Por Valéria Nader e Gabriel Brito
A julgar pela opinião dominante dos maiores veículos de comunicação, que por sua vez tendem a reverberar somente as vozes que não são dissonantes de sua visão massacrante, nós, brasileiros, estamos diante de novo impasse: 'Conservação versus Desenvolvimento'.
Não se trata esta da única 'sinuca de bico' imposta aos leitores por uma mídia maniqueísta, que prefere as velhas dicotomias, a exemplo da macetada 'Estado versus Mercado', a seguir por um caminho de maior reflexão sobre temas polêmicos.
O assunto agora em pauta são as mudanças em discussão no Código Florestal, especialmente no que diz respeito à redefinição das áreas de Reserva Legal e das Áreas de Proteção Permanente (as APPs) e à transferência para os estados do poder de legislar sobre elas, em detrimento da Federação. Uma das opiniões mais divulgadas sobre o assunto vem sendo a do deputado pelo PCdoB Aldo Rebelo. Coincidentemente, uma opinião em absoluta e inegável rota de convergência com os interesses dos ruralistas, poderoso grupo econômico em nossa nação, cujo poder de decisão frente às temáticas agrícolas e ambientais de nosso combalido Congresso tem sido uma evidência há vários anos.
Rebelo vem entoando acalorada argumentação em favor das mudanças no código como única forma de conduzir ao desenvolvimento, ao mesmo tempo em que invoca a existência de uma conspiração internacional contra as mudanças de modo a manter a Amazônia inexplorada e o Brasil atrasado. Uma visão que, na opinião do geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino, peca por sua absoluta improcedência, ao tratar a questão ambiental a partir somente da ótica social - como se a natureza não possuísse uma dinâmica própria, que pode conduzir a inomináveis e incontáveis desastres ambientais a partir de um uso inadequado.
Destes desastres, toda a humanidade dá a sua prova. Confira a entrevista a seguir.
Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre o atual momento de discussão do Código Florestal Brasileiro, com a participação acalorada do deputado Aldo Rebelo, do PCdoB, entoando forte argumentação em favor das mudanças do código como única forma de conduzir ao desenvolvimento, ao mesmo tempo em que invoca a existência de uma conspiração internacional contra as mudanças de modo a manter a Amazônia inexplorada e o Brasil atrasado?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, é preciso afirmar que a proposta de mudança do Código Florestal arrasta-se na Câmara dos Depurados há mais de 10 anos, tendo sido objeto de MP, ainda durante o governo FHC, a ampliação da Área de Preservação Permanente e da Área de Reserva Legal. Essas mudanças derivaram de compromissos que o governo brasileiro assumiu internacionalmente com o objetivo de ampliar os instrumentos de controle do processo de destruição dos ecossistemas do país, derivado, sobretudo, da forma agressiva e destruidora a partir da qual os diferentes agentes econômicos, especialmente os do agronegócio, vêem a natureza como fonte única e exclusiva de acúmulo de suas riquezas.
Em segundo lugar, é preciso dizer que havia sido instalado no Congresso, por ação dos representantes da bancada ruralista, uma espécie de terrorismo ecológico em oposição ao desenvolvimentismo econômico. Como se preservar a natureza, adotando técnicas conservacionistas e preservacionistas, atuasse no sentido contrário ao processo de desenvolvimento econômico e social. Isso quando a adoção de tais técnicas visa garantir para as futuras gerações que comporão a sociedade brasileira e mundial o usufruto pleno das condições ambientais que o planeta oferece hoje, diferentemente da continuidade dos processos de destruição implantados na atualidade no Brasil e que levarão à destruição.
Assim, nossa geração legará um meio ambiente sem possibilidade alguma de desenvolvimento de atividades econômicas, como são exemplos as áreas de arenização trazidas pela expansão da produção da soja no RS, aquilo que vem se chamando de áreas de desertificação no sertão da Bahia, as áreas chamadas pela própria bancada ruralista de pastagens degradadas no Centro-Oeste... São todas derivações desses processos insanos de uso da natureza em sua plenitude, que levarão nosso país a uma situação de caos ambiental no futuro.
É necessário ainda dizer que o deputado Aldo Rebelo anda equivocado no ponto de vista de reforçar a oposição que mencionei, de preservação/conservação contra desenvolvimento econômico. Aliás, não é apenas agora que o ilustre parlamentar se equivoca. No episódio que envolveu a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, também julgou que a demarcação iria contra o desenvolvimento econômico, representado pela presença arbitrária de produtores de arroz dentro da área de povos indígenas de Roraima.
