sábado, 26 de junho de 2010

Oito anos depois: anotações para uma avaliação do Governo Lula


Escrito por Valério Arcary
Não se pode exigir de uma vítima que escolha entre o carrasco que quer empurrá-la do décimo andar e o carrasco que quer empurrá-la do quinto.

Sabedoria popular brasileira
As discussões de balanço do Governo Lula têm se restringido a uma avaliação comparativa com os oito anos de Fernando Henrique Cardoso. Este critério corresponde aos interesses eleitorais do PT e seus aliados e está, politicamente, envenenado. É insatisfatório para aferir quem foi beneficiado e quem foi prejudicado durante os últimos oito anos. O governo Lula não foi um governo para todos, porque essa utopia não é possível. Um governo não pode ser comparado somente aos que o precederam, porque as circunstâncias mudam e, portanto, devem ser avaliados em perspectiva histórica. Os governos devem ser julgados pelos seus atos e as consequências de suas iniciativas.
Entre outros, o tema da evolução da desigualdade social no Brasil tem provocado uma polêmica importante e, por enquanto, ainda confusa, obscurecida pelas pressões da luta político-eleitoral de 2010. Os defensores do governo Lula têm argumentado que estaríamos diante de um processo intenso de maior mobilidade social. Tentam demonstrar esta conclusão, por exemplo, pelo aumento de consumo de bens duráveis e semiduráveis. Esta posição corresponde ao senso comum sobre o tema.
Conclusões apressadas, em problemas tão controversos, são sempre inadequadas. O aumento do consumo não é suficiente para demonstrar que teria ocorrido diminuição da desigualdade social. O Brasil é o oitavo país com maior desigualdade social do mundo [1]. Processos semelhantes de aumento de consumo com mudanças na dieta doméstica e maior acesso a produtos da linha branca de eletro-eletrônicos, aliás, já aconteceram no passado, por exemplo, durante o chamado milagre brasileiro do início dos anos setenta, ou durante a vigência inicial do plano cruzado, em 1986. O primeiro incentivado pelo crescimento econômico, e o segundo pelo endividamento das famílias.
Tampouco são apropriados para concluir algo sobre a mobilidade social. Os economistas e sociólogos consideram duas taxas de mobilidade social, a absoluta e a relativa. A taxa absoluta compara a ocupação do pai e a do filho, e a primeira atividade de cada um com o último emprego de cada um. A taxa de mobilidade relativa indica o nível de desigualdade de acesso a estas posições. No Brasil, a taxa absoluta foi alta até 1980, mas a relativa foi desde sempre baixa, quase estacionária, herança de uma sociedade erguida sobre o escravismo. Resumindo: em uma ou duas gerações muitos milhões de brasileiros, filhos de pais que atuavam na agricultura, encontraram empregos na indústria e nos serviços e, portanto, ascenderam socialmente. A hereditariedade de ocupações deixou de ser um padrão, como era no Brasil pré-industrial, quando os filhos dos agricultores se preparavam para serem agricultores e os filhos dos sapateiros para serem sapateiros. Em outras palavras, conhecemos uma intensa mobilidade social devido à urbanização, mas isso não fez do Brasil um país menos injusto, somente, menos pobre. O que explica esse processo é que as trajetórias de mobilidade social beneficiaram milhões de pessoas, mas muito poucos ascenderam de forma significativa. As pessoas subiram na hierarquia socioeconômica, mas subiram, em geral, para o degrau imediatamente superior ao que seus pais ocupavam [2].
