sexta-feira, 7 de agosto de 2009

As transformações do capitalismo e o papel dos sindicatos na defesa dos trabalhadores e nas lutas pela sobrevivência da humanidade.

Entrevista com Ricardo Antunes
Por Sandra Pereira – do Rio de Janeiro (RJ)


Só nega a existência da classe trabalhadora quem nunca colocou os pés numa fábrica.
A opinião é de Ricardo Antunes, sociólogo e professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e autor de importantes livros como O Caracol e sua Concha, Os Sentidos do Trabalho e Adeus ao Trabalho?
Crítico mordaz dos que acreditam no fim da centralidade do trabalho, ele defende a necessidade de se ampliar a categoria trabalho e entendê-la a partir de uma nova morfologia.
Nessa entrevista à revista Poli, Antunes trata das transformações do capitalismo, explica conceitos novos e discute o papel dos sindicatos na defesa dos trabalhadores e nas lutas mais amplas pela sobrevivência da humanidade.
Além disso, analisa o papel da educação nas diferentes fases capitalistas e defende um projeto de escola que, baseado nas ideias de Gramsci, seja voltado para a liberdade.

S P - O que muda na categoria do trabalho com o aumento do setor de serviços e da esfera não produtiva no capitalismo contemporâneo?

Ricardo Antunes – Vários elementos estão mudando ao longo das últimas décadas. No setor de serviços, há uma mudança decisiva. Entre as décadas de 1950 e 1970, nos países capitalistas centrais, e depois, nas décadas de 1980 e 1990, nos países do Sul, os setores de serviços eram predominantemente controlados pelo Estado.
Com o monumental processo de privatização desses setores, eles passaram a entrar na economia mercantil, na economia capitalista e, consequentemente, no processo de acumulação.Isso fez, por exemplo, com que o antigo trabalhador de uma empresa pública, vinculada a um setor produtivo estatal, se tornasse um trabalhador de uma empresa privada inserida no setor produtivo privado. O trabalho com algum traço mais cognitivo, mais intelectualizado – o que Marx chamou de um trabalho não diretamente material ou imaterial – passou a fazer parte da escala de produção e geração de valor, quer inserindo-se com outros trabalhos de perfil mais material, quer através da expansão da mercadorização desse próprio trabalho imaterial.
Hoje, um trabalho publicitário como o desenho da logomarca de uma empresa não pode ser desconectado da vasta cadeia produtiva material que se desenvolve a partir dessa logo.
É um trabalho do setor considerado antes improdutivo que se torna produtivo.
A categoria trabalho tornou-se mais abrangente.
Um outro ponto importante é que não se pode mais falar rigidamente em setor industrial, de serviços e agrícola, pois, na medida em que houve um monumental processo de privatização, esses setores se imbricaram.
Por exemplo: indústria de serviços, serviços industriais, agroindústria.Ou seja, há uma interpenetração maior desses serviços na era da financeirização da economia, como busquei mostrar nos meus livros Os Sentido do Trabalho e O Caracol e sua Concha.
Marx já havia nos mostrado que o professor, por exemplo, se vendesse o seu trabalho para uma empresa capitalista, tornava-se trabalhador produtivo.Quais as consequências da ampliação do trabalho imaterial?
A primeira consequência é que o capital transforma tudo em mercadoria. O conhecimento dos trabalhadores passa a agregar valor também. No taylorismo, por exemplo, havia um certo desprezo pela dimensão intelectual do trabalho.

"Taylor dizia que o trabalhador deveria ser um ‘gorila’ amestrado: viril e forte, mas dócil".

