A luta de classes e as classes de luta em comunicação
O sonho da burguesia é comer rádio comunitária
Por Dioclécio Luz
A Casa Grande, dos móveis devorados pelos cupins e das paredes aonde o mofo faz moradia, modernizou-se: recebe TV por satélite, especula na Bolsa, produz para o agronegócio, marca presença no SP Fashion Week,...
Nada de novo. Há cinco séculos é assim, essa capacidade da burguesia renovar o verniz dos móveis, rebocar os buracos nas paredes, e anunciar que é tudo novo. Na Casa Grande inteligente do século XXI mora o mesmo senhor feudal, o coronel das caatingas, o usineiro, o empresário de sucesso - o DNA do poder continua vivo. Manifestação do poder do capital, ele sobrevive às custas do saque e exploração das riquezas públicas, das riquezas naturais, do trabalho do operário.
É assim no Brasil desde aquela manhã na Bahia quando aqueles caras, um bando de meliantes, fedorentos, desceram das caravelas e, em nome da Igreja Católica e do rei dalém mar, decretaram que todos e tudo ali – índios, fauna e flora – tinham dono. O Brasil foi patenteado em 1500.
Quem usasse o Brasil sem a autorização oficial seria, a partir de então, tratado como pirata, bandido, ladrão. Comer, cagar, dormir, viver, falar, comunicar-se, ser brasileiro, agora só com permissão, só por concessão pública. Ainda hoje é assim. O poder se estabeleceu e criou um cartório para gerir os negócios (sobre as riquezas locais) conforme seus interesses. É assim que funciona: o saqueador tem o poder, e usa este poder para legitimar seu saque. Assim se constroem as grandes riquezas no Brasil; assim nasceram os latifúndios e a elite econômica – o Conde Drácula é um empresário de sucesso.
O botim é sacralizado: nele não se bole: para ter acesso à riqueza é preciso ser elite, ser burguesia, morar em Casa Grande, ou simplesmente ter o poder. Não é para qualquer um. O povo pobre que não ouse se aproximar dessa riqueza – vai ter polícia federal armada de metralhadora e escopeta nas suas costas. Nêgo será preso, algemado, submetido a processo federal. O povo das senzalas que não se meta a besta de querer comer bem, vestir-se bem, ter terra, casa, saúde, e até, imagine?!, comunicar-se. O antigo édito real – “Comunicação não é para o bico do povo” - continua em vigor.
A comunicação é deles. A terra é deles. O dinheiro é nosso mas é para eles. As elites nacionais (quem tem o dinheiro/poder) construíram o Brasil assim, para servi-las, garantindo o domínio sobre as riquezas locais. Tudo que é riqueza. Incluindo aquela obtida por quem não produz nada: em 2003, primeiro ano de Governo popular de Lula, os banqueiros lucraram cerca de 200% em relação ao ano anterior e pagaram somente a metade em impostos. Na Folha de São Paulo (13/07/04), Clóvis Rossi indaga: “Alguém aí acredita que tem alguma chance de vida um país em que o jogo financeiro tem remuneração quatro vezes superior à atividade produtiva?”.
É preciso deixar bem claro, essa característica vampiresca das elites econômicas não é exclusiva do setor financeiro. Tudo que é riqueza pátria atrai vampiros. Enquanto o Brasil tiver um fiapo de vida terá este bicho grudado em suas costas. Resultado: o Brasil do século XXI é campeão mundial da má distribuição de renda e o 69º no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). No final de 2004 o Unicef anunciou que 75% das crianças do Nordeste passam fome. Enquanto isso, o presidente Lula continua sua peregrinação de vendedor do Brasil (tal qual FHC), convidando as multinacionais a investirem no país. Que venham os vampiros!
Pela revista de fofocas revela-se ao pobre a existência de uma Casa Grande, as caras e bocas dos granfinos. E o pobre aprende a admirar a Casa Grande e o seu perfume de Casa Grande. O pobre sonha morar num lugar assim, uma ilha cercada de ócio por todos os lados, com todas as gostosas da TV, incluindo as siliconadas; ser famoso e chique. O povo aprendeu isso - de querer ser um elite - na escola, mas, principalmente nas TVs e rádios e jornais das elites. O apelo pedagógico foi tão forte, tão sistemático, que o pobre não viu (não lhe deixaram ver) que as elites lhe roubam, e que ele mora numa senzala, numa favela, na periferia, num barraco, ou embaixo de um viaduto, porque a riqueza do país vai toda para essa gente. O que lhe sobra são as migalhas do banquete. Banquete montado com o que lhe pertence.
O latifúndio da terra
Constroem-se latifúndios porque as elites não se fartam com pouco e, afinal, têm a certeza de que o que é do Brasil deve ser delas. A começar pela terra.
As sesmarias funcionaram da época do achamento pelos portugueses até julho de 1822. As terras foram entregues aos fidalgos e tinham caráter hereditário. Não eram propriedades privadas no termo exato da expressão. O barão, conde ou visconde, recebia o direito de explorar a terra mas não podia arrendar ou vender as terras recebidas. Eram concessões de uso da terra.
Com a independência do Brasil, em 1822, e a promulgação da sua Constituição dois anos depois, ficou definido o direito da propriedade absoluta. A burguesia brasileira, que fez a independência, estava de olho na manutenção dos seus privilégios.
Em 1850 surgiu a “Lei de terras”, quando ficou estabelecido o direito civil de propriedade de terras, tanto legitimamente particulares quanto públicas. As antigas sesmarias foram confirmadas. A Lei dizia que para regulamentar a propriedade bastava apresentar os documentos. Como os coronéis, as oligarquias rurais, não tinham os documentos - afinal a maior parte vinha de grilagem de terra pública ou roubo de posseiros -, tentaram a regulamentação dos primeiros latifúndios sem apresentação de provas. Daí montaram processos fraudulentos para se apropriar das propriedades.
Então chegam os anos 60. Em Pernambuco proliferam as “Ligas Camponesas” propondo a reforma agrária. Elas mostram ao camponês que o Brasil é rico mas essa riqueza vai para Casa Grande.
Em 1964, preocupadas com a possibilidade do Governo João Goulart mexer numa coisa sagrada para elas, a propriedade da terra, as elites nacionais, apoiadas pelo império norte-americano, se juntam aos militares e dão um golpe no Brasil. Participam da conspiração e do golpe todos os grandes veículos de comunicação do país.
Já no primeiro ano de ditadura, o General Castelo Branco, cumprindo o compromisso assumido com essas elites, para “sanar o problema da reforma agrária”, implanta o “Estatuto da Terra”. Por ele a reforma agrária é terceirizada, empresas privadas assumem o papel de fazer a colonização de terras; aumenta a especulação de terras, a reforma agrária é adiada; é feita a “titulação” das terras da União; aumentam os privilégios ilegais e ilegítimos; criadas “alienações sem concorrência” para áreas de até 3 mil hectares; e “alienação com direito de preferência”, também de caráter privilegiador.
Depois veio a “revolução verde” - inventada pelo setor industrial no pós-guerra, com o apoio da ONU e o aval das academias que deveria “acabar com a fome no mundo”. Mas a fome ficou maior. E oodutor rural foi feito dependente dos insumos da indústria. Depois vem o agronegócio – o agricultor produz o que o mercado quer e não o que o povo precisa comer. Então, ampliam-se os latifúndios, fazendo com que 1% de proprietários detenham 46% de todas as terras do Brasil; e 4,8 milhões de famílias fiquem sem terra.
Cresce o agronegócio. Hoje o Brasil, um país de famintos, é campeão mundial na exportação de carne bovina; campeão mundial na exportação de soja; 77% do café que produz vai para fora; e também sai 93% do suco de laranja e 58% do seu açúcar. As melhores terras são usadas para monocultura e cultura de exportação.
Pecando contra a sabedoria acadêmica é possível afirmar: a Casa Grande não se acabou, pelo contrário, ela ficou internacional, transnacional porque sua alma não tem pátria. O capital não tem pátria – tem ambições. E suas ambições são maiores do que o planeta.
A Casa Grande, porém, não seria grande se não tivesse o poder da fala. A fala é o poder. O poder é bom, mas ele só se mantém quando você fala e não deixa que os outros falem. Por isso a Casa Grande é indústria, banco, terra, religião, mas, principalmente, comunicação e cultura.
O latifúndio do ar
É com a comunicação que as elites ficam mais ricas e explicam o mundo ao povo; e justificam sua riqueza diante do povo. A comunicação estabelece a cultura. É com a comunicação que o bandido, tornado rico e famoso, é invejado pelo povo. Homem de sucesso. Rico e poderoso. Como ele ficou rico e poderoso? Graças ao trabalho ou à fama. E ninguém questiona mais. A senzala, inexistente nos meios de comunicação, não sabe que há uma luta de classes.
Os meios de comunicação informam que existe a fome, a miséria, a favela, o tráfico, mas é tudo por falta de uma abstrata política governamental (precisa mudar mas sem mudar a distribuição da riqueza). A questão é estrutural, mas se atribuem nossos problemas a uma entidade irreal, a “autoridade”. Também dizem que a fome é, principalmente, coisa de pobre, e circunstancial - dessa gente que não teve oportunidade de estudar, ou de virar pagodeiro ou jogador de futebol. Na versão modernizada, eis a panacéia para o social: aprender informática e dançar capoeira faz o sujeito “sair” do crime, escapar da violência e discriminação. Ensina a mídia elitizada ao povo da senzala irreal que basta força de vontade para escapar da miséria. O mercado, divindade entronizada pelas elites, oferece as oportunidades. Basta estudar. E tome curso de formação para pobre. No jornal da tarde a TV comercial festeja a vitória daquela menina que mora na favela mas estuda balé; e o sucesso daqueles meninos do sertão brabo, aonde não se pode plantar porque a água tem dono (é do coronel, dono da terra e da rádio local), mas eles tocam Mozart, Beethoven, Bach... O clássico chegou à caatinga – então está tudo resolvido: a fome não existe mais. E o povo da senzala comemora poder entrar na Casa Grande – aparecer no jornal da elite – e tocar o que a elite diz que é coisa de gente fina, música clássica.
