uma corrida na qual sempre existem vencidos e vencedores. Nesta entrevista, concedida a Ricardo Prado, Toro usou a divulgação do ranking das escolas no último Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) para exemplificar como ainda somos prisioneiros da lógica "ganhar-perder".
Carta na Escola: Segundo o senhor, um dos indicadores mais graves de pobreza em uma sociedade é a falta de organização. Por quê?
Bernardo Toro: Porque só com a organização se conseguem duas coisas: proteção de direitos e autorregulação. Estar organizado significa pertencer a diversos grupos. A possibilidade de uma pessoa atuar e ser respeitada em uma sociedade depende, fundamentalmente, dos contratos sociais que ela possui. Por contrato social entendo as obrigações e compromissos estabelecidos com outras pessoas ou grupos. O casamento é um contrato social, a paternidade também, pagar financiamentos ou hipotecas é contrato social, participar de uma cooperativa, de uma igreja, de um clube, é também uma forma de contrato social. Quanto mais organizações e, portanto, quanto mais contratos sociais uma pessoa possui, se passam duas coisas. Em primeiro lugar, é muito difícil que se violem os direitos de alguém que tenha uma boa rede de contratos porque o sistema o protege. Mas, ao mesmo tempo, para essa pessoa também não é possível, por exemplo, colocar uma bomba no metrô, porque essa pessoa será contida pelos seus relacionamentos. Este é o aspecto autorregulatório da organização. Então, estar organizado em vários contratos sociais nos protege e nos contém.
CE: Trazendo tal raciocínio para o ambiente escolar, como uma escola consegue formar esse tipo de rede de proteção social?
BT: Primeiro, é preciso enfrentar um problema muito sério: hoje os estudantes têm muito tempo de aula, mas pouco tempo escolar. Passa-se muito tempo na sala, mas pouco tempo na escola, porque, com a dupla jornada, esse período foi muito reduzido. Nos meus tempos de colégio na Colômbia, chegava à escola às 7 da manhã e saía pelas 4 ou 5 da tarde.
Íamos às aulas, andávamos pelo bairro, almoçávamos em nossas casas e voltávamos, passávamos pela igreja, biblioteca etc. A vida escolar, a vida do bairro e a vida familiar eram praticamente a mesma; então, havia muito tempo de aprendizagem. E, ainda, nos sentíamos seguros, pois sabíamos que os nossos pais estavam próximos. Então, começamos por separar fisicamente a escola dos bairros e, depois, começaram a chegar professores que eram de outros locais. Isso, por um lado, era bom porque nos abria a mente, mas, por outro, era bem grave porque as crianças deixavam de se sentir protegidas.
CE: O que é, para uma criança, se sentir segura na escola? BT: Várias pesquisas nos mostram que o maior fator de rendimento escolar de uma criança é sentir-se segura naescola. O que significa isso? Que ninguém a moleste fisicamente, que não seja maltratada, que não lhe roubem suas coisas, que se fizer uma pergunta será respondida, que não seja estigmatizada por seu sotaque ou porque sua mochila não é do último modelo. Quando uma criança se sente respeitada, seu rendimento cresce de maneira extraordinária. Isso é a alegria de aprender. Mas, para isso acontecer, é preciso, antes que tudo, combater o bullying. CE: O que o senhor nos aponta como caminho é a criação de uma escola democrática. Como se cria a democracia no ambiente escolar?
BT: Creio que quem apontou a melhor solução foi o filósofo Immanuel Kant, que disse que qualquer pessoa se interessa em seguir um norte democrático se a ordem é construída coletivamente. Eu trabalhei muito tempo em um colégio frequentado por filhos de prostitutas, na cidade de Armênia, na Colômbia. Essas crianças tinham um histórico familiar muito complicado, com diversos pais assassinados, mas o colégio era famoso por sua disciplina. E tudo aquilo havia sido combinado. Montamos uma granja com capacidade para criar 25 mil galinhas, o que propiciou muito dinheiro para a escola. Assim, conseguimos montar os melhores laboratórios da cidade, muito bem equipados, os melhores equipamentos esportivos e, também, atraímos para esta escola os melhores professores da região. Mas o mais importante foi que estabelecemos as regras do regulamento com as crianças. Como a escola era grande, com cerca de 1,8 mil alunos, seria impossível fazer reuniões coletivas; as turmas escolhiam seus representantes. Para cada ação nova, de uma festa a um campeonato, escolhiam-se representantes. E isso funcionou muito bem, tendo sido decidido coletivamente até mesmo a hora em que todos teriam de chegar. Lembro que, numa época, ficou combinado que aqueles estudantes maiores de 16 anos poderiam fumar em sala de aula. Mas, quando chegou a época do calor, o ambiente ficava quase irrespirável e, assim, os próprios alunos decidiram rever a regra aprovada. E, de um dia para o outro, ninguém mais fumava em classe, nem reclamou da mudança.