Paradoxalmente, os defensores do governo têm admitido, também, com franqueza admirável, porém, estarrecedora, que os ricos nunca ganharam tanto dinheiro como nos últimos oito anos, no que estão certos. Os informes do Banco Central sobre o volume de recursos do orçamento poupados para garantir o superávit primário, ano após ano, são incontroversos: todos os recordes históricos, incluindo os do governo FHC, foram batidos e quase R$1 trilhão de reais foram garantidos para os rentistas da dívida pública. A reivindicação simultânea dos dois indicadores – elevação do consumo das classes populares e, no mesmo período, aumento das transferências do Estado para os detentores da dívida interna – pode parecer intrigante, mas não é. É somente insustentável como demonstração da redução da desigualdade social [3]. Que o tema da desigualdade social permaneça obscuro, não deve servir para absolver argumentos indefensáveis. A desigualdade social aumentou mais aceleradamente durante o governo Fernando Henrique Cardoso que no atual, mas a tendência histórica de redução da desigualdade salarial entre os assalariados é muito anterior a 1994. O processo teve a sua origem nos anos oitenta.
É verdade que o Brasil passou por transformações nos últimos anos. Algumas mudanças foram progressivas: como a diminuição para metade dos brasileiros que estavam em estado de indigência, ou o aumento de jovens matriculados no ensino médio, ou a redução do desemprego. Outras muito regressivas: como a desnacionalização da economia, ou a consolidação da privatização do ensino superior pelo ProUni. A redução do desemprego, por exemplo, incluindo o emprego com carteira assinada, esteve associada ao crescimento econômico, mas só pode ser valorizada, plenamente, se considerarmos outras duas variáveis: primeiro, a manutenção de taxas de juros entre as cinco maiores do mundo, entre outros fatores, foi um freio importante da recuperação, mesmo em condições de ampliação da demanda mundial – PIB mundial se expandiu, entre 2003 e 2008 a 4,2% ao ano- e o comércio mundial a uma taxa anual de 7,2%. Em segundo lugar, o saldo de carteiras assinadas durante o governo Lula só foi positivo para empregos de até dois salários mínimos. Para empregos com carteira com salários acima de dois salários mínimos o saldo foi negativo [4].
Resumindo, é precipitado, no mínimo, discernir ainda quais são entre as mudanças as mais conjunturais e as mais estruturais. A redução da taxa de fertilidade feminina (de 5 filhos por mulher em 1980, para menos de 2 em 2008) ou aumento da expectativa de vida (atingindo 71 anos em 2008), parecem consolidadas [5]. Outras, como a redução do trabalho informal sobre o conjunto da população economicamente ativa, não. O aumento do consumo de bens duráveis repousou em dois processos conjunturais: a redução do desemprego, entre 2004 e 2008, e o aumento do acesso ao crédito, sobretudo, no segundo mandato de Lula. Os dois são circunstanciais, isto é, podem ser revertidos rapidamente em nova situação. Não são indicadores apropriados para sustentar que teria sido reduzida a desigualdade social [6].
Por outro lado, o argumento verdadeiro de que as defasagens salariais entre os que vivem do trabalho diminuíram é insuficiente para provar a tese da maior mobilidade. Só permite concluir que as diferenças entre os que vivem dos rendimentos do trabalho são menores. É simplesmente obtuso tentar demonstrar que o Brasil ficou menos injusto, enquanto todos os indicadores macro-econômicos informam que os ricos ficaram mais ricos. Um proletariado mais homogêneo, porém, mais explorado e, sobretudo, mais endividado, em um país em que se reduziu a parcela da população exposta à extrema vulnerabilidade da pobreza extrema é uma descrição mais próxima da realidade.