As elites, através da comunicação, manipulam a cultura e impõem seus padrões sobre o oprimido, que os absorvem:
“O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivem a dualidade enquanto ser é parecer, e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo”. (Paulo Freire em “Pedagogia do oprimido”)
O poder nas comunicações, como na terra, ainda é oligárquico, feudal, embora moderno, industrial. Ele se distribui entre as famílias – donas de terra, agronegócios, bancos, jornais, revistas, ou emissoras de rádio e televisão –, e o clero. A comunicação faz e refaz a história. Eles sabem: “Quem manipula o poder, manipula também o esquecimento”.
Eis os latifundiários religiosos, o poder do clero: as emissoras nas mãos das igrejas:
A Casa Grande, dos móveis devorados pelos cupins e das paredes aonde o mofo faz moradia, modernizou-se: recebe TV por satélite, especula na Bolsa, produz para o agronegócio, marca presença no SP Fashion Week,...
Nada de novo. Há cinco séculos é assim, essa capacidade da burguesia renovar o verniz dos móveis, rebocar os buracos nas paredes, e anunciar que é tudo novo. Na Casa Grande inteligente do século XXI mora o mesmo senhor feudal, o coronel das caatingas, o usineiro, o empresário de sucesso - o DNA do poder continua vivo. Manifestação do poder do capital, ele sobrevive às custas do saque e exploração das riquezas públicas, das riquezas naturais, do trabalho do operário.
É assim no Brasil desde aquela manhã na Bahia quando aqueles caras, um bando de meliantes, fedorentos, desceram das caravelas e, em nome da Igreja Católica e do rei dalém mar, decretaram que todos e tudo ali – índios, fauna e flora – tinham dono. O Brasil foi patenteado em 1500.
Quem usasse o Brasil sem a autorização oficial seria, a partir de então, tratado como pirata, bandido, ladrão. Comer, cagar, dormir, viver, falar, comunicar-se, ser brasileiro, agora só com permissão, só por concessão pública. Ainda hoje é assim. O poder se estabeleceu e criou um cartório para gerir os negócios (sobre as riquezas locais) conforme seus interesses. É assim que funciona: o saqueador tem o poder, e usa este poder para legitimar seu saque. Assim se constroem as grandes riquezas no Brasil; assim nasceram os latifúndios e a elite econômica – o Conde Drácula é um empresário de sucesso.
O botim é sacralizado: nele não se bole: para ter acesso à riqueza é preciso ser elite, ser burguesia, morar em Casa Grande, ou simplesmente ter o poder. Não é para qualquer um. O povo pobre que não ouse se aproximar dessa riqueza – vai ter polícia federal armada de metralhadora e escopeta nas suas costas. Nêgo será preso, algemado, submetido a processo federal. O povo das senzalas que não se meta a besta de querer comer bem, vestir-se bem, ter terra, casa, saúde, e até, imagine?!, comunicar-se. O antigo édito real – “Comunicação não é para o bico do povo” - continua em vigor.
A comunicação é deles. A terra é deles. O dinheiro é nosso mas é para eles. As elites nacionais (quem tem o dinheiro/poder) construíram o Brasil assim, para servi-las, garantindo o domínio sobre as riquezas locais. Tudo que é riqueza. Incluindo aquela obtida por quem não produz nada: em 2003, primeiro ano de Governo popular de Lula, os banqueiros lucraram cerca de 200% em relação ao ano anterior e pagaram somente a metade em impostos. Na Folha de São Paulo (13/07/04), Clóvis Rossi indaga: “Alguém aí acredita que tem alguma chance de vida um país em que o jogo financeiro tem remuneração quatro vezes superior à atividade produtiva?”.
É preciso deixar bem claro, essa característica vampiresca das elites econômicas não é exclusiva do setor financeiro. Tudo que é riqueza pátria atrai vampiros. Enquanto o Brasil tiver um fiapo de vida terá este bicho grudado em suas costas. Resultado: o Brasil do século XXI é campeão mundial da má distribuição de renda e o 69º no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). No final de 2004 o Unicef anunciou que 75% das crianças do Nordeste passam fome. Enquanto isso, o presidente Lula continua sua peregrinação de vendedor do Brasil (tal qual FHC), convidando as multinacionais a investirem no país. Que venham os vampiros!
Pela revista de fofocas revela-se ao pobre a existência de uma Casa Grande, as caras e bocas dos granfinos. E o pobre aprende a admirar a Casa Grande e o seu perfume de Casa Grande. O pobre sonha morar num lugar assim, uma ilha cercada de ócio por todos os lados, com todas as gostosas da TV, incluindo as siliconadas; ser famoso e chique. O povo aprendeu isso - de querer ser um elite - na escola, mas, principalmente nas TVs e rádios e jornais das elites. O apelo pedagógico foi tão forte, tão sistemático, que o pobre não viu (não lhe deixaram ver) que as elites lhe roubam, e que ele mora numa senzala, numa favela, na periferia, num barraco, ou embaixo de um viaduto, porque a riqueza do país vai toda para essa gente. O que lhe sobra são as migalhas do banquete. Banquete montado com o que lhe pertence.
O latifúndio da terra
Constroem-se latifúndios porque as elites não se fartam com pouco e, afinal, têm a certeza de que o que é do Brasil deve ser delas. A começar pela terra.
As sesmarias funcionaram da época do achamento pelos portugueses até julho de 1822. As terras foram entregues aos fidalgos e tinham caráter hereditário. Não eram propriedades privadas no termo exato da expressão. O barão, conde ou visconde, recebia o direito de explorar a terra mas não podia arrendar ou vender as terras recebidas. Eram concessões de uso da terra.
Com a independência do Brasil, em 1822, e a promulgação da sua Constituição dois anos depois, ficou definido o direito da propriedade absoluta. A burguesia brasileira, que fez a independência, estava de olho na manutenção dos seus privilégios.
Em 1850 surgiu a “Lei de terras”, quando ficou estabelecido o direito civil de propriedade de terras, tanto legitimamente particulares quanto públicas. As antigas sesmarias foram confirmadas. A Lei dizia que para regulamentar a propriedade bastava apresentar os documentos. Como os coronéis, as oligarquias rurais, não tinham os documentos - afinal a maior parte vinha de grilagem de terra pública ou roubo de posseiros -, tentaram a regulamentação dos primeiros latifúndios sem apresentação de provas. Daí montaram processos fraudulentos para se apropriar das propriedades.
Então chegam os anos 60. Em Pernambuco proliferam as “Ligas Camponesas” propondo a reforma agrária. Elas mostram ao camponês que o Brasil é rico mas essa riqueza vai para Casa Grande.
Em 1964, preocupadas com a possibilidade do Governo João Goulart mexer numa coisa sagrada para elas, a propriedade da terra, as elites nacionais, apoiadas pelo império norte-americano, se juntam aos militares e dão um golpe no Brasil. Participam da conspiração e do golpe todos os grandes veículos de comunicação do país.
Já no primeiro ano de ditadura, o General Castelo Branco, cumprindo o compromisso assumido com essas elites, para “sanar o problema da reforma agrária”, implanta o “Estatuto da Terra”. Por ele a reforma agrária é terceirizada, empresas privadas assumem o papel de fazer a colonização de terras; aumenta a especulação de terras, a reforma agrária é adiada; é feita a “titulação” das terras da União; aumentam os privilégios ilegais e ilegítimos; criadas “alienações sem concorrência” para áreas de até 3 mil hectares; e “alienação com direito de preferência”, também de caráter privilegiador.
Depois veio a “revolução verde” - inventada pelo setor industrial no pós-guerra, com o apoio da ONU e o aval das academias que deveria “acabar com a fome no mundo”. Mas a fome ficou maior. E oodutor rural foi feito dependente dos insumos da indústria. Depois vem o agronegócio – o agricultor produz o que o mercado quer e não o que o povo precisa comer. Então, ampliam-se os latifúndios, fazendo com que 1% de proprietários detenham 46% de todas as terras do Brasil; e 4,8 milhões de famílias fiquem sem terra.
Cresce o agronegócio. Hoje o Brasil, um país de famintos, é campeão mundial na exportação de carne bovina; campeão mundial na exportação de soja; 77% do café que produz vai para fora; e também sai 93% do suco de laranja e 58% do seu açúcar. As melhores terras são usadas para monocultura e cultura de exportação.
Pecando contra a sabedoria acadêmica é possível afirmar: a Casa Grande não se acabou, pelo contrário, ela ficou internacional, transnacional porque sua alma não tem pátria. O capital não tem pátria – tem ambições. E suas ambições são maiores do que o planeta.
A Casa Grande, porém, não seria grande se não tivesse o poder da fala. A fala é o poder. O poder é bom, mas ele só se mantém quando você fala e não deixa que os outros falem. Por isso a Casa Grande é indústria, banco, terra, religião, mas, principalmente, comunicação e cultura.
O latifúndio do ar
É com a comunicação que as elites ficam mais ricas e explicam o mundo ao povo; e justificam sua riqueza diante do povo. A comunicação estabelece a cultura. É com a comunicação que o bandido, tornado rico e famoso, é invejado pelo povo. Homem de sucesso. Rico e poderoso. Como ele ficou rico e poderoso? Graças ao trabalho ou à fama. E ninguém questiona mais. A senzala, inexistente nos meios de comunicação, não sabe que há uma luta de classes.