A gerência científica elaborava e os trabalhadores executavam. Já o toyotismo diz claramente que o trabalhador dispõe, no chão da fábrica, de um conhecimento da produção que a gerência científica não tem. Por isso, nasceram os ciclos de controle de qualidade, de debates etc.: esses conhecimentos são selecionados pelos gestores e implementados quando podem se transformar em mais lucro.
Eu sou inteiramente contra os autores que dizem que o mundo de hoje é o do trabalho imaterial. Isso porque, de certo modo, hoje quase tudo acaba tendo, no fim do processo de trabalho, uma materialidade. Mas não podemos ter uma visão grotesca de que o trabalhador se resume ao trabalho operário industrial, que ainda existe e é importante. O operário de uma empresa do ramo de petróleo, antes, operava quase dentro da caldeira.
Hoje, ele opera de um computador e só vai à caldeira quando necessário. O operário é o mesmo, só que, muitas vezes, se parece com o trabalhador ao lado dele, um engenheiro que também opera equipamentos informatizados. Por outro lado, o capitalismo criou, no extremo oposto, um enorme contingente de trabalhadores mais empobrecidos e proletarizados.

S P - Qual a diferença entre classe operária e classeque- vive-do-trabalho?

Ricardo Antunes: A diferença não é conceitual. A classe operária hoje é mais ampla.
Marx qualificava a classe operária no século 19 como aquele trabalhador que vende a sua força de trabalho para sobreviver. Na época do Marx, a classe operária tinha majoritariamente a presença no mundo industrial. Só que isso foi em 1850.
Hoje a morfologia do trabalho é um mosaico mais variado: há o trabalhador industrial; o do hipermercado; o do telemar-keting. Esse desenho mostra que, além do proletariado industrial, temos um novo proletariado de serviços que depende do seu trabalho para viver, isso sem falar nos trabalhadores informais ou nos que têm vários trabalhos parciais.
Foi para tentar compreender esse desenho que eu usei a expressão classe-que-vive-do- trabalho. A ideia é mostrar que o capitalismo não é mais o mesmo e, portanto, a classe trabalhadora também não é a mesma.
O André Gorz, em seu livro Adeus ao proletariado, do qual respeitosamente discordei, dizia que estamos vivendo a emergência da não-classe dos-não-trabalhadores. Criei a expressão ‘classe-que-vive-do-trabalho’ para me contrapor a Gorz.
Ao contrário de vários críticos, eu não nego a existência da classe operária. Se alguém colocar os pés na General Motors, na Fiat ou em locais semelhantes vai ver trabalhadores fabricando carros. Não nos moldes do início do século 20, claro.

S P - A crise atual do capitalismo vem sendo considerada uma crise do neoliberalismo. Pode ser um recuo na precarização e flexibilização do trabalho?

Ricardo Antunes - A crise é muito mais do que uma crise do neoliberalismo.
Qualquer tentativa keynesiana está fadada, em médio prazo, ao fracasso, porque fracassou no século 20 em duas enormes experiências.
O Estado intervencionista fracassou no keynesianismo tradicional dos anos de 1930 aos anos de 1970, no apogeu do Welfare State.
Mais do que isso: a intervenção do Estado para controlar o capital fracassou na União Soviética, que foi mais do que keynesiana porque nasceu de uma revolução socialista e fortaleceu o Estado para controlar o capital. No início dos anos de 1990, vimos o sistema de capital soviético destruir o Estado soviético.
A crise atual é, como tem dito Istvan Mészáros, sistêmica e global do sistema de capital e se manifesta em três ou quatro pontos.
Primeiro, na monumental destruição da força humana de trabalho em escala global, de tal modo que o trabalho precário e informal tornou-se muito grande.
Segundo, é uma crise sistêmica e global porque o nível de destruição ambiental a que chegamos nos coloca no horizonte com a possibilidade do fim da vida humana.
Terceiro: no século 20, o capital se desenvolvia por ciclos de crescimento e recessão.
Mészáros diz que, desde a década de 1970, vivemos uma crise depressiva e defende que não voltaremos mais para a fase de expansão nem para as fases cíclicas, mas, ao contrário, viveremos um longo ciclo recessivo, mesmo que o epicentro da crise mude. Ou seja, primeiro ela acabou com os países do Sul, depois arrebentou os do Leste Europeu. Agora, o epicentro está nos Estados Unidos, na Europa e no Japão – os gigantes do Norte –, que se apequenaram, não sabem o que fazer.
Imaginar que será pelo impacto estatístico, salvando bancos privados, que vamos sair de uma crise sistêmica e estrutural é tapar o sol com um arco furado. Por isso, acredito que, em certo sentido, estamos, no início do século 21, parecidos com o início do século 20: usando uma frase mais ou menos conhecida, “tudo que é sólido parece se liquefazer”.
Isso não é uma crise do neoliberalismo: a humanidade precisa recriar um novo modo de produção e um novo modo de vida.