Decadência nacional
O argumento deste artigo é que a mobilidade social está, infelizmente, mais lenta que no passado, e não mais rápida. Na verdade, muito mais lenta. No intervalo histórico entre 1950 e 1980 a mobilidade social do capitalismo brasileiro foi muito mais alta do que nos últimos trinta anos, porque o país se beneficiou das “vantagens do atraso”. O Brasil da primeira metade do século XX era, anacronicamente, arcaico, mesmo em comparação com os vizinhos do Cone Sul. A passagem tardia de uma economia, essencialmente, agrário-exportadora para uma sociedade com mais de vinte milhões de consumidores de bens duráveis no mercado interno foi acelerada. O capitalismo brasileiro realizou a industrialização muito tarde, se comparado com países como a Argentina.
Não obstante, o fez muito rápido, em pouco mais de cinco décadas, e muito concentradamente entre 1950/80. Mesmo nesses anos de intenso crescimento econômico nossas taxas de mobilidade social relativa foram quase insignificantes. A mudança histórica é que perdemos as vantagens de uma taxa de mobilidade absoluta elevada, e agravou-se a rigidez social, porque a taxa de mobilidade relativa é regressiva. A mobilidade social absoluta para os trabalhadores, e a relativa para os setores médios nas décadas anteriores foram essenciais para que a queda da ditadura militar – que exigiu uma mobilização popular nunca vista na história política do país – fosse abrandada, através de eleição de Tancredo Neves e José Sarney no colégio eleitoral em 1985. A expectativa de que poderia se abrir nova etapa de mobilidade social no regime de democracia-liberal explica a relativa estabilidade política dos últimos vinte e cinco anos. Mas, os prazos históricos estão ficando mais curtos.
O processo de crescimento econômico entre os anos cinquenta e oitenta criou oportunidades de ascensão social geradas pela industrialização e expansão do setor de serviços. O Brasil não se tornou menos desigual nesse período (o crescimento das favelas foi um dos traços desse processo), mas a espantosa miséria material e atraso cultural diminuíram: aumentou o consumo de proteína na alimentação popular, reduziu-se o analfabetismo, cresceu a expectativa de vida, ou seja, elevou-se a acessibilidade à escola e saúde públicas. Desde 1980, o capitalismo brasileiro perdeu o impulso. A renda per capita parou de crescer. Não por acaso, a intensidade da luta de classes aumentou na fase final da ditadura militar, porque o regime estava, politicamente, isolado e, economicamente, encurralado.
Enquanto duplicava a população de 50 para 100 milhões, entre 1950/80, o Brasil triplicava o PIB, ou seja, a renda per capita aumentou acima de 50%. Em contraste, no final da primeira década do século XXI encerramos trinta anos de estagnação. Passamos a ser uma sociedade de baixo crescimento, que acompanha com dificuldade a expansão demográfica. Quando o Brasil não andou para trás, andou para o lado [7].
Hipóteses variadas de interpretação para este fenômeno regressivo já foram formuladas. Três grandes campos de interpretação estão na disputa ideológica. Simplificando, os liberais discordam entre si sobre quase tudo, mas estão de acordo em atribuir a lentidão quase catatônica da economia brasileira aos custos excessivos de um Estado demasiado caro, corrupto e inoperante. Atribuem a superinflação dos anos oitenta à ausência de um ajuste fiscal de corte de gastos. Denunciam a expansão dos gastos sociais nos últimos vinte e cinco anos de democracia eleitoral, com políticas públicas como o direito à aposentadoria de milhões de pessoas que contribuíram para o INSS, reivindicando mais investimentos em infraestrutura. Defendem que menos gastos sociais seriam compensados por um crescimento mais acelerado que traria compensações, no futuro, superiores aos benefícios imediatos das políticas sociais.
Os semikeynesianos estatistas se dividem, também, em várias correntes, mas explicam esta estagnação quase vegetativa pela desastrosa conjunção de três fatores. Resumindo: (a) as pressões sociais internas, ou seja, a intensa luta de classes dos anos oitenta por uma melhor distribuição da riqueza nacional; (b) as pressões internacionais pelo pagamento da dívida externa; (c) a abertura comercial do governo Collor que destruiu o papel regulador do Estado e favoreceu desnacionalização e privatizações excessivas.
Os marxistas insistiram na idéia de que o destino do Brasil não pode ser compreendido sem uma análise da dinâmica do capitalismo mundial e das relações dos países centrais com os periféricos. O Brasil estagnou, enquanto a economia dos EUA teve dois minibooms: um entre 1981/1987, com a expansão dos anos Reagan, e outro entre 1992/2000, durante os anos Clinton. O crescimento das décadas anteriores tinha sido articulado pelos investimentos estrangeiros, pelo papel do Estado que construiu uma imensa infra-estrutura e pelo aumento da poupança interna. A decadência nacional dos últimos trinta anos, em um país com o dinamismo do Brasil, um país de jovens, aconteceu porque, sintetizando: (a) o Estado foi saqueado pelos rentistas que parasitaram a dívida pública; (b) a desnacionalização não foi suficiente para trazer investimentos estrangeiros produtivos, e agravou a crise nacional porque favoreceu uma recolonização da América Latina e, nesse marco, também, do Brasil, embora em proporções menores que na Argentina, Chile e Uruguay; (c) a burguesia brasileira não esteve disposta a imobilizar capitais na produção, em função das lutas de classes intensas dos anos oitenta e, também, porque duvida da potencialidade do mercado interno, mantendo uma parte de seus recursos fora do Brasil.