Os meios de comunicação informam que existe a fome, a miséria, a favela, o tráfico, mas é tudo por falta de uma abstrata política governamental (precisa mudar mas sem mudar a distribuição da riqueza). A questão é estrutural, mas se atribuem nossos problemas a uma entidade irreal, a “autoridade”. Também dizem que a fome é, principalmente, coisa de pobre, e circunstancial - dessa gente que não teve oportunidade de estudar, ou de virar pagodeiro ou jogador de futebol. Na versão modernizada, eis a panacéia para o social: aprender informática e dançar capoeira faz o sujeito “sair” do crime, escapar da violência e discriminação. Ensina a mídia elitizada ao povo da senzala irreal que basta força de vontade para escapar da miséria. O mercado, divindade entronizada pelas elites, oferece as oportunidades. Basta estudar. E tome curso de formação para pobre. No jornal da tarde a TV comercial festeja a vitória daquela menina que mora na favela mas estuda balé; e o sucesso daqueles meninos do sertão brabo, aonde não se pode plantar porque a água tem dono (é do coronel, dono da terra e da rádio local), mas eles tocam Mozart, Beethoven, Bach... O clássico chegou à caatinga – então está tudo resolvido: a fome não existe mais. E o povo da senzala comemora poder entrar na Casa Grande – aparecer no jornal da elite – e tocar o que a elite diz que é coisa de gente fina, música clássica.
As elites, através da comunicação, manipulam a cultura e impõem seus padrões sobre o oprimido, que os absorvem:
“O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivem a dualidade enquanto ser é parecer, e parecer é parecer com o opressor, é impossível fazê-lo”. (Paulo Freire em “Pedagogia do oprimido”)
O poder nas comunicações, como na terra, ainda é oligárquico, feudal, embora moderno, industrial. Ele se distribui entre as famílias – donas de terra, agronegócios, bancos, jornais, revistas, ou emissoras de rádio e televisão –, e o clero. A comunicação faz e refaz a história. Eles sabem: “Quem manipula o poder, manipula também o esquecimento”.
Eis os latifundiários religiosos, o poder do clero: as emissoras nas mãos das igrejas:
Fonte: artigo “Existe concentração na mídia brasileira? sim”, de Venício Lima, 2003
É preciso levar em conta que a igreja Católica, embora já sendo proprietária de uma das maiores de redes de comunicação do país, ainda tenta se apossar das rádios comunitárias. Isto é ilegal e condenado pelo movimento das rádios comunitárias. No entanto, a Igreja Católica têm uma rede de emissoras ditas “comunitárias”, agregadas em torno da Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc). Estas rádios, em sua maioria, já têm a autorização oficial – como ela consegue isso se a lei proíbe? Pior, a Ancarc se junta aos latifundiários da comunicação para delatar ao Governo as rádios comunitárias não–autorizadas.
Os empresários, os latifundiários da comunicação, têm alcance nacional ou regional, conforme o caso. São oligarquias históricas, como se vê abaixo: Fonte: artigo “Existe concentração na mídia brasileira? sim”, de Venício Lima, 2003
Falta acrescentar à lista outras famílias não menos poderosas, como Sarney, no Maranhão; Collor de Melo, Alagoas; Jáder Barbalho, Pará,...
O poder Legislativo
Tanto o latifúndio da terra quanto o do ar têm seus representantes políticos no Congresso Nacional. Eles atuam na fabricação das leis que lhes interessam, legitimando o poder e o saque às riquezas nacionais.
Na maioria dos casos o parlamentar é o dono do veículo e defende abertamente seus interesses. Mas, regra geral, as empresas de comunicação sustentam lobbies em Brasília, que articulam representantes no Congresso Nacional.
A família Marinho – da Globo – optou por agir indiretamente sobre o Congresso. Não há nenhum Marinho ocupando cargo político ou envolvido diretamente nas articulações. Quando há necessidade usa-se o poder de fogo da própria emissora, na escolha e na forma de cobertura de temas para reportagens. É muito mais eficiente. Todo mundo sabe que uma reportagem (que chega a 96% dos lares brasileiros) pode destruir uma pessoa para sempre. Não espanta que políticos independentes tenham medo da Globo.
Os meios de comunicação atuam para ampliação do capital, mas também e principalmente, na campanha de ocultamento dessa realidade: que existe uma classe explorando outra. Mas isso é feito de modo tão científico, tão bem elaborado, que o povo da senzala, ao incorporar os ensinamentos dos exploradores, não reclama de sua miséria.
Pra iludir o povo, eis o circo montado - o entretenimento. A TV comercial é uma festa, um espetáculo, mesmo quando trata de guerra e massacres. Jornalismo é entretenimento. Intencionalmente o real e a ficção se confundem. O noticiário das oito fala de um ator envolvido no consumo de drogas, que depois aparece na novela das nove. Na novela das nove seres reais se misturam com seres irreais. A guerra no Iraque tem sua versão mentirosa para a agressão espalhada pelo jornal das oito. Depois do horror estabelecido, o jornal da oito diz que era tudo mentirinha.
Tudo isso para quê? Para que a senzala não se veja.
O horror da burguesia, das elites, é quando a senzala se vê no espelho e se vê no mundo. “O latifundiário não tem medo dos sem-terra porque eles ocupam a terra, mas porque pensam”, explica João Pedro Stédile, dirigente do MST. Gente que pensa é sempre um perigo para burguesia. Porque pobre pensando quer mudança.
Uma outra forma de se enganar o explorado é ofertando o pão, isto é, o emprego. Na Bahia, uma empresa transnacional, a Veracell, instalou-se em área de Mata Atlântica para plantar eucalipto e produzir celulose para exportação. Em troca vai gerar 3 mil empregos. O Governo Lula aceita o negócio: barganha com a miséria nacional, aceita o pão dado aos miseráveis. O Governo vai dar isenção de impostos, estradas, comida e roupa lavada; vai permitir a derrubada da Mata e a plantação do deserto verde. O Governo comemora. A burguesia festeja mais ainda. Tudo normal: cada vez que uma super-empresa vem se instalar no Brasil o Estado oferece tudo: casa, comida, roupa lavada,... Em troca, o sub-país ganha sub-empregos
A comunicação se encarrega de dar uma boa embalagem nessas ações presidenciais em defesa do capital, mascarando-a como ação social. E não se diz do povo tocado para as senzalas...
Em 1922 chega ao Brasil o primeiro veículo de transmissão via ondas de rádio. Imediatamente as elites se apoderam do meio e estabelecem que cabe ao Estado (dominado por elas) decidir quem deve utilizar o meio. Quem? Elas, claro. E as concessões são distribuídas entre os amigos e parceiros do poder. Em 1950 chega a televisão e o processo político de distribuição continua do mesmo jeito. No Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), filho predileto do neoliberalismo, as regras “mudam”: recebe concessão de rádio ou TV quem tiver mais dinheiro para pagar por ela!...Quem? Os mesmos.
Apesar de historicamente o Estado estar a serviço dos ricos, entregando-lhes o espaço eletromagnético, os pobres deste país resolveram enfrentar este poder, abrindo rádios livres. Mais tarde, já nos idos de 90, botam no ar as comunitárias sem aguardar as concessões oficiais... O povo descobre que falar é bom, e falar da comunidade e para a comunidade é melhor ainda. E isso mete medo nos empresários da comunicação.
A sedução dos piratas
A repressão – ainda no Governo FHC – cai em cima de quem coloca rádio no ar sem autorização. Fecham-se rádios “ilegais” e os que atuam nelas são presos. Então, em 1996, chega ao Congresso a proposta de regulamentar as rádios comunitárias. Como o Congresso está nas mãos das elites, aprova uma lei sem caráter, a 9.612/98. A lei inviabiliza as RCs. Ao povo restam duas alternativas: ou se adequa à lei, e faz uma rádio inviável; ou coloca a rádio no ar por sua conta, sendo tratado como marginal, bandido, pirata, pelo Estado. Se correr o bicho pega se ficar o bicho capa.
Nesse meio tempo, as emissoras comerciais, temendo a expansão das rádios comunitárias não-enquadradas na lei furreca para o setor, deflagram campanha de satanização das emissoras não-autorizadas. A campanha diz que elas representam risco de vida, que derrubam avião, e que servem ao narcotráfico. TVs e rádios comerciais se encarregam de difundir a mentira.
Boa parte dos que fazem rádio comunitária não está qualificada para a luta contra a burguesia, e nem percebe que há aí uma luta de classes. Por isso não sabe se defender da repressão oficial, e acaba sendo enganada por líderes oportunistas. As elites cooptam lideranças (antigas, oportunistas) no movimento, colocando-as a serviço dos seus interesses. Resultado: denúncias de desvio ético e cooptação de lideranças entram no repertório de discussão do movimento, fragmentando a luta.
Para que as rádios comunitárias não escapem ao controle, a burguesia elabora uma estratégia de domínio sobre elas. O controle se faz por repressão, cooptação, contaminação ou sedução. A entidade representante das emissoras comerciais chega a oferecer ajuda técnica na instalação e operação de emissoras,... mas somente às legalizadas. Isto é, somente àquelas que se submeteram à lei que as colocou numa espécie de galinheiro – quietinhas, caladas, como cabe ao povo da senzala.
A contaminação é fazer com que o inimigo tenha na sua cultura a língua e os valores do outro. Os Estados Unidos adotam essa estratégia desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E, como se vê dá certo. No período de colonização do Brasil, os jesuítas adotaram essa prática para destruir a cultura dos índios e assim fazê-los escravos da Igreja. Funcionou.
A fórmula da sedução/contaminação está sendo implementada hoje, a partir do Rio de Janeiro. A TV Globo, maior latifundiária das comunicações no Brasil, por integrar o conselho dirigente da ONG Viva Rio, criou um projeto para as rádios comunitárias. O projeto se chama Viva Favela, e tem como objetivo levar “conteúdo” às emissoras comunitárias, integrando-as numa rede via Internet. Começa no Rio de Janeiro mas não tem fronteiras. Na primeira fase oferece “gratuitamente” o áudio de programas da TV Globo ( “Zorra total”, “Casseta e Planeta”, “Xuxa”,...) para serem veiculados nas emissoras comunitárias, mesmo aquelas consideradas piratas pelo Governo. E quem não tem acesso à Internet basta um telefonema para recebê-los em casa, gratuitamente.
