terça-feira, 13 de julho de 2010

A contribuição das favelas para uma política urbana

A contribuição das favelas para uma política urbana


Por IHU OnLine
Muitas cidades esqueceram princípios fundamentais, onde o grupo social, a família e o núcleo comunitário têm papel importante na estruturação social e econômica

A quinta edição do Fórum Urbano Mundial, realizada no Rio de Janeiro, um dos principais assuntos a ser discutido é a questão das favelas. Um dos debatedores que abordou o tema foi Eduardo Moreno, pesquisador da UN-HABITAT. Ele, que vive no Quênia, concedeu a entrevista a seguir à IHU On-Line, por telefone, onde falou sobre as causas da incidência de favelas no mundo, as novas ideias que surgem nesses espaços urbanos e também sobre a teoria da ‘cidade compacta’.

“O conceito de cidades compactas tem a ver com a utilização do transporte público, que, sem dúvida, é a solução para as grandes cidades. Também tem a ver com uma redução de espaços de realidade motorizada fazendo com que os espaços públicos tenham mais relevância e dêem soluções mais verticais de alta densidade. Tudo isso vai fazer com que a cidade, sendo mais compacta, tenha melhores possibilidades de gerar vantagens econômicas e tecnológicas em termos de economia de aglomeração”, explicou.

Confira a entrevista:

Quais as causas enraizadas na incidência de favelas no mundo, hoje?

Diria que existem muitas causas. Elas podem ter origem macroeconômica, vinculadas a questões estruturais, e que tem a ver com uma distribuição muito desigual da renda, do acesso à educação e com os negócios. Isso tem a ver, também, com uma distribuição muito desigual de decisões políticas e de utilização dos recursos. Recentemente, as Nações Unidas fizeram um estudo que perguntou a um certo número de pessoas em dez cidades da América Latina, dez da África e dez da Ásia quem se beneficia de cada decisão que tenha a ver com questões de reformas e políticas urbanas. A resposta nos três continentes, nas trinta cidades, foram muito similares. Cerca de 65% dos peritos dizem que as reformas e oportunidades de utilização de recursos sempre beneficiam primeiro os ricos, que são todos aqueles que representam oliquarquias históricas das cidades; e, segundo, os burocratas, aqueles que tomam decisões importantes.

Os ricos e as favelas

As favelas existem porque o modelo de desenvolvimento econômico gera muitos benefícios para os mais ricos. Isso também tem a ver com o desenvolvimento tecnológico, com a cultura e a democracia. Mas é um modelo que, ao mesmo tempo, deixa grandes setores marginalizados neste processo. É um processo que tem um ponto de vista de justiça, de ética, de moral e não resolveram ainda uma questão fundamental: como fazer para integrar esses grupos de uma forma que não seja periférica?

É preciso resolver estruturalmente a questão ou seja, é preciso pensar numa maior planificação urbana que não corresponda só aos interesses da cidade, mas também a interesses muito particulares. Faz três anos que visitamos 120 cidades de países em desenvolvimento e perguntamos qual o problema principal das pessoas que vivem nas favelas. Isso porque queriamos encontrar uma maneira de tentar resolver o problema dos favelados. Para isso, nossa intenção era montar programas sérios de longo prazo.

A resposta foi que não temos os meios econômicos, técnicos, e recursos humanos para solucionar essa questão de uma forma séria em 80% dos casos que se apresentaram. Esta combinação de coisas faz com que hoje, no mundo, a cada 100 milhões de habitantes de países em desenvolvimento que moram em cidades, 40% vivem em favelas.

Alguns ambientalistas defendem as cidades compactas. O senhor poderia nos explicar o que é isso?

As cidades compactas têm a ver com um problema que começou nos anos 1950, sobretudo nos países da América do Norte, como os Estados Unidos. É o crescimento das zonas periféricas com programas para diminuir a densidade. Hoje, quando vinculamos o desenvolvimento das cidades com o desenvolvimento econômico, percebemos esses espaços urbanos consomem muita energia e geram muito gás carbônico. São cidades que acrescentam, ao custo do transporte, o custo de solo urbano, o uso da energia, e fazem com que a cidade fique, do ponto de vista social, muito segregada. Nessas zonas residenciais de baixa densidade, opera-se um sistema de divisão do espaço urbano.

O conceito de cidades compactas tem a ver com a utilização do transporte público, que, sem dúvida, é a solução para as grandes cidades. Também tem a ver com uma redução de espaços de realidade motorizada fazendo com que os espaços públicos tenham mais relevância e dêem soluções mais verticais de alta densidade. Tudo isso vai fazer com que a cidade, sendo mais compacta, tenha melhores possibilidades de gerar vantagens econômicas e tecnológicas em termos de economia de aglomeração. Este tipo de cidade são lugares onde se governa melhor e onde existem custos mais reduzidos.