Baixos salários e escolaridade média
A escolaridade média é o somatório da escolaridade (considerando a última série concluída com aprovação) das pessoas de uma determinada idade, dividido pelo número total de pessoas na referida idade. Um dos fatores que deve ser considerado para compreender esta dificuldade de melhorar de vida tem sido a desvalorização salarial para os brasileiros de escolaridade mais alta, em especial, aqueles com educação média e superior completa. A dificuldade dos filhos terem uma vida melhor do que a dos seus pais, embora com escolaridade mais elevada do que a geração anterior, ou seja, empregos com salários recompensadores, é um fenômeno novo e até desconcertante [8].
Na sua raiz devem ser procurados, evidentemente, muitos fatores. A estagnação do salário médio nacional em torno de R$1.200,00 é uma das expressões deste processo: ele só voltou a ter o mesmo valor, feita a atualização monetária, de meados de 2002, no segundo semestre de 2008. Existem, portanto, boas razões para considerar que os baixos salários são inibidores da elevação da escolaridade média. Estímulos materiais, como a expectativa de salários mais altos, foram sempre um fator imprescindível para oferecer recompensas às famílias que se esforçavam por garantir a continuidade de estudos de seus filhos. Na sua ausência, a evolução da escolaridade permaneceu lenta [9].
A mobilidade social maior ou menor obedece a processos estruturais complexos. Problemas complexos têm múltiplas determinações. Muitas variáveis, não somente o aumento nas vendas de automóveis, devem ser consideradas. A medida de uma maior desigualdade social só pode ser aferida quando considerados indicadores como: a concentração maior ou menor das propriedades; a concentração de capital; a participação dos salários na distribuição da renda nacional com o capital; a evolução da taxa de desemprego; o salário médio; a taxa média de inflação; o acesso à escolaridade; à compra da casa própria etc.
A taxa de mobilidade social absoluta no Brasil foi alta durante a urbanização, mas a taxa relativa sempre foi, essencialmente, estacionária. De qualquer maneira, quando os filhos conseguiam elevar a sua escolaridade acima da de seus pais conseguiam uma pequena ascensão. O fenômeno se agravou, porque perdemos as vantagens do atraso que permitiram uma taxa de mobilidade absoluta elevada – mais de 83% da população vive em cidades, e temos doze cidades com 1 milhão ou mais de pessoas –, porém, não conseguimos elevar a taxa de mobilidade social relativa. Filhos de pais ocupados no trabalho manual urbano, ou de pais em empregos de procedimentos de rotina na área de serviços, continuam tendo obstáculos muito maiores de conseguir trabalho em funções que exigem escolaridade média de nível superior, do que os filhos de pais que já conquistaram esses empregos.
O mais importante é que o modelo de análise seja, historicamente, bem fundamentado, ou seja, estabeleça a comparação de bananas com bananas, e não com maçãs. Não se pode avaliar aquilo que não é comparável. Existem co-relações que não causalidades. Indicadores como a variação dos níveis da atividade econômica, da taxa de desemprego, do salário médio, e suas co-relações com a aquisição da casa própria, por exemplo, são alguns dos dados chaves para poder estabelecer uma percepção em perspectiva histórica. E depois deve se discernir o peso específico mais intenso de algumas causas sobre outras. Entre outros indicadores, o aumento da escolaridade parece ter deixado de ser uma variável qualitativa para o aumento salarial, confirmando que a dinâmica do capitalismo brasileiro continua regressiva. A decadência nacional iniciada com a estagnação dos anos oitenta não foi interrompida.