A parceria Globo/Viva Rio/Viva Favela inclui visitas programadas das RCs ao complexo Projac (central de produções de telenovelas da Globo). A classe operária vai ao paraíso.
A contaminação cultural – que exclui a cultura local, autônoma, independente, original, criativa - tem objetivos bem claros para as classes dominantes. Por isso, para ocultar a manobra, o projeto do Viva Rio/TV Globo vem maquiado como solidariedade da maior rede do país, “aos mais carentes” que fazem rádio comunitária. Vem como uma cooperação democrática, como proposta de desenvolvimento local, modernidade, etc. Tudo isso para seduzir, contaminar e cooptar. Para entrar na sua vida, para depois determinar a sua vida.
A parceria entre a TV Globo/Viva Rio e as rádios comunitárias é uma tentativa de cooptação do movimento. Afinal, como existir parceria entre explorados e exploradores, opressores e oprimidos?
O que está em jogo – e a elite sabe muito bem – é a possibilidade de haver ou não uma revolução política, com o povo brasileiro tendo direito a voz. Levar a voz do opressor para sua casa, para o seu instrumento de transformação política, como se faz pelo Viva Rio é uma aberração que a história não digere e condena todos aqueles que defendem tal transgenia. Não tem cabimento retransmitir um programa da Xuxa, por exemplo, que estimula o consumo e trata as crianças como débeis–mentais; ou um “Casseta & planeta”, que se resume a um humor-propaganda da Globo, e de manutenção dos velhos preconceitos contra os diferentes (gaúchos, nordestinos, gays,...).
A cooptação é uma tentativa de dissolução da possível revolução política. Jamais ocorrerão mudanças se o explorado abrir mão do seu espaço para que o explorador utilize este espaço para impor seus argumentos. Porque todo texto, toda fala da burguesia, tem o lastro ideológico da burguesia – é sempre um manifesto em defesa dos seus valores e princípios.
Algumas, porém, fazem isso por absoluta pobreza material. A maioria do povo brasileiro não tem dinheiro para comprar jornais, revistas; não tem acesso à Internet; não tem dinheiro para pagar a assinatura de um canal de TV, comprar um livro, um CD, pagar a entrada do cinema ou assistir uma peça de teatro. Estes produtos culturais são para uns poucos. Não é para o pobre. Ao pobre se reserva a TV aberta e seu poço jorrando mediocridade 24 horas por dia. Ele não tem escolha.
A intervenção das elites sobre a cultura é algo assustador. A indústria cultural, gerida pelas elites do setor, promovem um genocídio da cultura brasileira. Ela determina que o país deve conhecer apenas cinco gêneros musicais, dez grupos e uma dúzia de artistas. A indústria cultural determina o cinema da moda, a música da moda, a dança da moda, o cantorzinho da moda. Portanto, quando uma rádio comunitária reproduz a programação de uma emissora comercial ela está reproduzindo os interesses da elite estabelecidos pela indústria cultural. Essa música “do povo” veiculada nas comerciais nada mais é que a música determinada pelas elites para o povo. Se ela já é indefensável sob o ponto de vista de qualidade artística, muito menos o é sob o ponto de vista político e cultural.
Graças a esta dominação sobre o que é veiculado nas redes de rádio e TV no país, a trilha sonora ouvida em todo país é o que existe de pior em música brasileira. Intencionalmente deseducou-se o povo para a estética musical. Agora não se sabe mais o que é de qualidade em música, prevalecendo o gosto imposto.
Festa de rico
A TV comercial não quer o trabalhador pensando, refletindo sobre o país, sobre o mundo. A TV é uma festa que não acaba nunca. E uma festa claramente ideológica, que acontece em dois salões: de um lado, as celebridades - os ricos e poderosos opinam, aparecem, decidem sobre os destinos do país; do outro, o povo comum, mostrado em situações de constrangimento, humilhado, sem vez e voz.
É na TV que a burguesia mais prega a inexistência de uma luta de classes. Ela estabelece a comunicação e a cultura como fator de alienação da classe oprimida. É assim que faz a opressão. E o faz muito bem. Por isso o movimento das rádios comunitárias não distinguiu ainda quem são seus parceiros e seus inimigos. Uma TV Globo faz campanha cerrada contra as rádios comunitárias, difunde que ela derruba avião, censura as matérias favoráveis às boas rádios comunitárias, só revelando as aberrações,... E mesmo assim ainda consegue montar um projeto de parceria com rádios comunitárias! Mesmo assim consegue colocar programas (medíocres!) em emissoras comunitárias! O sonho da burguesia é devorar as rádios comunitárias, e assim impedi-las de cumprirem seu papel histórico.
Enquanto movimento social, o das rádios comunitárias carece de uma maior fundamentação para o enfrentamento da luta política. Atropelado pela falta de comunicação (faltam recursos para acessar os meios) e pela incomunicação (da contaminação forçada da burguesia), o movimento se constrói de forma segmentada. Felizmente alguns focos perceberam o que é essa luta e fazem a resistência usando a mente e o coração. São emissoras comunitárias de fato, líderes de audiência, com programação de qualidade e capacidade de enfrentamento à repressão.
Penosamente massacrado pelo Estado, que insiste em se atrelar ao poder burguês, e pelas inúmeras tentativas de cooptação, o movimento segue cambaleante. As seduções do capital já arrebanharam líderes e falsos líderes para as suas hostes, forjaram equivocados e oportunistas, entidades e representantes suspeitos... Mas também construiu bases sólidas e novas e corajosas lideranças.
O problema é que o Governo – este Governo que se dizia popular - dá mau exemplo. Ele ensina que as alianças, as parcerias, são necessárias ao funcionamento do Estado. Então, tudo é permitido. Os aliados de hoje eram inimigos ontem. Amigos de hoje eram os inimigos de ontem - aqueles que já foram apontados como sem ética, cruéis, demagogos, agora são parceiros. Para quê? No fundo a gente sabe: para garantir o poder. Faz-se política pelo poder. Não existe mas um objetivo – mudanças, reformas sociais –, o que existe é somente a ambição do poder. Lula já fala em reeleição. Depois de dois anos seu Governo ainda nem começou, e talvez por isso ele fale em renovação do mandato. Tanto não começou que FHC tem insistentemente elogiado a continuidade de sua obra política e econômica. Editoriais das grandes redes de comunicação (os latifundiários do pedaço) elogiam o rumo econômico adotado. Latifundiários da terra dizem o mesmo.
A sede de poder
O grupo político dominante no Planalto articula, negocia, faz barganhas, acordos, com o objetivo único de se sustentar no poder. Esta classe de luta é vergonhosa para a história porque representa um retrocesso político e uma deseducação para a política. O que está se ensinando é: todos os partidos são iguais, todos os políticos são iguais, todos os governos são iguais; não existe luta de classes, não existem inimigos na luta política, tudo é negociável.
O Partido dos Trabalhadores, que hoje está (está?) no Governo, sempre tratou a radiodifusão comunitária com um profundo desprezo. Por medo ou burrice, valorizou a comunicação praticada pela grande mídia, a da burguesia. Enquanto isso, uns poucos parlamentares e militantes sustentaram a luta das rádios comunitárias em caráter quase pessoal. Entre estes, alguns, infelizmente, em nome da boa relação política, abriram as portas para reconhecidos oportunistas, por serem petistas e portarem crachás de dirigentes de entidades. Em várias ocasiões dirigentes e certos parlamentares petistas foram informados da atuação anti-ética de companheiro de partido no movimento das rádios comunitárias e nada fez. Omitiu-se. Falou mais alto o corporativismo. Abriram as portas para os inconfiáveis porque tinham crachás poderosos, o que lhes garantia a imunidade de dirigente. Corroborados pelo modo petista de lidar com lideranças, muitos oportunistas avançaram, e ocuparam importantes espaços políticos.
Tudo isso representou um extraordinário retrocesso para o movimento. Falsos líderes e oportunistas, ocupando espaços com o apoio do PT, fizeram com que as bases perdessem as referências ideológicas e éticas. Ficou cada um por si.
Ainda bem que apesar deste mau exemplo algumas emissoras comunitárias e entidades regionais foram longe, bem mais longe que entidades e líderes. Aprenderam, por conta própria. E agora ensinam o que é fazer política e fazer rádio comunitária.
O PT já foi vanguarda no Congresso Nacional na questão das rádios comunitárias. O partido, graças a alguns militantes e parlamentares, foi referência nacional. No entanto, devido ao absoluto desprezo da direção nacional ao tema, ao comportamento repressivo do atual Governo, e ao corporativismo partidário, perdeu o rumo. E veio o caos. E o caos chegou às bases.
Perdeu-se a distinção de quem são os aliados e quem são os inimigos das rádios comunitárias. Como entrar numa briga se a gente não sabe quem está do nosso lado e quem quer nos devorar? Um ministro das Comunicações (ex-PDT, hoje PPS) se apresentou como amigo das rádios comunitárias mas depois se viu que ele não era nada disso. Era pelo contrário.
Sem uma referência política, alimentada pela cultura histórica do paternalismo burguês e sob o comando de falsos líderes, boa parte do movimento transformou a disputa política numa briga com a burocracia. Equivocadamente o objetivo do movimento se resumiu a exigir maior rapidez no funcionamento do cartório-Brasília, o Ministério das Comunicações. O importante era ter a autorização oficial. A questão política maior e escancarada ficou em segundo plano: que a autorização oficial significa botar a rádio para funcionar num galinheiro, conforme determina a legislação em vigor: freqüência fora do dial, limitações de publicidade, impedimento a formação de redes, sem a segurança do Estado às interferências das comerciais, alcance limitado,... Não se cobrou do Estado com a devida firmeza um novo marco regulatório capaz de atender à coletividade, corrigindo a legislação existente. Não se cobrou o fim da repressão - na prática, significa a exclusão pela força do acesso à comunicação de milhares de brasileiros.