As favelas podem ser consideradas cidades compactas? Ou é possível organizar a cidade de uma outra forma em que as favelas não existam mais?

A minha posição, que acredito ser a posição das Nações Unidas, é de que as favelas não são e não deveriam ser uma condição de desenvolvimento econômico. Normalmente, tentam fazer crer que para o desenvolvimento dos países pobres é preciso manter uma certa percentagem de habitantes morando em favelas como parte do processo econômico do país. Não concordo com essa visão, não só de um ponto de vista ideológico, mas de um ponto de vista político e, sobretudo, baseado em dados e informações de que existem cidades e países que podem crescer economicamente e que não precisam gerar um número tão grande de favelas.

Favelas de esperança

Existem as favelas de esperança e as favelas de desenvolvimento e também as favelas de pouca esperança. Uma favela de esperança é aquela que consegue organizar suas relações econômicas e sociais, mas, sobretudo, a localização desta favela na cidade traz maiores possibilidades de desenvolvimento. Isso vai fazer com que ela, em curto prazo, possa se desenvolver no solo urbano e em relação aos serviços que possui e tamém vai fazer com que existam agentes econômicos e sociais que possam trazer benefícios para estas favelas. Estes espaços só são considerados favelas porque falta um indicador, segundo as Nações Unidas, que pode ser a falta de água ou de saneamento básico ou aquelas em que os habitantes estejam vivendo em espaços muitos reduzidos ou as condições habitacionais não são adequadas do ponto de vista de estrutura da moradia. Porém, essas favelas só têm um desses problemas, ou eventualmente, dois.

Favelas de pouca esperança
Uma favela de pouca esperança é aquela que concentra os quatro indicadores negativos e, além disso, encontra-se em um lugar muito apertado da cidade. Os habitantes que moram nesta favela, por razão da distância, do custo e do tempo, têm o mercado de trabalho muito restringido. O capital social que eles têm, em geral, é muito limitado em termos de oportunidades. Quase não existe geração de empregos, o capital social pode ficar como aspecto negativo, e a favela, ao invés de aparecer como um projeto econômico e social de desenvolvimento, em médio e curto prazo, vai aparecer como uma zona vermelha.

As favelas, sem dúvida, podem gerar aspectos positivos. Existe, para isso, uma série de princípios fundamentais que as autoridades locais, avaliando juntamente com os governos centrais, poderiam fazer com que essa favela pudesse virar um espaço compacto da cidade. Os habitantes das favelas poderiam se beneficiar dos aspectos que o desenvolvimento pode trazer. Temos que lembrar que as cidades são espaços fundamentais de oportunidades, de desenvolvimento, de inovação e criatividade, e, na medida que as cidades estejam abertas para que o máximo número de habitantes, todos podem se beneficiar de todas essas vantagens. As favelas, em um curto prazo, podem fazer parte da cidade compacta.

Que novas ideias urbanas estão surgindo nas favelas?

São muitas. Existem muitas teorias que dizem que o desenvolvimento das favelas tem a ver com o trabalho dos próprios habitantes, com os esforços comunitários e com o desenvolvimento endógeno. Esses três ingredientes, que certamente são positivos, não são suficientes para considerar que uma favela pode ser um espaço de inovação e oportunidade por ela mesma. Tenho impressão de que alguns sociológos e trabalhadores comunitários, com ideologia de esquerda, já quiseram apresentar a ideia de que as favelas progridem somente por um trabalho interno dos próprios habitantes e dos grupos comunitários.
Os estudos que temos feito, e falo de dez anos de estudo em diferentes partes do mundo, mostram que todos esses elementos são positivos. O que é preciso é uma política urbana com vontade de resolver problemas, com uma visão estratégica e uma liderança política, e que articule todas essas inovações sociais com inovações institucionais e programáticas. Não só para integrar as ideias dos favelados, mas para trazer recursos de fora nesta favela, trazer tecnologia. Assim, a favela viraria rapidamente um espaço de desenvolvimento social e econômico da cidade.

Mas em lugar de só focalizar-se na questão dos grupos comunitários, a verdadeira lição paradigmática de desenvolvimento seria a integração de atores sociais e até as prefeituras e os vereadores, e fatalmente diferentes grupos sociais organizados e que moram na cidade.


Qual é a contribuição da favela para a organização da cidade e para uma política mais urbana?