Duas tendências opostas no mercado salarial
Parece interessante destacar, em primeiro lugar, que os dados do IBGE indicam que a tendência histórica de uma diminuição da participação do trabalho na riqueza nacional, que se iniciou na virada dos anos setenta para os anos oitenta, quando a moeda brasileira mergulhou em processo de super-inflação, não foi invertida. Os salários respondiam por mais da metade da riqueza nacional na década de setenta e, no intervalo dos últimos trinta anos, caíram para pouco mais de 40%. Esta variável é uma das mais significativas para uma avaliação da evolução da desigualdade social por várias razões. Primeiro, porque o Brasil de 2010 é uma sociedade que já completou a transição histórica do mundo rural para o mundo urbano (83% da população vive em cidades), e a maioria dos que trabalham recebem salários. É verdade que ainda existem milhões de brasileiros que vivem do trabalho e não são assalariados, mas são menos numerosos e, proporcionalmente, menos significativos do que há trinta anos atrás. Segundo, porque reduzir a desigualdade social foi, historicamente, muito mais difícil do que erradicar a miséria. O Brasil permanece sendo um país atrasado e injusto, embora seja muito menos pobre do que há meio século atrás.
Mas, por outro lado, parecem convincentes os dados que indicam que, dentro do universo dos assalariados, diminuiu a desigualdade social. Este processo ocorreu porque se verificaram duas tendências opostas no mercado de trabalho. Uma delas é, relativamente, nova, porque nos remete aos últimos quinze anos, e a outra é mais antiga. Vem se manifestando desde a década dos oitenta. Nenhuma delas nos deve fazer esquecer que o Brasil permanece um país de salários médios baixos, mesmo se comparado somente com países que têm uma localização semelhante no mercado mundial, o que já é, por si só, uma comparação arbitrária.
A primeira tendência foi uma elevação dos pisos salariais dos setores menos qualificados e menos organizados do proletariado. O salário mínimo veio se elevando acima da desvalorização da moeda brasileira de forma lenta, porém, contínua desde 1994 com a introdução do real. Este fenômeno foi novo, porque nos quinze anos anteriores tinha acontecido o inverso. O salário mínimo é uma variável econômica importante porque ele é o piso da remuneração das aposentadorias do INSS. Sua recuperação teve interações variadas sobre incontáveis outras variáveis econômicas. A elevação do salário mínimo, acima da inflação, de R$ 60 (aproximadamente US$ 100 de 2010), em 1994, para R$ 510 (aproximadamente US$ 270) em 2010, significou um aumento real de pelo menos 150% em dólares, embora um aumento real menor em moeda brasileira, em função de uma taxa inflacionária mais alta no Brasil do que a inflação nos EUA. De qualquer forma, este aumento diminuiu a distância do salário mínimo do salário médio nacional, porque este permaneceu, essencialmente, estagnado, próximo a R$ 1.200 (em valores monetariamente atualizados para 2010), o que contribuiu para diminuir a defasagem salarial interna entre as diferentes regiões, e desestimular a deslocalização geográfica que foi impulsionada pela guerra fiscal entre Estados e municípios.
A recuperação econômica favorecida pelo ciclo mundial de aumento da demanda permitiu, a partir do segundo semestre de 2005 e o primeiro de 2008, uma diminuição do desemprego e pressionou uma elevação do salário médio que conseguiu atingir, em meados de 2008, o valor que tinha antes da desvalorização do real no segundo semestre de 2002. A massificação da distribuição do Bolsa Família parece ter exercido, também, uma pressão sobre a remuneração do trabalho manual, sobretudo, nas regiões menos industrializadas, porque inibe a contratação de trabalhadores informais por valores inferiores ao salário mínimo.
A queda do salário médio dos empregos com escolaridade média mais elevada
A segunda tendência foi a permanência da queda nas remunerações dos trabalhos com exigência de escolaridade média e de escolaridade superior, um processo que vinha desde os anos oitenta. Comparativamente há trinta anos atrás, os salários médios de atividades no setor de serviços que exigem uma escolaridade igual ou maior que oito anos ou ficaram estagnados ou, na maioria dos empregos, caíram. O mesmo fenômeno aconteceu com até maior intensidade nas atividades onde existiu a exigência de escolaridade igual ou superior a quinze anos. Esta tendência histórica não é brasileira. Não é uma “jabuticaba sociológica”. É uma tendência amplamente conhecida, também, em outros países que chegaram tardiamente à urbanização e industrialização, e nos quais existiu intensa escassez de mão de obra com maior escolarização.
Pelo intervalo de uma ou duas gerações, enquanto não se consegue aumentar a oferta de mão de obra com escolaridade média e superior, os salários médios entre as três ou quatro faixas de crescente escolaridade foram muito diferentes. As diferenças superavam, facilmente, a proporção de 1 para 10 no Brasil dos anos setenta. Qualquer função que presumia nível médio tinha, em 1980, salário inicial superior a quatro ou cinco salários mínimos, e no nível superior tinha um salário inicial superior aos dez salários mínimos. A segunda tendência foi, portanto, a reversão dessa excepcionalidade.
Em conclusão: os dados disponíveis parecem indicar que o aumento da escolaridade deixou de ser um fator de mobilidade social tão importante como foi no passado. Nos últimos trinta anos a escolaridade média aumentou pouco mais de três anos. Um ano, por década, o que é muito lento. Temos uma escolaridade média para a população com quinze anos ou mais de idade de pouco mais de sete anos de escola. Todos os indicadores desta primeira década do século XXI parecem mais animadores, porque sugerem que até 45% da juventude com até 19 anos estaria completando o ensino médio. Mas, como partimos de uma base muito baixa, a escolaridade média evolui muito lentamente. Os mais velhos ainda pesam muito, estatisticamente, e tiveram muito pouco acesso à educação. Eis-nos diante do problema: a desvalorização da educação, com taxas elevadíssimas de evasão no ensino médio e superior, pode ser relacionada de forma convincente com a desmotivação de recompensa salarial? É possível estabelecer uma relação entre esta contextualização histórica da evolução salarial e a lentidão da evolução escolaridade? Os dados disponíveis sugerem que sim.