A substituição no movimento das rádios comunitárias da luta política por uma luta burocrática, cartorial, foi uma vitória da burguesia. Para as elites, para o latifúndio da comunicação, natural inimigo da democracia na comunicação e, por extensão, da comunicação comunitária, é bom que o movimento reivindique apenas um melhor funcionamento do cartório. É melhor ainda para as elites que este foco de luta não tenha fim, porque continuará atraindo as atenções e as energias do movimento. Também é bom para a burguesia – como foi feito em 2003 – que o ministro das Comunicações (Miro Teixeira) constitua um Grupo de Trabalho com a missão de estudar meios de agilizar os processos travados no seu cartório. Este GT era tão “democrático” que para discutir rádios comunitárias o Ministro botou lá dentro um representante do latifúndio. E o movimento aceitou. As propostas do GT foram pro lixo. No final de 2004 o Governo montou um novo GT.
Mas onde está o Estado?
A partir de 1995 o Governo Fernando Henrique Cardoso deu continuidade à implantação do projeto neoliberal iniciado por Collor de Melo. Sob o argumento falacioso de que o Estado é ineficiente, caro e não pode se intrometer no setor produtivo, nem gerar ou produzir bens, reduziu seu poder ao de um limitado administrador de interesses. Até mesmo seu papel regulamentador de mercado foi quase totalmente extinto. O Estado foi tornado um assessor do mercado, uma instituição que tem por objetivo facilitar as ações do mercado. Num Estado assim, como bem observa Noam Chomsky, quem manda são as empresas. O Estado existe para servir aos interesses das empresas. Por isso quando os Estados Unidos resolveram taxar a entrada do aço “brasileiro” o presidente da República, Lula, correu para defender as “siderúrgicas nacionais”. As tais “siderúrgicas nacionais”, que já foram estatais no passado, hoje pertencem a poderosos conglomerados e cartéis transnacionais.
Em outro patamar, quando a Globo Cabo, de uma família de latifundiários da comunicação, anunciaram uma dívida superior a R$ 5 bilhões, imediatamente José Dirceu, ministro da Casa Civil no Governo Lula, disse que a dívida da Globo era “uma questão de Estado”. Quando, em julho de 2004, a Vale do Rio Doce, privatizada por FHC por ser eficiente e dominar reservas minerais estratégicas, inaugurou uma nova mina de cobre para explorar, o presidente Lula foi lá e festejou com eles. Esquece que isto tudo era nosso e nos foi tomado. A senzala dança na Casa Grande.
A ousadia de Fernando Henrique foi fazer do Brasil um Estado neoliberal aparentemente indestrutível (pelo menos é o que dizem os ideólogos do Governo Lula). Para criar esta aura de destino sem volta dois grandes aparatos se destacam: 1) o poder do FMI, que no Governo FHC decidia até sobre a compra de papel higiênico; 2) a criação das agências reguladoras.
FHC criou agências para todos os setores estratégicos: saúde, petróleo, energia, telecomunicações, transportes,... Foi uma imposição do FMI para retirar do Estado o poder de regulamentar e fiscalizar o mercado. São institutos públicos transgênicos: para todos os efeitos a agência é uma instituição pública, mas sendo autônoma e constituída por uma direção “democrática”, atua como um órgão a parte, capaz de estabelecer direta ou indiretamente políticas para o setor. Na verdade, a burguesia conseguiu com a agência ter um aparato de Estado (pago e sustentado pelo Estado), fora do Estado e a serviço do mercado. As agências servem tão bem ao mercado que seus maiores defensores são os empresários. Cada vez que se fala em mudança de dirigentes ou de sua estrutura, editoriais inflamados e reportagens em grandes dimensões aparecem nos veículos da grande mídia defendendo a sua atual constituição. E o Governo Lula aceita.
A Agência Nacional de Telecomunicações, Anatel, é uma das mais eficientes no papel de servir ao mercado. As empresas de telefonia são reconhecidamente um desastre para o país, campeãs de denúncias nos procons, com a oferta de serviços de má qualidade, mau atendimento, e abuso nas tarifas. No entanto, a Anatel, a quem caberia exigir mais dessas empresas, não cobra o mínimo de qualidade. Por outro lado, a Anatel se tornou o braço mais eficiente dos latifundiários da comunicação na repressão àqueles que exigem seu direito à comunicação. Em 2004, em plena maturidade do Governo Lula, foram fechadas mais de 4 mil emissoras de baixa potência.
No afã de servir ao mercado, a Anatel já ousou passar por cima de leis maiores. Em 1997, uma decisão do Supremo Tribunal Federal proibiu a Anatel de apreender equipamentos de emissoras “clandestinas”, como determinava a Lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações). Pois bem, a Anatel não obedeceu. Só depois que foi feita uma “reclamação” ao Supremo ela parou com tais ações. Mas aí, não podendo legalmente apreender, resolveu que podia “lacrar”. E criou uma Resolução interna neste sentido. Todo mundo sabe que “apreender” ou “lacrar” dá no mesmo – é tornar um bem indisponível. Ou seja, ela continuou fazendo o que fazia antes.
A Anatel tinha que agir, tinha que cumprir as ordens da burguesia, que exigia a apreensão dos equipamentos. Então passou a trabalhar em conjunto com a Polícia Federal que “tem” poderes para fazer a apreensão em caso de flagrante e por ser crime federal. Baseada em que lei? Em alguns locais a Polícia Federal usa a Lei 4.117/62, artigo 70 (cadeia para quem opera emissoras sem autorização), embora essa lei não fale em rádios comunitárias; em outras regiões, a Lei 9.472/97 (a LGT), artigo 183 (que também é cadeia) mesmo que essa lei seja para telecomunicações e não para radiodifusão. Em alguns locais a PF chega a usar o Código de Processo Penal para fechar rádios e levar preso quem as opera! Não importa a legitimidade da lei e sua aplicação, o que importa é impedir o povo de se manifestar.
Como não faltam recursos à Anatel (afinal se pensou nisto ao criá-la), é a agência quem paga diárias de agentes da Polícia Federal, fornece automóveis/combustíveis, nas suas ações de repressão. São blitz de escandaloso aparato: os agentes da PF vão extraordinariamente armados de metralhadoras e escopetas para prender os “piratas” – a maioria gente pobre, tratada como traficante, bandido perigoso. Embora seja considerado crime federal (por eles) a operação clandestina de emissoras, não é só a PF que fecha rádio comunitária,. Hoje a PM e até Polícia Civil se acha no direito de reprimir o pobre. No Governo Lula, mais um pouco e até guarda noturno vai querer fechar rádio comunitária. Em pobre, preto e prostituta, todo mundo quer bater.
Na luta de classes, a classe dominante cria leis que legitimam seus atos e suas intenções, e, ao mesmo tempo, solidifica o aparato repressor para evitar as reações. Por isso nem todo legalista é um tirano, mas todo tirano é um legalista. Toda repressão precisa ser legalista – não faltarão leis e normas para justificar uma decisão política. Sim, porque apesar do Estado querer ocultar isso, as ações de repressão às rádios comunitárias, é fruto de uma decisão política, vem de um poder, a classe dominante, que determinou ao Estado o acionamento dos seus instrumentos para coibir a organização popular. Se a classe dos trabalhadores estivesse contemplada pelo Estado, ou no Estado, a repressão seria contida, no mínimo, com a formulação de medidas políticas emergenciais enquanto se faria uma reformulação da legislação vigente, impedindo a continuidade de um processo histórico de marginalização das massas.
Pelo contrário, está bem claro que o Governo atual fez uma aliança com a burguesia, com o que existe de mais atrasado em política nacional. Uma aliança sem pudor que envergonha todos os que acreditaram nele, em especial a classe operária. É vergonhoso que a repressão de hoje às emissoras de baixa potência seja maior do que nos tempos da ditadura; que esta repressão se baseie numa lei criada pelos militares (o artigo 70 da Lei 4.177), ou no fundamentalismo neoliberal de FHC (Lei 9.472); que o comando dela esteja com um aparato criado pelo neoliberalismo para atender aos seus interesses, a Anatel.
Quem organiza a luta?
É da essência do capital manter sob controle as classes dominadas. As estratégias são pontuais ou globais, mas é parte das regras mínimas de sobrevivência do capital. O capitalismo não existe sem exploração, por isso o explorado não pode saber que é explorado. Quando se trata de uma questão perigosa como esta (o surgimento das rádios comunitárias), os latifundiários da comunicação se organizam e agem para coibir sua proliferação. Por exemplo, desencadeiam na imprensa uma onda de reportagens satanizando os movimentos populares; cobram do Estado mais repressão; tenta-se a cooptação do movimento.
Como esta é uma luta histórica, o lado deles, a burguesia, já sabe muito bem o que fazer. Por isso, quando o povo pede uma regulamentação para as rádios comunitárias, primeiro a classe dominante diz não. Depois, pressionada, faz uma legislação ilusória, que, na prática, inviabiliza as RCs. Mais tarde, quando a população diz que não tem mais canais aonde instalar suas rádios comunitárias – porque o dial foi reservado para os ricos -, o Estado fornece canais fora do dial. Hoje estão disponibilizados oficialmente três canais de operação das rádios comunitárias, 87,5-87,7-87,9 MHz. Todos fora da faixa de freqüências de FM, que vai de 88 a 108Mhz. Dois deles foram estabelecidos pelo Governo Lula.
Querer engolir as rádios comunitárias é da natureza dos latifundiários da comunicação. Eles jamais admitiriam que as camadas mais pobres, os explorados, tivessem meios de comunicação. Não bastou criar uma legislação ruim para as rádios comunitárias ou mesmo botar as TVs comunitárias nos canais por assinatura (longe do povo), é preciso impedir pedagogicamente os rebeldes, botando a polícia para prendê-los quando ousarem criar quilombos de comunicação, as chamadas “clandestinas”. Também é preciso cooptar os indecisos, oferecendo “gratuitamente” seus produtos (ideologicamente nocivos a este povo). A burguesia sabe que, pior do que um povo organizado e que pensa, é a manifestação desse pensamento.