CE: E os líderes, como surgem no ambiente escolar? É bom que eles existam?
BT: Se você chegar numa escola e fizer a seguinte proposta: "Vamos organizar a festa de fim de ano.Queremos que vocês escolham duas pessoas para isso". A classe apontará espontaneamente as pessoas mais indicadas. "E para organizar um campeonato de futebol?" Dificilmente os dois escolhidos serão os mesmos. Se for para organizar um passeio fora da escola, é bem provável que se deleguem outros dois. As comunidades sabem quem tem melhores condições para solucionar problemas coletivos. O segredo, então, é deixar que as próprias crianças escolham quem são os melhores para as diferentes funções de liderança. Mas isso só funciona se não há bullying na escola, porque, se isso acontece, todos terão medo de contrariar aquele que aterroriza seus colegas e é o mandão da classe.
CE: Por causa disso o bullying corrói qualquer projeto de escola democrática?
BT: Sim, porque aquele que agride seus colegas se torna um tirano e combaterá qualquer projeto distinto do seu. Por isso é preciso muitíssimo cuidado com o bullying, porque aquelas crianças com mais problemas psicológicos, com problemas familiares mais agudos são as que costumam se envolver com essas práticas de intimidação. E muitas crianças não têm ferramentas para se defender da agressividade. É preciso que a estrutura de uma organização criada e mantida por adultos lhes dê esta segurança de que não serão agredidos. E a única forma de cuidar do bullying é fazer organizações no interior da classe, de modo que essa rede social seja capaz de proteger os mais fracos dos mais fortes, os mais pacíficos dos mais agressivos.
CE: E o estigma em relação aos alunos mais problemáticos, que nasce do próprio professor, como combatê-lo?
BT: Certa vez, estava assessorando uma escola e nela havia uma criança de 9 ou 10 anos, que cursava a 3ª série e era um péssimo estudante. Mas ele nos ajudava muito nas atividades que fazíamos extraclasse. Quando fui elogiar o menino junto aos professores, ouvi muitas reclamações, de que ele era um mau estudante, indisciplinado, tinha uma família problemática, que o pai batia nele, etc. Isso me chamou a atenção para a tal da "profecia autocumprida", quando o professor condena, antecipadamente, um aluno a partir de suas impressões ou de seus preconceitos. Acontece que esse menino, além de ser muito inteligente, tinha uma incrível habilidade para fazer veinte e unas (as tradicionais "embaixadas", quando alguém consegue chutar várias vezes uma bola de futebol sem deixá-la cair). Sugeri que os professores organizassem um concurso de veinte e unas por mês e que seu vencedor ganhasse alguma prenda, como um livro. E disse: vocês verão como esse menino passará a frequentar as classes. E foi o que aconteceu, pois ele era muito capaz e inteligente.
CE: A profecia autocumprida se desfez depois que ele teve uma capacidade sua reconhecida pelo grupo, é isso?
BT: Sim, porque a condição de pertencimento a um grupo está relacionada à capacidade daquela pessoa de oferecer soluções ao coletivo. Os grupos humanos rapidamente percebem quem tem essas soluções. Uma equipe é mais madura quando reconhece essas capacidades. Eu trabalhei durante muito tempo em pesquisa básica sobre o funcionamento do cérebro em crianças com menos de 2 anos. E havia, no meu grupo de trabalho, uma companheira, que estava no quinto grau da hierarquia, que era quem mais contribuía quando precisávamos fazer um trabalho de campo. Todos ouvíamos e aceitávamos o que ela nos propunha. Quando chegavam as análises estatísticas, havia outra pessoa que sabia fazer isso melhor que ninguém. O mesmo tipo de especialização que acontece entre grupos de adultos acontece entre as crianças e os jovens, se o sistema ajuda, se não permite o bullying, a intimidação.
CE: Pelo que o senhor nos fala, seria interessante que os professores ensinassem seus alunos a trabalhar coletivamente?
BT: É o modelo “ganhar-ganhar”, que eu defendo. Mas a escola tem uma grande tendência a adotar o modelo "ganhar-perder": quem é o mais inteligente? O mais forte? O mais bonito? O mais bem vestido? O mais educado? Este, no caso, acaba sempre sendo aquele mais submisso. Todos nós estamos imersos em modelos "ganhar-perder".
CE: Recentemente, houve a divulgação pelo Ministério da Educação do desempenho das escolas no Enem, com aqueles rankings das melhores e piores. É um exemplo desse pensamento "ganhar-perder"?