Valerio Arcary, professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e militante do PSTU

NOTAS:
[1] Pior do que o Brasil estão apenas a Guatemala, e os africanos Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia, todos países, incomparavelmente, mais pobres. O coeficiente de Gini é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini, e publicada no documento "Variabilità e mutabilità", em 1912. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda, e as demais nada têm). O índice brasileiro foi de 0,593 em 2003, segundo o relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) em 177 países. De acordo com o documento, no Brasil 46,9% da renda nacional concentram-se nas mãos dos 10% mais ricos. Já os 10% mais pobres ficam com apenas 0,7% da renda. http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112798.shtml Consulta em 20/03/2010

[2] Mobilidade social é uma variável imersa ainda em polêmicas metodológicas sérias. Ela tenta aferir a intensidade maior ou menor do processo de ascensão social em cada período histórico. Existem vários modelos teóricos para aferir a mobilidade social. O primeiro problema é uma correta identificação das classes sociais. Uma opção é a escolha de "grupos de status" ordenados hierarquicamente, de acordo com características de renda e educação. Mobilidade social no Brasil de José Pastore e Nelson do Valle Silva, São Paulo, Macron Books, 2000, por exemplo, abraça esta classificação hierárquica de estamentos. Os autores descrevem a estratificação social a partir somente de duas variáveis, um modelo simples. Essa escolha é, evidentemente, arbitrária. É comum encontrar estudos que subdividem a sociedade em cinco ou seis categorias: (1) baixo-inferior; (2) baixo-superior; (3) médio-inferior; (4) médio-médio; (5) médio-superior e (6) alto. O modelo pode cruzar, também, estes dados com os de gênero, idade e distribuição geográfica, como é comum acontecer com as pesquisas de intenção de voto. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências de Maria Celi Scalon, Rio de Janeiro, Revan, 1999, propõe outra forma de estudar mobilidade social, mais complexa. As classes sociais são apresentadas como: (1) Profissionais; (2) Administradores e gerentes; (3) Proprietários empregadores (urbanos); (4) Não-manual de rotina (em geral pessoal de escritório, vendas e comércio); (5) Proprietários por conta própria (pequenos proprietários sem empregados); (6) Manual qualificado; (7) Manual não-qualificado; (8) Empregadores rurais; (9) Empregados (trabalhadores) rurais. Este tema pode ser pesquisado no site da Revista Brasileira de Ciências Sociais: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092000000300011Consulta em 20/03/2010.

[3] Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no ano de 2009, o Brasil encontrava-se na 75ª colocação mundial. A referência mais utilizada para o tema é o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), uma medida comparativa que engloba três dimensões: riqueza, educação e esperança média de vida. O índice foi desenvolvido em 1990 por economistas como Amartya Sen, um dos inspiradores dos programas de renda mínima, e vem sendo usado desde 1993 pelas Nações Unidas. Para avaliar a dimensão da educação o cálculo do IDH considera dois indicadores. O primeiro, com peso dois, é a taxa de alfabetização de pessoas com 15 anos ou mais de idade. A medição do analfabetismo se dá, tradicionalmente, somente a partir dos 15 anos. O segundo indicador é a taxa de escolarização. O item longevidade é avaliado considerando a esperança de vida ao nascer. A renda é calculada tendo como base o PIB per capita do país. Como existem diferenças entre o custo de vida de um país para o outro, a renda medida pelo IDH é em dólar PPC (Paridade do Poder de Compra), que elimina essas diferenças.