No entanto, chegar ao seu veículo de comunicação deve ser um dos objetivos do explorado. A outra banda da luta é saber que existe uma classe que luta contra ela, contra os seus direitos, entre os quais o direito à comunicação. E saber também que a burguesia usará de todos os meios possíveis – da violência física à sedução - para impedir que os pobres saibam disso e possam, então, exigir os seus direitos. Alguém já disse, ganha a guerra quem tiver mais informações, e quem souber estabelecer uma estratégia identificando a dimensão da sua força, dos seus aliados, e dos seus inimigos. Este é o grande desafio do movimento das rádios comunitárias hoje.
* Dioclécio Luz é jornalista, escritor, assessor parlamentar, membro da diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF.
É preciso levar em conta que a igreja Católica, embora já sendo proprietária de uma das maiores de redes de comunicação do país, ainda tenta se apossar das rádios comunitárias. Isto é ilegal e condenado pelo movimento das rádios comunitárias. No entanto, a Igreja Católica têm uma rede de emissoras ditas “comunitárias”, agregadas em torno da Associação Nacional Católica de Rádios Comunitárias (Ancarc). Estas rádios, em sua maioria, já têm a autorização oficial – como ela consegue isso se a lei proíbe? Pior, a Ancarc se junta aos latifundiários da comunicação para delatar ao Governo as rádios comunitárias não–autorizadas.
Os empresários, os latifundiários da comunicação, têm alcance nacional ou regional, conforme o caso. São oligarquias históricas, como se vê abaixo: Fonte: artigo “Existe concentração na mídia brasileira? sim”, de Venício Lima, 2003
Falta acrescentar à lista outras famílias não menos poderosas, como Sarney, no Maranhão; Collor de Melo, Alagoas; Jáder Barbalho, Pará,...
O poder Legislativo
Tanto o latifúndio da terra quanto o do ar têm seus representantes políticos no Congresso Nacional. Eles atuam na fabricação das leis que lhes interessam, legitimando o poder e o saque às riquezas nacionais.
Na maioria dos casos o parlamentar é o dono do veículo e defende abertamente seus interesses. Mas, regra geral, as empresas de comunicação sustentam lobbies em Brasília, que articulam representantes no Congresso Nacional.
A família Marinho – da Globo – optou por agir indiretamente sobre o Congresso. Não há nenhum Marinho ocupando cargo político ou envolvido diretamente nas articulações. Quando há necessidade usa-se o poder de fogo da própria emissora, na escolha e na forma de cobertura de temas para reportagens. É muito mais eficiente. Todo mundo sabe que uma reportagem (que chega a 96% dos lares brasileiros) pode destruir uma pessoa para sempre. Não espanta que políticos independentes tenham medo da Globo.
Os meios de comunicação atuam para ampliação do capital, mas também e principalmente, na campanha de ocultamento dessa realidade: que existe uma classe explorando outra. Mas isso é feito de modo tão científico, tão bem elaborado, que o povo da senzala, ao incorporar os ensinamentos dos exploradores, não reclama de sua miséria.
Pra iludir o povo, eis o circo montado - o entretenimento. A TV comercial é uma festa, um espetáculo, mesmo quando trata de guerra e massacres. Jornalismo é entretenimento. Intencionalmente o real e a ficção se confundem. O noticiário das oito fala de um ator envolvido no consumo de drogas, que depois aparece na novela das nove. Na novela das nove seres reais se misturam com seres irreais. A guerra no Iraque tem sua versão mentirosa para a agressão espalhada pelo jornal das oito. Depois do horror estabelecido, o jornal da oito diz que era tudo mentirinha.
Tudo isso para quê? Para que a senzala não se veja.
O horror da burguesia, das elites, é quando a senzala se vê no espelho e se vê no mundo. “O latifundiário não tem medo dos sem-terra porque eles ocupam a terra, mas porque pensam”, explica João Pedro Stédile, dirigente do MST. Gente que pensa é sempre um perigo para burguesia. Porque pobre pensando quer mudança.
Uma outra forma de se enganar o explorado é ofertando o pão, isto é, o emprego. Na Bahia, uma empresa transnacional, a Veracell, instalou-se em área de Mata Atlântica para plantar eucalipto e produzir celulose para exportação. Em troca vai gerar 3 mil empregos. O Governo Lula aceita o negócio: barganha com a miséria nacional, aceita o pão dado aos miseráveis. O Governo vai dar isenção de impostos, estradas, comida e roupa lavada; vai permitir a derrubada da Mata e a plantação do deserto verde. O Governo comemora. A burguesia festeja mais ainda. Tudo normal: cada vez que uma super-empresa vem se instalar no Brasil o Estado oferece tudo: casa, comida, roupa lavada,... Em troca, o sub-país ganha sub-empregos
A comunicação se encarrega de dar uma boa embalagem nessas ações presidenciais em defesa do capital, mascarando-a como ação social. E não se diz do povo tocado para as senzalas...
Em 1922 chega ao Brasil o primeiro veículo de transmissão via ondas de rádio. Imediatamente as elites se apoderam do meio e estabelecem que cabe ao Estado (dominado por elas) decidir quem deve utilizar o meio. Quem? Elas, claro. E as concessões são distribuídas entre os amigos e parceiros do poder. Em 1950 chega a televisão e o processo político de distribuição continua do mesmo jeito. No Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), filho predileto do neoliberalismo, as regras “mudam”: recebe concessão de rádio ou TV quem tiver mais dinheiro para pagar por ela!...Quem? Os mesmos.
Apesar de historicamente o Estado estar a serviço dos ricos, entregando-lhes o espaço eletromagnético, os pobres deste país resolveram enfrentar este poder, abrindo rádios livres. Mais tarde, já nos idos de 90, botam no ar as comunitárias sem aguardar as concessões oficiais... O povo descobre que falar é bom, e falar da comunidade e para a comunidade é melhor ainda. E isso mete medo nos empresários da comunicação.
A sedução dos piratas
A repressão – ainda no Governo FHC – cai em cima de quem coloca rádio no ar sem autorização. Fecham-se rádios “ilegais” e os que atuam nelas são presos. Então, em 1996, chega ao Congresso a proposta de regulamentar as rádios comunitárias. Como o Congresso está nas mãos das elites, aprova uma lei sem caráter, a 9.612/98. A lei inviabiliza as RCs. Ao povo restam duas alternativas: ou se adequa à lei, e faz uma rádio inviável; ou coloca a rádio no ar por sua conta, sendo tratado como marginal, bandido, pirata, pelo Estado. Se correr o bicho pega se ficar o bicho capa.
Nesse meio tempo, as emissoras comerciais, temendo a expansão das rádios comunitárias não-enquadradas na lei furreca para o setor, deflagram campanha de satanização das emissoras não-autorizadas. A campanha diz que elas representam risco de vida, que derrubam avião, e que servem ao narcotráfico. TVs e rádios comerciais se encarregam de difundir a mentira.
Boa parte dos que fazem rádio comunitária não está qualificada para a luta contra a burguesia, e nem percebe que há aí uma luta de classes. Por isso não sabe se defender da repressão oficial, e acaba sendo enganada por líderes oportunistas. As elites cooptam lideranças (antigas, oportunistas) no movimento, colocando-as a serviço dos seus interesses. Resultado: denúncias de desvio ético e cooptação de lideranças entram no repertório de discussão do movimento, fragmentando a luta.
Para que as rádios comunitárias não escapem ao controle, a burguesia elabora uma estratégia de domínio sobre elas. O controle se faz por repressão, cooptação, contaminação ou sedução. A entidade representante das emissoras comerciais chega a oferecer ajuda técnica na instalação e operação de emissoras,... mas somente às legalizadas. Isto é, somente àquelas que se submeteram à lei que as colocou numa espécie de galinheiro – quietinhas, caladas, como cabe ao povo da senzala.
A contaminação é fazer com que o inimigo tenha na sua cultura a língua e os valores do outro. Os Estados Unidos adotam essa estratégia desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E, como se vê dá certo. No período de colonização do Brasil, os jesuítas adotaram essa prática para destruir a cultura dos índios e assim fazê-los escravos da Igreja. Funcionou.
A fórmula da sedução/contaminação está sendo implementada hoje, a partir do Rio de Janeiro. A TV Globo, maior latifundiária das comunicações no Brasil, por integrar o conselho dirigente da ONG Viva Rio, criou um projeto para as rádios comunitárias. O projeto se chama Viva Favela, e tem como objetivo levar “conteúdo” às emissoras comunitárias, integrando-as numa rede via Internet. Começa no Rio de Janeiro mas não tem fronteiras. Na primeira fase oferece “gratuitamente” o áudio de programas da TV Globo ( “Zorra total”, “Casseta e Planeta”, “Xuxa”,...) para serem veiculados nas emissoras comunitárias, mesmo aquelas consideradas piratas pelo Governo. E quem não tem acesso à Internet basta um telefonema para recebê-los em casa, gratuitamente.
A parceria Globo/Viva Rio/Viva Favela inclui visitas programadas das RCs ao complexo Projac (central de produções de telenovelas da Globo). A classe operária vai ao paraíso.
A contaminação cultural – que exclui a cultura local, autônoma, independente, original, criativa - tem objetivos bem claros para as classes dominantes. Por isso, para ocultar a manobra, o projeto do Viva Rio/TV Globo vem maquiado como solidariedade da maior rede do país, “aos mais carentes” que fazem rádio comunitária. Vem como uma cooperação democrática, como proposta de desenvolvimento local, modernidade, etc. Tudo isso para seduzir, contaminar e cooptar. Para entrar na sua vida, para depois determinar a sua vida.
A parceria entre a TV Globo/Viva Rio e as rádios comunitárias é uma tentativa de cooptação do movimento. Afinal, como existir parceria entre explorados e exploradores, opressores e oprimidos?