Na realidade, a tese que o deputado desenvolve e defende não tem o mínimo de procedência, pois tende a tratar a questão ambiental com uma ótica exclusivamente social, sendo que a natureza possui processos intrínsecos e dinâmicas próprios, que, a partir do uso inadequado por parte da sociedade humana, desencadeiam um conjunto de desastres ambientais. É o que temos visto ocorrer em diferentes porções do território brasileiro, como SC e RJ, entre outras regiões que têm apresentado as conseqüências dessa ocupação sem o mínimo critério preservacionista e conservacionista.
Correio da Cidadania: Em entrevista concedida a este Correio no final de 2009, o senhor avaliava que a possibilidade de transferir aos estados o poder de legislar sobre o tamanho das reservas legais e áreas de preservação – uma das mudanças mais importantes propostas para o Código Florestal – seria absurda, vez que biomas e ecossistemas não reconhecem limites político-administrativos. Ao mesmo tempo, estaria em curso uma investida dos ruralistas, que contam com forte poder político nas unidades da federação. Pensa que tal medida será validada, pelo Congresso ou pelo presidente?
Ariovaldo Umbelino: Este é outro ato de insanidade e desconhecimento da causa sobre a qual se está legislando. Os fenômenos que envolvem a preservação, a conservação e os diferentes biomas do país não obedecem ao critério administrativo.
É a mesma coisa que legislarmos sobre a propriedade privada da terra colocando-a sob a administração de municípios e estados. Seria um caos completo no país. A propriedade privada da terra, os biomas e os ecossistemas nacionais têm de ser administrados a partir de uma ótica nacional, pois são constituintes de processos e dinâmicas que não respondem a limites territoriais entre os diferentes entes que formam a federação brasileira.
Portanto, trata-se de um desconhecimento. Inclusive, penso que o deputado Aldo Rebelo está deixando de lado tudo aquilo que estudou nos bancos escolares, tudo aquilo que leu enquanto militante do PCdoB, estando agora, a seu livre arbítrio, fazendo análises e julgamentos descabidos, sem nenhum procedimento de caráter científico, que normalmente constitui a forma de abordagem política dos comunistas do mundo inteiro.
Correio da Cidadania: Quanto à diminuição das áreas de reserva legal na Amazônia de 80% para 50% e a intenção de incluir as APPs, as Áreas de Proteção Permanente, na reserva legal, o senhor também salientava que são medidas associadas aos interesses dos grandes proprietários. 380 milhões de hectares de terras no país sem documentação implicam em impossibilidade dos proprietários de cumprimento da legislação da terra, quanto mais da legislação ambiental. Como está essa discussão, acredita que será aprovada essa redução?
Ariovaldo Umbelino: Com relação à necessidade de se estabelecer um controle nas APPs e na demarcação de registro cartorial das Reservas Legais, é preciso dizer o seguinte: toda lei, pelo principio jurídico universal, entra em vigor na data da sua publicação. Isso quer dizer que, ao tratar do passado, ela pode ter posturas que reconhecem o que aconteceu até o ato da lei, ou pode impor, por conta dos passivos gerados por uso descabido do meio ambiente, medidas que vão recompor os biomas afetados.
No caso particular, o que temos é uma situação que eu definiria como estapafúrdia, pois, na realidade, o Estado incumbido, do ponto de vista legal, da fiscalização do Código Florestal ora objeto de discussão e alteração não fez, através de seus órgãos competentes, a devida fiscalização. Isso significa que se instaurou no país o desrespeito à legislação existente. E agora é preciso verificar cautelosamente as diferentes situações durante o processo de reformulação.
Falando de modo estritamente jurídico, todos aqueles que não respeitaram a legislação do código desde sua assinatura na década de 60 não apenas cometeram crimes ambientais, como deveriam ir à justiça responder por eles. O que se está fazendo é uma coisa que do ponto de vista do direito, em minha modesta opinião, é um absurdo total.
Está se repetindo a mesma coisa vista na introdução dos transgênicos. Aqueles que introduziram os transgênicos cometeram vários crimes. No entanto, a legislação veio em seu beneficio e eles foram perdoados pelos crimes cometidos, já que antes os transgênicos eram proibidos por lei e foram introduzidos clandestinamente.
Agora é o mesmo com o Código Florestal. De tanto haver transgressão às leis, a transgressão pode vir a ser 'perdoada', num claro mau exemplo a toda a sociedade, que vai entender o recado: a lei foi feita, mas não para ser cumprida, pois, em outras palavras, o crime compensa.
