Por Celso Fernandes Campilongo
A Vila Itororó, patrimônio de São Paulo, tem inegáveis atributos artísticos, culturais, históricos e paisagísticos. As casas formam conjunto digno de tutela e valorização.
De outro lado, também é certo que a destinação da Vila Itororó sempre foi residencial. Mais de 70 famílias moram lá. Algumas ocupam o espaço há mais de 30 anos. Têm direitos adquiridos. Acreditam nisso. A partir dessa situação de fato, algumas perguntas poderiam ser levantadas.O que vale mais: o patrimônio artístico-cultural ou o direito à moradia?
A defesa de um desses valores excluiria o outro? Seria possível equilibrá-los de forma harmoniosa? Por trás dessas perguntas estão dilemas caros ao debate jurídico contemporâneo e angústias de moradores e juízes. Enfim, problemas teóricos e práticos de afirmação de direitos. As dificuldades de eficácia do direito na vila são retrato dos desafios da ordem jurídica no Brasil.
Na verdade, os problemas legais da Vila Itororó se traduzem em duas ações judiciais: desapropriação, decorrente do decreto de utilidade pública do conjunto, e pedido de usucapião especial para garantir a permanência dos moradores nos imóveis.
O usucapião não tem decisão. O processo de desapropriação, ao contrário, trouxe péssima notícia aos moradores: foi concedida liminar de imissão na posse. Além disso, pedido de reconsideração dessa decisão foi indeferido. Em resumo, os direitos dos moradores da vila estão ameaçadíssimos. A decisão equivale a despejá-los.A Prefeitura de São Paulo pretende construir um centro cultural no local. Os moradores estão desesperados com a proximidade do despejo e, pior, não têm garantias de habitações.
A atividade do intérprete, nessas situações, é sempre árdua e complexa. Que princípios preservar? Surgem, inevitavelmente, paradoxos decorrentes da ponderação de valores e fins distintos ("justiça" x "eficiência"; "patrimônio artístico-cultural" x "moradia"; "público" x "privado"), mas também paradoxos constitutivos e inerentes aos próprios valores e fins prestigiados. O que fazer?
Defender o patrimônio cultural da vila e, ao mesmo tempo, ofender a identidade e memória daqueles que dela cuidam?
Valorizar bens materiais com a exclusão das formas de expressão, modos de viver e demais criações e tradições dos moradores?
Ou, no plano do direito à moradia, prestigiá-lo e, ao mesmo tempo, facilitar a especulação imobiliária?
Garantir a moradia para alguns ao custo da exclusão de outros?
Os apelos à solução justa e ao resgate da ética, nas condições do mundo atual, apresentam-se como nobres e, infelizmente, na generalidade dos casos, estéreis. Como fundamentar decisões em princípios tão inconsistentes?
Quais seriam as "razões últimas" das decisões? Os precedentes, a Constituição e as leis? A prevenção contra erros? Todos esses fatores catalisam a tomada de decisão. São informações repetidas que credenciam o direito a produzir informações novas.
No caso, produzir decisões consistentes e adequadas. A Vila Itororó mostra que uma concepção integrada de justiça não pode depender de decisões isoladas. Porém, estão mais do que maduras as estruturas e repetições que permitem evitar os equívocos de se valorizar o patrimônio cultural contra o direito à moradia ou de fazer o oposto. Os dois objetivos são perfeitamente compatíveis, tanto do ponto de vista lógico quanto da perspectiva jurídica.Um dos grandes problemas do centro de São Paulo é justamente não possuir moradores.
Fica deserto após o horário comercial. A ideia do centro cultural amplia o erro. Um dos grandes problemas do País é o déficit de oito milhões de moradias. Qual a contribuição da proposta da Prefeitura para a questão? Nenhuma. Por que não combinar as soluções?
Basta, simplesmente, defender o patrimônio cultural, reconstruir e equipar a Vila Itororó, como deve ser feito, e, também, oferecer condições de habitabilidade ao conjunto urbano. Cultura e moradia não são valores antagônicos. É a vida urbana que fornece combustível para o mundo da cultura. O direito não pode ficar alheio e insensível a isso.
Um grupo de estudantes de Direito da Universidade de São Paulo (USP) - na trilha das tradições que convém reafirmar nas proximidades do 11 de agosto - luta para afirmar os direitos em jogo na Vila Itororó.
Procuram, com os moradores, "something to believe in", como diriam Stuart Scheingold e Austin Sarat, especialistas norte-americanos na advocacia de causas sociais, em livro com o mesmo título. Seria ótimo, para o País, se muitos outros, especialmente nos Três Poderes, também tivessem algo em que acreditar: na força do direito.Despejados de suas residências, dificilmente os moradores terão ânimo para pleitear direito à moradia ou indenizações justas. No texto de Kafka sobre o camponês diante das portas da lei, a timidez do postulante faz com que as portas antes abertas se fechem sem que o interessado sequer tente passar pelo espaço que lhe estava reservado.
A lei ao alcance do povo se transforma em surpreendente obstáculo à justiça. Na vila ocorre o inverso: os moradores batem forte, mas respeitosamente, nas portas da lei. Querem entrar em suas próprias casas e gozar de seus direitos. Mas são as portas da lei que permanecem fechadas diante de quem crê no clamor das batidas. Kafkiano.
Mais kafkiano do que qualquer guardião das portas da lei imaginária. A municipalidade e a magistratura ofereceriam contribuição à cidadania e ao respeito aos direitos se olhassem o patrimônio cultural e o direito à moradia digna como elementos complementares.
A Vila Itororó reclama afirmação dos direitos. O despejo dos moradores representa sua negação. Aquelas casas pedem que as pessoas entrem.
Pelas portas da lei!
Celso Fernandes Campilongo é professor das Faculdades de Direito da USP e da PUC-SP
Texto original publicado em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090812/not_imp417304,0.php
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