O que está em jogo – e a elite sabe muito bem – é a possibilidade de haver ou não uma revolução política, com o povo brasileiro tendo direito a voz. Levar a voz do opressor para sua casa, para o seu instrumento de transformação política, como se faz pelo Viva Rio é uma aberração que a história não digere e condena todos aqueles que defendem tal transgenia. Não tem cabimento retransmitir um programa da Xuxa, por exemplo, que estimula o consumo e trata as crianças como débeis–mentais; ou um “Casseta & planeta”, que se resume a um humor-propaganda da Globo, e de manutenção dos velhos preconceitos contra os diferentes (gaúchos, nordestinos, gays,...).
A cooptação é uma tentativa de dissolução da possível revolução política. Jamais ocorrerão mudanças se o explorado abrir mão do seu espaço para que o explorador utilize este espaço para impor seus argumentos. Porque todo texto, toda fala da burguesia, tem o lastro ideológico da burguesia – é sempre um manifesto em defesa dos seus valores e princípios.
Algumas, porém, fazem isso por absoluta pobreza material. A maioria do povo brasileiro não tem dinheiro para comprar jornais, revistas; não tem acesso à Internet; não tem dinheiro para pagar a assinatura de um canal de TV, comprar um livro, um CD, pagar a entrada do cinema ou assistir uma peça de teatro. Estes produtos culturais são para uns poucos. Não é para o pobre. Ao pobre se reserva a TV aberta e seu poço jorrando mediocridade 24 horas por dia. Ele não tem escolha.
A intervenção das elites sobre a cultura é algo assustador. A indústria cultural, gerida pelas elites do setor, promovem um genocídio da cultura brasileira. Ela determina que o país deve conhecer apenas cinco gêneros musicais, dez grupos e uma dúzia de artistas. A indústria cultural determina o cinema da moda, a música da moda, a dança da moda, o cantorzinho da moda. Portanto, quando uma rádio comunitária reproduz a programação de uma emissora comercial ela está reproduzindo os interesses da elite estabelecidos pela indústria cultural. Essa música “do povo” veiculada nas comerciais nada mais é que a música determinada pelas elites para o povo. Se ela já é indefensável sob o ponto de vista de qualidade artística, muito menos o é sob o ponto de vista político e cultural.
Graças a esta dominação sobre o que é veiculado nas redes de rádio e TV no país, a trilha sonora ouvida em todo país é o que existe de pior em música brasileira. Intencionalmente deseducou-se o povo para a estética musical. Agora não se sabe mais o que é de qualidade em música, prevalecendo o gosto imposto.
Festa de rico
A TV comercial não quer o trabalhador pensando, refletindo sobre o país, sobre o mundo. A TV é uma festa que não acaba nunca. E uma festa claramente ideológica, que acontece em dois salões: de um lado, as celebridades - os ricos e poderosos opinam, aparecem, decidem sobre os destinos do país; do outro, o povo comum, mostrado em situações de constrangimento, humilhado, sem vez e voz.
É na TV que a burguesia mais prega a inexistência de uma luta de classes. Ela estabelece a comunicação e a cultura como fator de alienação da classe oprimida. É assim que faz a opressão. E o faz muito bem. Por isso o movimento das rádios comunitárias não distinguiu ainda quem são seus parceiros e seus inimigos. Uma TV Globo faz campanha cerrada contra as rádios comunitárias, difunde que ela derruba avião, censura as matérias favoráveis às boas rádios comunitárias, só revelando as aberrações,... E mesmo assim ainda consegue montar um projeto de parceria com rádios comunitárias! Mesmo assim consegue colocar programas (medíocres!) em emissoras comunitárias! O sonho da burguesia é devorar as rádios comunitárias, e assim impedi-las de cumprirem seu papel histórico.
Enquanto movimento social, o das rádios comunitárias carece de uma maior fundamentação para o enfrentamento da luta política. Atropelado pela falta de comunicação (faltam recursos para acessar os meios) e pela incomunicação (da contaminação forçada da burguesia), o movimento se constrói de forma segmentada. Felizmente alguns focos perceberam o que é essa luta e fazem a resistência usando a mente e o coração. São emissoras comunitárias de fato, líderes de audiência, com programação de qualidade e capacidade de enfrentamento à repressão.
Penosamente massacrado pelo Estado, que insiste em se atrelar ao poder burguês, e pelas inúmeras tentativas de cooptação, o movimento segue cambaleante. As seduções do capital já arrebanharam líderes e falsos líderes para as suas hostes, forjaram equivocados e oportunistas, entidades e representantes suspeitos... Mas também construiu bases sólidas e novas e corajosas lideranças.
O problema é que o Governo – este Governo que se dizia popular - dá mau exemplo. Ele ensina que as alianças, as parcerias, são necessárias ao funcionamento do Estado. Então, tudo é permitido. Os aliados de hoje eram inimigos ontem. Amigos de hoje eram os inimigos de ontem - aqueles que já foram apontados como sem ética, cruéis, demagogos, agora são parceiros. Para quê? No fundo a gente sabe: para garantir o poder. Faz-se política pelo poder. Não existe mas um objetivo – mudanças, reformas sociais –, o que existe é somente a ambição do poder. Lula já fala em reeleição. Depois de dois anos seu Governo ainda nem começou, e talvez por isso ele fale em renovação do mandato. Tanto não começou que FHC tem insistentemente elogiado a continuidade de sua obra política e econômica. Editoriais das grandes redes de comunicação (os latifundiários do pedaço) elogiam o rumo econômico adotado. Latifundiários da terra dizem o mesmo.
A sede de poder
O grupo político dominante no Planalto articula, negocia, faz barganhas, acordos, com o objetivo único de se sustentar no poder. Esta classe de luta é vergonhosa para a história porque representa um retrocesso político e uma deseducação para a política. O que está se ensinando é: todos os partidos são iguais, todos os políticos são iguais, todos os governos são iguais; não existe luta de classes, não existem inimigos na luta política, tudo é negociável.
O Partido dos Trabalhadores, que hoje está (está?) no Governo, sempre tratou a radiodifusão comunitária com um profundo desprezo. Por medo ou burrice, valorizou a comunicação praticada pela grande mídia, a da burguesia. Enquanto isso, uns poucos parlamentares e militantes sustentaram a luta das rádios comunitárias em caráter quase pessoal. Entre estes, alguns, infelizmente, em nome da boa relação política, abriram as portas para reconhecidos oportunistas, por serem petistas e portarem crachás de dirigentes de entidades. Em várias ocasiões dirigentes e certos parlamentares petistas foram informados da atuação anti-ética de companheiro de partido no movimento das rádios comunitárias e nada fez. Omitiu-se. Falou mais alto o corporativismo. Abriram as portas para os inconfiáveis porque tinham crachás poderosos, o que lhes garantia a imunidade de dirigente. Corroborados pelo modo petista de lidar com lideranças, muitos oportunistas avançaram, e ocuparam importantes espaços políticos.
Tudo isso representou um extraordinário retrocesso para o movimento. Falsos líderes e oportunistas, ocupando espaços com o apoio do PT, fizeram com que as bases perdessem as referências ideológicas e éticas. Ficou cada um por si.
Ainda bem que apesar deste mau exemplo algumas emissoras comunitárias e entidades regionais foram longe, bem mais longe que entidades e líderes. Aprenderam, por conta própria. E agora ensinam o que é fazer política e fazer rádio comunitária.
O PT já foi vanguarda no Congresso Nacional na questão das rádios comunitárias. O partido, graças a alguns militantes e parlamentares, foi referência nacional. No entanto, devido ao absoluto desprezo da direção nacional ao tema, ao comportamento repressivo do atual Governo, e ao corporativismo partidário, perdeu o rumo. E veio o caos. E o caos chegou às bases.
Perdeu-se a distinção de quem são os aliados e quem são os inimigos das rádios comunitárias. Como entrar numa briga se a gente não sabe quem está do nosso lado e quem quer nos devorar? Um ministro das Comunicações (ex-PDT, hoje PPS) se apresentou como amigo das rádios comunitárias mas depois se viu que ele não era nada disso. Era pelo contrário.
Sem uma referência política, alimentada pela cultura histórica do paternalismo burguês e sob o comando de falsos líderes, boa parte do movimento transformou a disputa política numa briga com a burocracia. Equivocadamente o objetivo do movimento se resumiu a exigir maior rapidez no funcionamento do cartório-Brasília, o Ministério das Comunicações. O importante era ter a autorização oficial. A questão política maior e escancarada ficou em segundo plano: que a autorização oficial significa botar a rádio para funcionar num galinheiro, conforme determina a legislação em vigor: freqüência fora do dial, limitações de publicidade, impedimento a formação de redes, sem a segurança do Estado às interferências das comerciais, alcance limitado,... Não se cobrou do Estado com a devida firmeza um novo marco regulatório capaz de atender à coletividade, corrigindo a legislação existente. Não se cobrou o fim da repressão - na prática, significa a exclusão pela força do acesso à comunicação de milhares de brasileiros.
A substituição no movimento das rádios comunitárias da luta política por uma luta burocrática, cartorial, foi uma vitória da burguesia. Para as elites, para o latifúndio da comunicação, natural inimigo da democracia na comunicação e, por extensão, da comunicação comunitária, é bom que o movimento reivindique apenas um melhor funcionamento do cartório. É melhor ainda para as elites que este foco de luta não tenha fim, porque continuará atraindo as atenções e as energias do movimento. Também é bom para a burguesia – como foi feito em 2003 – que o ministro das Comunicações (Miro Teixeira) constitua um Grupo de Trabalho com a missão de estudar meios de agilizar os processos travados no seu cartório. Este GT era tão “democrático” que para discutir rádios comunitárias o Ministro botou lá dentro um representante do latifúndio. E o movimento aceitou. As propostas do GT foram pro lixo. No final de 2004 o Governo montou um novo GT.
Mas onde está o Estado?