Correio da Cidadania: Mas acredita que todas estas medidas serão aprovadas ao final?
Ariovaldo Umbelino: Quando analisamos a composição atual do Congresso, acredito que lá se votará e aprovará qualquer tipo de proposta que passe pelo beneplácito do governo atual. Foi o que aconteceu no ano passado com a MP 458 e no ano anterior com a MP 422. Acredito que estamos prestes a ver mais um ato de insanidade, a ser tomado pelo nosso Congresso Nacional. E a postura deveria ser de mais juízo, fazendo-se o debate da questão, mas sem colocá-la em votação, levando a temática para a campanha eleitoral e, para o novo Congresso, a mudança da legislação. Neste caso, sim, com o beneplácito, ou não, da população brasileira que elegerá seus novos representantes.
Correio da Cidadania: Pelas propostas de mudança, haveria alguma possibilidade de benefício ao pequeno agricultor, segundo defendem os ideólogos da mudança?
Ariovaldo Umbelino: No Brasil sempre foi muito comum os pequenos produtores serem usados como bucha de canhão para que os médios e grandes proprietários atingissem seus objetivos. Sempre foi assim. Foi o que ocorreu na MP 458, quando a regularização dos posseiros da Amazônia era a justificativa para a regularização da área dos grileiros.
É bom esclarecer que os pequenos agricultores, a respeito da regularização de suas posses, já tinham uma legislação que lhes garantia a posse do terreno. Agora, com relação ao cumprimento do Código Florestal, é evidente que seria necessário verificar se o processo de destruição das APPs e o não registro da Reserva Legal, por exemplo, foram um ato deliberado desses agricultores durante o período de vigência da lei. Se foi este o caso, esses agricultores não deveriam ficar impunes, podendo-se pensar em atenuantes, períodos maiores que eles teriam para recompor a vegetação nativa das APPs e fazer a demarcação de recomposição da vegetação nativa, inclusive abrindo a possibilidade de obterem acesso ao apoio científico e tecnológico das universidades federais no processo de recomposição. Podemos discutir atenuantes, mas mesmo o setor que de maneira geral vem sendo penalizado na agricultura brasileira não deveria ser livrado da pena por infração ao Código Florestal.
Já os médios e grandes produtores poderiam ter um prazo muito mais restrito para tal recomposição, já que são capitalistas e se vangloriam de a agricultura brasileira ser a mais rentável do planeta. Portanto, devem agora usar esses recursos financeiros e tecnologia, de que se arrogam para ficar no Brasil, para recompor as vegetações urgentemente. E a eles deveriam ser infligidas não só as penas que a lei determina, como também o rigor e o prazo curto para a recomposição das APPs e Reservas Legais.
É evidente que o país e o INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Tecnológica) possuem um vasto arquivo de imagens de satélite, desde a década de 70, que permitiria verificar o momento histórico em que as derrubadas aconteceram. Seria possível saber quem devastou APPs e reservas antes, quando não havia legislação que protegesse essas duas formas de preservação da natureza. É preciso separar o que ocorreu no passado do país, quando não havia lei voltada à conservação da natureza, de tudo o que aconteceu depois da existência da lei.
Nos comentários que leio e entrevistas que vejo de integrantes da bancada ruralista e do próprio Aldo Rebelo, parece que estão confundindo os que praticaram devastação antes da lei com aqueles que o fizeram depois. Estão tentando juntar não criminosos com criminosos, outro absurdo que deveria ser evitado nos debates e ações do Congresso.
Correio da Cidadania: De todo modo, nosso Código Florestal já tem mais de 40 anos. Haveria mudanças ou atualizações pertinentes a serem feitas?
Ariovaldo Umbelino: A alteração da Reserva Legal, por exemplo, foi objeto da MP que deu origem a esse debate no Congresso que até hoje se arrasta. É evidente que nenhuma lei tem efeito retroativo. O que se pode fazer é criar uma série de fatores que permitam recomposição.Cito como exemplo as APPs. Para aqueles que cometeram a imprudência de devastá-la antes da lei, devem ser dados prazos para a recomposição, compatíveis com suas rendas. Para os pequenos, uma determinada medida; para médios e grandes, outra.
Mas para aqueles que destruíram depois da lei, há dois crimes cometidos. Primeiro, a infração da lei. Depois, o perdão do crime se o Congresso aprovar a mudança.