BT: Esse pensamento tem uma força tremenda no sistema educativo. Se pegarmos a informação de que, entre os cem melhores colégios, 80 são privados, pode-se chegar à conclusão de que a educação privada é melhor que a pública. Mas isso é uma estupidez. Nos melhores colégios, nos mais caros, quem estuda lá? Os filhos de pessoas com melhor poder aquisitivo, com pais que ganham bem, que tiveram boa educação e têm profissões de muito reconhecimento. Diga-me quanto ganha seu pai, que nível educativo tem, em que trabalha, e eu lhe direi que rendimento educativo tem aquela criança.
CE: Ou seja, o contexto social é muito mais decisivo para o rendimento escolar que a escola?
BT: Em todo o mundo é assim. Filhos de pais de alto nível econômico e educativo têm melhor desempenho que seus colegas filhos de pais de condições econômicas e culturais mais modestas. Esses colégios privados bem colocados nesse tipo de ranking são homogêneos em termos de classes sociais e cultura, o que não acontece nas escolas públicas.
Mas, se colocarmos o rendimento escolar dos alunos em um tipo de tabela 4x4, na qual, em uma coluna, se dividam os alunos de alta e baixa renda e noutra os que estudam em escolas privadas ou públicas, se verá que não há diferenças entre as redes. E quando há, ela beneficiará aqueles poucos alunos de alta renda que se encontram nas redes públicas. Não importa se a educação é estatal ou privada, o que importa é que seja de qualidade. Quando há escola pública de qualidade para todos, os ricos colocam seus filhos nela. No Canadá, por exemplo, a educação estatal é de tal qualidade que não passaria na cabeça de ninguém, por mais rico que fosse, buscar algo fora dela. Lembro do caso de um menino descendente de japoneses que estudava em uma classe com maioria de crianças de famílias italianas. Quando era aula de ensino religioso, eles aprendiam sobre o Cristianismo. Mas, nessas aulas, esse aluno japonês era levado por uma van para um outro colégio onde havia um professor de Xintoísmo. É desse nível a educação pública no Canadá!
CE: Sendo o senhor um estudioso das tecnologias educativas, como vê a situação da maioria das escolas públicas de Ensino Médio do Brasil, que raramente têm laboratórios de química ou biologia equipados?
BT: A escola pode gerar competências gerais para o trabalho: capacidade de trabalhar em equipe, capacidade de analisar dados, de resolver problemas abstratos, de sequenciar, de redigir informes, de criar e transformar dados, de comunicar-se, de fazer perguntas. Isso se faz sem laboratório. Mas, quando abordamos competências específicas, a escola não tem como se sair bem. Por quê? Porque a capacidade de transformação das indústrias é muito mais rápida que a da escola em se atualizar em termos de equipamentos. Uma coisa é ensinar alguém a manejar uma máquina, outra é ter uma máquina pedagógica para se ensinar a fazer isso. Eu creio que o país que tem atualmente a melhor educação tecnológica do mundo é a Alemanha. Lá eles têm um sistema secundário que, ao ingressar na educação tecnológica específica, se transforma em sistema dual, que leva o estudante a frequentar, juntamente com suas aulas na escola, os locais onde se produzem as coisas.

Ambiente escolar em Cuba

CE: O senhor costuma diferenciar "escola pública" de "escola estatal", que identifica apenas seu caráter não privado. Na América do Sul há algum país que tenha uma boa "escola pública"?
BT: O Uruguai teria um certo destaque em relação aos demais. Mas, na América Latina, apenas Cuba tem uma educação pública de qualidade, para todos. Em 1968, a cobertura de ensino primário na América Latina atingia apenas 41% das crianças em idade escolar. Os únicos países da região que tinham uma cobertura melhor, nessa época, eram Uruguai e Argentina. Aliás, em 1867, o Uruguai tinha 99% da população alfabetizada. A Argentina, em 1878, finalizou a montagem de seu sistema educacional. Em 1940, a Universidade de Buenos Aires era uma das mais importantes do mundo, com três Prêmios Nobel, em física, química e medicina. Isso aconteceu até os golpes militares, que desmontaram o fantástico sistema educacional nesses dois países. Os militares argentinos chegaram a dizer que todo aquele que deseja ser um pesquisador pode ser um revolucionário em potencial. C
E: Como foi, para o senhor, participar do Pacto de Minas Gerais pela Educação, em 1994?
BT: O que ficou dessa experiência foi, em primeiro lugar, a solidez da decisão política de se correrem todos os riscos que uma mudança daquela magnitude provocaria. Segundo, um reconhecimento, por parte dos políticos, dos problemas que tínhamos e uma clara disposição de resolvê-los. E, terceiro, a capacidade que esses dirigentes tiveram de criar os instrumentos jurídicos e institucionais para solucionar os problemas. Quando se está em um ambiente desses, no qual os políticos estão interessados em solucionar um problema e não em manipulá-lo, é muito fácil ser assessor.
Texto Original publicado na Revista Carta na Escola n° 37. Disponível em PDF em:http://www.educacionista.org.br/jornal/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=3329

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