S P - Há autores que defendem que o capital está em crise terminal porque, com o desemprego estrutural, não pode fazer o que o mantém: explorar o trabalho. Mas essa tese aposta no fim da centralidade do trabalho. O que o senhor acha disso?

Ricardo Antunes - Eu discordo totalmente. Por exemplo, o Toni Negri faz um culto equivocado do trabalho imaterial. E, com isso, chega à conclusão da não mais relevância da teoria do valor. É uma tese eurocêntrica, que não consegue apreender a processualidade complexa geradora do valor.
Esses autores têm uma certa influência habermasiana segundo a qual não estamos mais na fase propriamente capitalista, mas numa era comunicacional dominante, o que ele chama de ‘mundo da vida’, em que o trabalho não tem mais relevância central. Acontece que o mundo da vida é um prolongamento do mundo do sistema e, nesse mundo, o trabalho ainda tem presença, quer pelos trabalhadores empregados, quer pelos precarizados, quer pelo bolsão monumental de desempregados que repõem a importância do trabalho como gerador de valor e como espaço de sociabilidade. Ou seja, o capital não sobrevive sem alguma forma de trabalho e o trabalho autônomo e omnilateral só pode florescer sem os constrangimentos do capital.

S P - Como se articulam a esfera dos interesses específicos corporativos e a luta anticapitalista no movimento sindical?

Ricardo Antunes - No final do século 19, os sindicatos eram praticamente sindicatos de ofícios. O século 20 viu nascer as fábricas tayloristas e fordistas, que eram um prolongamento da grande indústria do século 19, e também os sindicatos de massa, que são verticais, porque a indústria era verticalizada.
Dos anos de 1970 para cá, houve uma certa horizontalização da produção. Os sindicatos verticais e burocratizados não dão conta mais dessa horizontalização da esfera produtiva em rede. Hoje, em várias partes do mundo, até 50% da classe trabalhadora encontram-se na informalidade e os sindicatos não conseguem organizá-la.
Um outro dado interessante foi a feminização do trabalho ocorrido nos últimos 30 anos, fazendo com que, em alguns países, as mulheres cheguem a ser 70% da força de trabalho. E os sindicatos são, em geral, muito machistas.
Um terceiro problema é a questão geracional: há empresas que só contratam trabalhadores jovens, sem experiência sindical.Enfim, é preciso reinventar um sindicato de classe que seja compatível com o século 21. Eu me lembro dos sindicatos dos metalúrgicos do ABC que fizeram um acordo com uma grande montadora que previa que os estáveis não seriam demitidos mas não preservava os empregos dos terceirizados.
O líder sindical disse: “Conseguimos uma vitória. Não vai haver demissão dos trabalhadores”. Um jornalista perguntou: “E os terceirizados?” A mesma liderança respondeu: “Eles já são terceirizados mesmo”.
Há ainda o problema dos trabalhadores imigrantes, que não são incluídos pelos sindicatos nos países para onde migraram. Portanto, temos que reinventar um sindicalismo de classe que fuja da linha negocial, burocrática e institucional fracassada do século 20. Não pode ser um sindicalismo de vanguarda – que acredita que fará a revolução e as massas vão segui-lo –, mas também não pode ser um sindicalismo burocrático. Precisamos fazer, simultaneamente, luta reivindicatória, social e política.
Os sindicatos e os movimentos sociais têm como desafios descortinar as questões essenciais para a humanidade. Para mim, são duas: o trabalho e a questão ambiental.
Outro ponto: não há mais uma hierarquia. Para a esquerda do século 20, o primeiro organismo mais importante era o partido, o segundo era o sindicato e o terceiro, os movimentos sociais. Para mim, o mais importante é compreender as questões vitais que tocam na raiz.
Por isso o órgão mais importante de luta dos trabalhadores nos anos de 1980 foi a CUT.