É preciso uma atitude serena no sentido de que o descumprimento da lei só deseduca a população brasileira, o que tem acontecido no país há muito tempo. Nem sempre as pessoas cumprem as leis e ainda por cima são premiadas. Isso cria na sociedade uma visão profundamente equivocada de que a lei não foi feita para ser cumprida, com todas as conseqüências.
No caso da Amazônia brasileira, antes dessa MP objeto de debate, o Código Florestal previa a demarcação de 50% da área como Reserva Legal. Eram 50%, mas, com a alteração por MP, elevou-se para 80%. Inclusive - eu que estudei os processos de colonização e desenvolvimento da Amazônia brasileira nos governos militares posso lembrar -, havia um prazo para fazer as derrubadas e ocupação econômica da área, senão perdia-se direito aos lotes entregues.
É preciso ter cautela, mas já naquela época nenhum desmatamento era feito acima dos coeficientes do Código Florestal, e tal argumento está sendo utilizado para encobrir o desmatamento acima de 50% da Amazônia brasileira.
Todo cuidado é pouco, pois, propositalmente, a bancada ruralista mistura desmatamentos anteriores e posteriores ao código, no sentido de confundir a população e fazer valer esse argumento esdrúxulo de que conservação da natureza se opõe ao desenvolvimento econômico.
Correio da Cidadania: Ainda que eventualmente viéssemos a ter um Código Florestal elogiável em seu texto, em que medida ele esbarraria na grande lacuna da regularização fundiária do país?
Ariovaldo Umbelino: Eu penso que a legislação ambiental brasileira é bastante positiva e coerente com as legislações do mundo inteiro, com uma diferença: não se podem comparar os biomas e ecossistemas das áreas temperadas com os das áreas tropicais, pois estes são muito mais sensíveis, tendo em vista que as ações da natureza, sobretudo do ponto de vista climatológico, são muito mais destruidoras nas faixas tropicais que nas temperadas.
Inclusive uma parte de toda a umidade que o solo recebe deriva dos degelos de neve etc. Aqui não. Aqui, as chuvas em excesso e em falta destroem. Vivemos em uma área do planeta em que é preciso ter muito cuidado com a natureza, sob o risco de legarmos às gerações futuras processos irreversíveis de destruição ambiental.
É preciso ter em mente esses conceitos básicos que formam o conhecimento da humanidade, trazidos pela ciência e pela tecnologia, permitindo que a análise de congressistas no que se refere à legislação esteja amparada por especialistas.
Voltando de forma direta à pergunta, é preciso dizer que a legislação brasileira é de qualidade, e que nosso problema não é fazer uma legislação melhor ainda, o que seria um ato altamente positivo por parte do Congresso. Mas o problema é que o debate instaura uma oposição entre conservar e preservar a natureza e os processos de destruição que o agronegócio tem trazido ao meio ambiente deste país.
O governo atual, em seu segundo mandato, adotou uma postura completamente absurda e tresloucada por conta do apoio incondicional ao agronegócio do país. E estamos agora assistindo ao mesmo que aconteceu com relação às MPs 422 e 458 e com relação aos 67 milhões hectares de terras do INCRA na Amazônia legal que serão transferidos de forma praticamente gratuita aos grileiros.
Correio da Cidadania: Considera, portanto, sofrível a política ambiental do atual governo? Em que medida a sua condução ajudou a que se confluísse para o atual estado de embate em torno do Código Florestal?
Ariovaldo Umbelino: O governo, em seu segundo mandato, não teve planejamento algum, do ponto de vista nacional, para a área. E é evidente que um governo sem plano faz aquilo que sua base parlamentar solicita, pois ele não tem horizonte, não tem rumo. E essa ausência de rumo se dá simultaneamente ao apoio incondicional ao agronegócio e à bancada ruralista.Um dos últimos atos do órgão competente do Ministério do Desenvolvimento Agrário foi definir o preço que os grileiros terão de pagar. E vimos o absurdo que se propôs: que eles paguem R$ 2,99 por hectare. Quando li a notícia até pensei que os dirigentes desse setor do MDA tinham se equivocado. Talvez estivessem pensando naquela forma de comércio de produtos importados sem nenhuma utilidade vendidos a R$ 1,99. Achei que era nisso que eles pensavam quando anunciaram os preços das terras do INCRA na Amazônia legal.
Mas depois vi que era outra coisa! Ou seja, mais uma vez o crime compensa. É melhor cometer o crime, pois depois virá o perdão. E junto do perdão, os preços baixos e insignificantes que o governo impõe ao patrimônio público para que seja repassado a esses criminosos grileiros de terra. A mesma atitude está sendo tomada com o Código Florestal.