[4] Estes dados foram recolhidos em artigo de Paulo Passarinho, Desigualdade abissal, disponível em:
http://www.socialismo.org.br/portal/economia-e-infra-estrutura/101-artigo/1545-desigualdade-abissal (Consulta em 24?06/2010)

[5] As séries estatísticas do IBGE sobre variações em taxa de fertilidade e expectativa de vida estão disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/

[6] A desigualdade social é uma variável que procura medir a disparidade de condições econômico-sociais. O Radar Social, estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) confirma que 1% dos brasileiros mais ricos (1,9 milhão de pessoas) detém uma renda equivalente a da parcela formada pelos 50% mais pobres (96,5 milhões de pessoas). Não há conclusões consolidadas sobre a redução da desigualdade social, mas há boas razões para ser muito céptico. A Pnad de 2008 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revela que, entre 2001 e 2004, a renda dos 20% mais pobres cresceu cerca de 5% ao ano, enquanto os 20% mais ricos teriam perdido 1%. Mas, nesse mesmo período houve queda de 1% na renda per capita e o Produto Interno Bruto (PIB) não cresceu significativamente. Acontece que a evolução do PIB foi uma variável decisiva na história econômico-social do Brasil. A explicação para a redução das desigualdades estaria, segundo pesquisadores do IBGE, nos programas de distribuição de renda como, por exemplo, a cobertura mais universal da aposentadoria do INSS, e o Bolsa Família. Mas, o tema permanece controverso, porque existe uma subnotificação da renda da riqueza: rendimentos financeiros no Brasil e no exterior, ou aluguéis, por exemplo. A autodeclaração tem margens de erro significativas se os dados não forem cruzados com outras fontes como o IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) e o IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) protegidos pelo sigilo fiscal, e se estes dados não forem conferidos com outros, como a IPMF (Imposto Provisório de Movimentação Financeira), protegidos pelo sigilo bancário. Por outro lado, a queda do salário médio sugere que embora os 20% mais pobres tenham tido uma recuperação de renda, o conjunto dos assalariados teriam tido uma redução da sua participação sobre a riqueza nacional. Conferir em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2008/default.shtm Consulta em 20/03/2010

[7] Esta conclusão é compartilhada por pesquisadores das mais variadas tendências. Márcio Pochmann, economista da Unicamp e atual presidente do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), um dos especialistas brasileiros em desemprego, e insuspeito de julgamentos políticos radicais, tem reafirmado a opinião de que o capitalismo brasileiro perdeu a oportunidade de crescimento nos últimos vinte e cinco anos. Consulta realizada em 19/03/2010 em: http://www.sasp.org.br/index.php/notas/82-entrevista-com-marcio-pochmann.html

[8] A escolaridade média subiu, contudo, permanece muito baixa – 7,3 anos para a população de 15 anos ou mais segundo a PNAD de 2008 – e evolui muito lentamente: aumentou 3 anos nos últimos trinta anos. Na última década do século XX – 1991/2000, a taxa de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais de idade caiu de 20,1% para 13,6%. O Censo de 2010 deve concluir que o analfabetismo continuou diminuindo nos últimos dez anos. O IBGE considera analfabeto funcional a pessoa que estudou menos de quatro anos completos. Este critério é polêmico – outras nações, como os EUA, usam outros critérios, diferenciando o analfabetismo da língua e da matemática -, mas procura identificar aqueles que, embora possam reconhecer os símbolos gráficos da língua, não atribuem sentido à leitura do que lêem. De acordo com essa definição, em 2002 o Brasil apresentava um total de 32,1 milhões de analfabetos funcionais, o que representava 26% da população de 15 anos ou mais de idade. Esses e outros dados podem ser pesquisados em: http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/pesquisas/educacao.html. Consulta em 21/03/2010.

[9] A pesquisa mensal de emprego do IBGE de março de 2009 nas seis maiores regiões metropolitanas revelou que o salário médio da população que se autodeclarou como branca foi de aproximadamente R$ 1.600. O da população que se autodeclarou como parda ou negra foi de R$ 800. A média nacional foi de R$ 1.200. As curvas evolutivas dos salários médios entre 2002/2009 foram muito semelhantes. Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/marco2009.pdf (Consulta em 21/03/2010)
Fonte: http://www.zemariapresidente.org.br

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