S P - Qual foi o mais importante desde a década de 1990?

Ricardo Antunes - O MST. Com todas as dificuldades que tem, o movimento tocou numa questão vital: a posse coletiva da terra, o trabalho coletivo, a vida a partir da terra para a produção e reprodução das suas necessidades básicas. E isso colocou em movimento milhões de pessoas. Por isso o MST se tornou, talvez, o movimento mais importante do mundo.
Não adianta ficar na questão abstrata. A nova morfologia do trabalho também nos obriga a pensar outra morfologia dos movimentos sociais. Não estou dizendo que os partidos e os sindicatos perderam a importância, mas eles estão ainda bastante enferrujados.

S P - Como fica a educação nesse contexto?

Ricardo Antunes - O século 20, sob a égide do taylorismo e do fordismo, viu nascer uma educação parcelada, fragmentária, restritiva, que especializava o trabalhador – até porque as ciências eram especializadas. De 1970 para cá, com a empresa flexível e a desespecialização multifuncional, nasceu, sob a impulsão do capital, a escola flexível. Quanto menos curso, melhor; quanto mais flexível, melhor – porque a indústria e a empresa flexíveis precisam de um trabalhador flexível. Então, em vez de termos um engenheiro com uma formação sólida em Engenharia Civil, faz-se um curso rápido de Engenharia em geral, depois ele faz um outro curso. Em três anos ele é um engenheiro flexível.
Ambas são formas trágicas de conceber a educação. A primeira, especializada e fragmentada. A outra, flexível, desumanizada e mercadorizada.Gramsci tem um texto genial sobre o tema. Diz ele: “os trabalhadores precisam de uma escola desinteressada, que dê à criança a possibilidade de adquirir aqueles critérios gerais que servem para o desenvolvimento do caráter. Em suma, uma escola humanista, como entendiam os antigos e, mais recentemente, os homens do Renascimento.
Uma escola que não hipoteque o futuro do menino e constranja a sua vontade, sua inteligência, sua consciência e informação a moverse num sentido cujo objetivo seja pré-fixado. Uma escola de liberdade e de livre iniciativa. Não uma escola de escravidão e de orientação mecânica. Também os filhos dos proletários devem possuir diante de si as possibilidades de realizar sua própria individualidade da melhor forma e, por isso, do modo mais produtivo para eles e para a coletividade.
A escola profissional não deve transformar-se numa incubadora de pequenos monstros aridamente idos para um ofício sem ideias gerais, sem alma, mas apenas com o olho infalível e a mão firme. Também através da cultura profissional é possível fazer brotar do menino um homem, desde que a cultura seja educativa e não só informativa, ou não só prática e manual”. É isso.
Uma escola politécnica não pode ser uma composição de manuais que ensinam técnicos polivalentes. Não pode ser jamais um prolongamento do mercado destrutivo, porque este, cada vez mais, desumaniza a humanidade.

(Revista Poli – saúde, educação e trabalho, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz – www.epsjv.fiocruz.br).
Ricardo Antunes é professor de Sociologia do Trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
É autor dos livros O Caracol e sua Concha – ensaios sobre a nova morfologia do trabalho, Os Sentidos do Trabalho, Adeus ao Trabalho?, entre outros.
Texto Original emcontra-se em: http://www4.fct.unesp.br/ceget/

Nenhum comentário:

Postar um comentário