As contribuições são muitas, em várias dimensões. Uma, muito importante, é que, hoje, muitas das cidades do mundo esqueceram de certos princípios sociais e filosóficos fundamentais como solidariedade e identidade, onde o grupo social, a família e o núcleo comunitário têm um papel muito importante na tomada de decisões e também na estruturação social e econômica das cidades. As favelas, portanto, como espaço de alta concentração social e com uma integração muito forte desses elementos, sem dúvida, poderia contribuir para o desenvolvimento geral da cidade.
Em segundo lugar, muitas favelas têm estruturas políticas internas, que, em uma perspectiva de desenvolvimento democrático, poderiam conformar o núcleo para reestruturar politicamente a cidade. A participação cidadã poderia, através dessas organizações de favelados, dar muitas lições importantes para uma visão diferente do que seria a reestruturação política da cidade. Em terceiro lugar, muitas das cidades do mundo não tem estudos neste sentido, apenas algumas informações isoladas. Estudos que foram feitos na Índia, em Bangladesh e na África, mostram que se você fala de Produto Interno Bruto da cidade, o crescimento seria a riqueza que a cidade pode gerar em produção de redes de serviços.

Visão negativa

Existe uma visão muito negativa das favelas no mundo, como espaço de criminalidade, de realização de certas atividades informais, que algumas pessoas vinculam à questão clandestina. Mas, na verdade, a favela é um espaço fundamental para a economia da cidade. Tem a ver com os trabalhos, com uma articulação orgânica muito interessante entre trabalhos formais e informais, e serve como um espaço que pode se expandir ou se contrair, onde a economia pode absorver mão-de-obra desempregada ou empregada em setores de baixa produtividade, que evitam conflitos sociais. As favelas também são espaços de uma perspectiva econômica e social que permite ser uma alternativa de habitação aos habitantes pobres. Não gostaria de pensar quais seriam as respostas de violência social que a falta de espaços e alternativas habitacionais poderiam gerar.


A partir da sua experiência, quais são as principais diferenças e peculiaridades entre as favelas do Brasil e da África?

Eu diria que na África existem dois grandes conglomerados. Um é a África do Norte, onde se encontram países como Egito, Tunísia e Marrocos, e o outro é a África do Sul. As diferenças são fundamentais e muito grandes. Agora, no Fórum Urbano Mundial, irei publicar um livro sobre São Paulo, que se chama Uma cidade com duas histórias. Quando fizemos uma análise das favelas de São Paulo, nos demos conta dos indicadores urbanos na zona de favelados, como serviços básicos, acesso à saúde e à educação. Uma coisa muito surpreendente é que as diferenças são relativamente pequenas comparadas com a zona compacta da cidade, em certos indicadores, como acesso à água e saneamento. Em uma favela de São Paulo, entre 80% e 90% dos favelados tem acesso à água. Em uma favela da África, esse acesso será a 40%. O acesso a saneamento em uma favela de São Paulo ou do Rio de Janeiro pode ser de até 85%. Nas favelas africanas, esse acesso não chega a 45%.

Se considerarmos indicadores sociais mais reveladores, como a mortalidade infantil, e compararmos entre uma favela de São Paulo e o resto da cidade de São Paulo, as diferenças nunca serão de mais de 30%. Nos países africanos essa a diferença pode ser de duas ou três vezes maior. Diria que a diferença não só tem a ver com indicadores, mas com a presença do Estado. Nas favelas brasileiras, de uma forma ou de outra, a presença do Estado é visível em escolas e alguns outros projetos sociais. Em muitas das favelas africanas, a característica principal é a invisibilidade e falta de presença do Estado nestas zonas onde os habitantes quase sempre resolvem os problemas por eles mesmos.


E quais são as principais semelhanças entre as favelas do Brasil e da África?

É difícil generalizar, pois existem casos expeccionais, mas, em termos gerais, as favelas se encontram, fisicamente falando, em zonas suscetíveis a cheias, onde existe a possibilidade de movimentos no solo, que vão trazer problemas para os habitantes. A igualdade está numa certa vulnerabilidade social. Ao encontrarmos uma favela na África ou no Brasil, o comum seria o risco de uma catástrofe natural e a possibilidade de os favelados serem mais vítimas desse problema.

Existe outra característica muito similar: O espaço físico dos ricos e das classes médias representam espaços mínimos nas favelas em termos de densidade, comparados com o resto dos habitantes da cidade. Isto, sem dúvida, aplica-se tanto na África como no Brasil. Existe uma alta concentração e problemas de acessos nas favela e problemas de capacidades de resposta para catástrofes.
Existe também uma certa igualdade entre muitas favelas do Brasil e da África e que fazem parte do programa de desenvolvimento econômico e social da cidade. A integração das favelas, numa perspectiva de longo prazo, quase sempre passa por programas específicos, mas não como no resto da cidade, com programa onde se vê uma articulação clara de orçamentos e de questões públicas para desenvolver, de forma integral, a cidadania. O problema é que muitos desses programas são pontuais e tentam reproduzir um modelo que não traz uma solução integral do problema.

Eduardo Lopez-Moreno Romero é mexicano e trabalha no Global Urban Observatory da Agencia Habitat da ONU (UN-HABITAT), em Nairobi, no Quênia. É doutor em geografia urbana pela Universidade de Paris III
Fonte: http://www.domtotal.com

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