A partir de 1995 o Governo Fernando Henrique Cardoso deu continuidade à implantação do projeto neoliberal iniciado por Collor de Melo. Sob o argumento falacioso de que o Estado é ineficiente, caro e não pode se intrometer no setor produtivo, nem gerar ou produzir bens, reduziu seu poder ao de um limitado administrador de interesses. Até mesmo seu papel regulamentador de mercado foi quase totalmente extinto. O Estado foi tornado um assessor do mercado, uma instituição que tem por objetivo facilitar as ações do mercado. Num Estado assim, como bem observa Noam Chomsky, quem manda são as empresas. O Estado existe para servir aos interesses das empresas. Por isso quando os Estados Unidos resolveram taxar a entrada do aço “brasileiro” o presidente da República, Lula, correu para defender as “siderúrgicas nacionais”. As tais “siderúrgicas nacionais”, que já foram estatais no passado, hoje pertencem a poderosos conglomerados e cartéis transnacionais.
Em outro patamar, quando a Globo Cabo, de uma família de latifundiários da comunicação, anunciaram uma dívida superior a R$ 5 bilhões, imediatamente José Dirceu, ministro da Casa Civil no Governo Lula, disse que a dívida da Globo era “uma questão de Estado”. Quando, em julho de 2004, a Vale do Rio Doce, privatizada por FHC por ser eficiente e dominar reservas minerais estratégicas, inaugurou uma nova mina de cobre para explorar, o presidente Lula foi lá e festejou com eles. Esquece que isto tudo era nosso e nos foi tomado. A senzala dança na Casa Grande.
A ousadia de Fernando Henrique foi fazer do Brasil um Estado neoliberal aparentemente indestrutível (pelo menos é o que dizem os ideólogos do Governo Lula). Para criar esta aura de destino sem volta dois grandes aparatos se destacam: 1) o poder do FMI, que no Governo FHC decidia até sobre a compra de papel higiênico; 2) a criação das agências reguladoras.
FHC criou agências para todos os setores estratégicos: saúde, petróleo, energia, telecomunicações, transportes,... Foi uma imposição do FMI para retirar do Estado o poder de regulamentar e fiscalizar o mercado. São institutos públicos transgênicos: para todos os efeitos a agência é uma instituição pública, mas sendo autônoma e constituída por uma direção “democrática”, atua como um órgão a parte, capaz de estabelecer direta ou indiretamente políticas para o setor. Na verdade, a burguesia conseguiu com a agência ter um aparato de Estado (pago e sustentado pelo Estado), fora do Estado e a serviço do mercado. As agências servem tão bem ao mercado que seus maiores defensores são os empresários. Cada vez que se fala em mudança de dirigentes ou de sua estrutura, editoriais inflamados e reportagens em grandes dimensões aparecem nos veículos da grande mídia defendendo a sua atual constituição. E o Governo Lula aceita.
A Agência Nacional de Telecomunicações, Anatel, é uma das mais eficientes no papel de servir ao mercado. As empresas de telefonia são reconhecidamente um desastre para o país, campeãs de denúncias nos procons, com a oferta de serviços de má qualidade, mau atendimento, e abuso nas tarifas. No entanto, a Anatel, a quem caberia exigir mais dessas empresas, não cobra o mínimo de qualidade. Por outro lado, a Anatel se tornou o braço mais eficiente dos latifundiários da comunicação na repressão àqueles que exigem seu direito à comunicação. Em 2004, em plena maturidade do Governo Lula, foram fechadas mais de 4 mil emissoras de baixa potência.
No afã de servir ao mercado, a Anatel já ousou passar por cima de leis maiores. Em 1997, uma decisão do Supremo Tribunal Federal proibiu a Anatel de apreender equipamentos de emissoras “clandestinas”, como determinava a Lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações). Pois bem, a Anatel não obedeceu. Só depois que foi feita uma “reclamação” ao Supremo ela parou com tais ações. Mas aí, não podendo legalmente apreender, resolveu que podia “lacrar”. E criou uma Resolução interna neste sentido. Todo mundo sabe que “apreender” ou “lacrar” dá no mesmo – é tornar um bem indisponível. Ou seja, ela continuou fazendo o que fazia antes.
A Anatel tinha que agir, tinha que cumprir as ordens da burguesia, que exigia a apreensão dos equipamentos. Então passou a trabalhar em conjunto com a Polícia Federal que “tem” poderes para fazer a apreensão em caso de flagrante e por ser crime federal. Baseada em que lei? Em alguns locais a Polícia Federal usa a Lei 4.117/62, artigo 70 (cadeia para quem opera emissoras sem autorização), embora essa lei não fale em rádios comunitárias; em outras regiões, a Lei 9.472/97 (a LGT), artigo 183 (que também é cadeia) mesmo que essa lei seja para telecomunicações e não para radiodifusão. Em alguns locais a PF chega a usar o Código de Processo Penal para fechar rádios e levar preso quem as opera! Não importa a legitimidade da lei e sua aplicação, o que importa é impedir o povo de se manifestar.
Como não faltam recursos à Anatel (afinal se pensou nisto ao criá-la), é a agência quem paga diárias de agentes da Polícia Federal, fornece automóveis/combustíveis, nas suas ações de repressão. São blitz de escandaloso aparato: os agentes da PF vão extraordinariamente armados de metralhadoras e escopetas para prender os “piratas” – a maioria gente pobre, tratada como traficante, bandido perigoso. Embora seja considerado crime federal (por eles) a operação clandestina de emissoras, não é só a PF que fecha rádio comunitária,. Hoje a PM e até Polícia Civil se acha no direito de reprimir o pobre. No Governo Lula, mais um pouco e até guarda noturno vai querer fechar rádio comunitária. Em pobre, preto e prostituta, todo mundo quer bater.
Na luta de classes, a classe dominante cria leis que legitimam seus atos e suas intenções, e, ao mesmo tempo, solidifica o aparato repressor para evitar as reações. Por isso nem todo legalista é um tirano, mas todo tirano é um legalista. Toda repressão precisa ser legalista – não faltarão leis e normas para justificar uma decisão política. Sim, porque apesar do Estado querer ocultar isso, as ações de repressão às rádios comunitárias, é fruto de uma decisão política, vem de um poder, a classe dominante, que determinou ao Estado o acionamento dos seus instrumentos para coibir a organização popular. Se a classe dos trabalhadores estivesse contemplada pelo Estado, ou no Estado, a repressão seria contida, no mínimo, com a formulação de medidas políticas emergenciais enquanto se faria uma reformulação da legislação vigente, impedindo a continuidade de um processo histórico de marginalização das massas.
Pelo contrário, está bem claro que o Governo atual fez uma aliança com a burguesia, com o que existe de mais atrasado em política nacional. Uma aliança sem pudor que envergonha todos os que acreditaram nele, em especial a classe operária. É vergonhoso que a repressão de hoje às emissoras de baixa potência seja maior do que nos tempos da ditadura; que esta repressão se baseie numa lei criada pelos militares (o artigo 70 da Lei 4.177), ou no fundamentalismo neoliberal de FHC (Lei 9.472); que o comando dela esteja com um aparato criado pelo neoliberalismo para atender aos seus interesses, a Anatel.
Quem organiza a luta?
É da essência do capital manter sob controle as classes dominadas. As estratégias são pontuais ou globais, mas é parte das regras mínimas de sobrevivência do capital. O capitalismo não existe sem exploração, por isso o explorado não pode saber que é explorado. Quando se trata de uma questão perigosa como esta (o surgimento das rádios comunitárias), os latifundiários da comunicação se organizam e agem para coibir sua proliferação. Por exemplo, desencadeiam na imprensa uma onda de reportagens satanizando os movimentos populares; cobram do Estado mais repressão; tenta-se a cooptação do movimento.
Como esta é uma luta histórica, o lado deles, a burguesia, já sabe muito bem o que fazer. Por isso, quando o povo pede uma regulamentação para as rádios comunitárias, primeiro a classe dominante diz não. Depois, pressionada, faz uma legislação ilusória, que, na prática, inviabiliza as RCs. Mais tarde, quando a população diz que não tem mais canais aonde instalar suas rádios comunitárias – porque o dial foi reservado para os ricos -, o Estado fornece canais fora do dial. Hoje estão disponibilizados oficialmente três canais de operação das rádios comunitárias, 87,5-87,7-87,9 MHz. Todos fora da faixa de freqüências de FM, que vai de 88 a 108Mhz. Dois deles foram estabelecidos pelo Governo Lula.
Querer engolir as rádios comunitárias é da natureza dos latifundiários da comunicação. Eles jamais admitiriam que as camadas mais pobres, os explorados, tivessem meios de comunicação. Não bastou criar uma legislação ruim para as rádios comunitárias ou mesmo botar as TVs comunitárias nos canais por assinatura (longe do povo), é preciso impedir pedagogicamente os rebeldes, botando a polícia para prendê-los quando ousarem criar quilombos de comunicação, as chamadas “clandestinas”. Também é preciso cooptar os indecisos, oferecendo “gratuitamente” seus produtos (ideologicamente nocivos a este povo). A burguesia sabe que, pior do que um povo organizado e que pensa, é a manifestação desse pensamento.
No entanto, chegar ao seu veículo de comunicação deve ser um dos objetivos do explorado. A outra banda da luta é saber que existe uma classe que luta contra ela, contra os seus direitos, entre os quais o direito à comunicação. E saber também que a burguesia usará de todos os meios possíveis – da violência física à sedução - para impedir que os pobres saibam disso e possam, então, exigir os seus direitos. Alguém já disse, ganha a guerra quem tiver mais informações, e quem souber estabelecer uma estratégia identificando a dimensão da sua força, dos seus aliados, e dos seus inimigos. Este é o grande desafio do movimento das rádios comunitárias hoje.
* Dioclécio Luz é jornalista, escritor, assessor parlamentar, membro da diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF.
Texto original postado em : http://alainet.org/active/7407&lang=es
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