A saída da ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente já teve esse componente. É bom lembrar que, depois da sua saída, o desmatamento aumentou e o descumprimento da legislação ambiental continuou. E o que o governo fez foi alterar o decreto que previa o cumprimento do Código Florestal. O governo atual baixou um decreto que adiava as multas que o IBAMA já estava aplicando àqueles que cometeram crimes contra a legislação ambiental.
O governo atual já mostra, com exemplos cabais, desrespeito à legislação existente, o que obviamente abre caminho político para que a alteração da legislação se faça dentro daquilo que deseja a bancada ruralista.
Toda essa composição faz com que, no Brasil, o governo não apenas legisle perdoando os crimes contra as leis, como ainda não apóie a defesa de legislação que proteja a natureza e permita legarmos às gerações futuras um meio ambiente do qual possam se orgulhar de herdar.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Não se trata esta da única 'sinuca de bico' imposta aos leitores por uma mídia maniqueísta, que prefere as velhas dicotomias, a exemplo da macetada 'Estado versus Mercado', a seguir por um caminho de maior reflexão sobre temas polêmicos.
O assunto agora em pauta são as mudanças em discussão no Código Florestal, especialmente no que diz respeito à redefinição das áreas de Reserva Legal e das Áreas de Proteção Permanente (as APPs) e à transferência para os estados do poder de legislar sobre elas, em detrimento da Federação. Uma das opiniões mais divulgadas sobre o assunto vem sendo a do deputado pelo PCdoB Aldo Rebelo. Coincidentemente, uma opinião em absoluta e inegável rota de convergência com os interesses dos ruralistas, poderoso grupo econômico em nossa nação, cujo poder de decisão frente às temáticas agrícolas e ambientais de nosso combalido Congresso tem sido uma evidência há vários anos.
Rebelo vem entoando acalorada argumentação em favor das mudanças no código como única forma de conduzir ao desenvolvimento, ao mesmo tempo em que invoca a existência de uma conspiração internacional contra as mudanças de modo a manter a Amazônia inexplorada e o Brasil atrasado. Uma visão que, na opinião do geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino, peca por sua absoluta improcedência, ao tratar a questão ambiental a partir somente da ótica social - como se a natureza não possuísse uma dinâmica própria, que pode conduzir a inomináveis e incontáveis desastres ambientais a partir de um uso inadequado.
Destes desastres, toda a humanidade dá a sua prova. Confira a entrevista a seguir.
Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre o atual momento de discussão do Código Florestal Brasileiro, com a participação acalorada do deputado Aldo Rebelo, do PCdoB, entoando forte argumentação em favor das mudanças do código como única forma de conduzir ao desenvolvimento, ao mesmo tempo em que invoca a existência de uma conspiração internacional contra as mudanças de modo a manter a Amazônia inexplorada e o Brasil atrasado?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, é preciso afirmar que a proposta de mudança do Código Florestal arrasta-se na Câmara dos Depurados há mais de 10 anos, tendo sido objeto de MP, ainda durante o governo FHC, a ampliação da Área de Preservação Permanente e da Área de Reserva Legal. Essas mudanças derivaram de compromissos que o governo brasileiro assumiu internacionalmente com o objetivo de ampliar os instrumentos de controle do processo de destruição dos ecossistemas do país, derivado, sobretudo, da forma agressiva e destruidora a partir da qual os diferentes agentes econômicos, especialmente os do agronegócio, vêem a natureza como fonte única e exclusiva de acúmulo de suas riquezas.
Em segundo lugar, é preciso dizer que havia sido instalado no Congresso, por ação dos representantes da bancada ruralista, uma espécie de terrorismo ecológico em oposição ao desenvolvimentismo econômico. Como se preservar a natureza, adotando técnicas conservacionistas e preservacionistas, atuasse no sentido contrário ao processo de desenvolvimento econômico e social. Isso quando a adoção de tais técnicas visa garantir para as futuras gerações que comporão a sociedade brasileira e mundial o usufruto pleno das condições ambientais que o planeta oferece hoje, diferentemente da continuidade dos processos de destruição implantados na atualidade no Brasil e que levarão à destruição.
Assim, nossa geração legará um meio ambiente sem possibilidade alguma de desenvolvimento de atividades econômicas, como são exemplos as áreas de arenização trazidas pela expansão da produção da soja no RS, aquilo que vem se chamando de áreas de desertificação no sertão da Bahia, as áreas chamadas pela própria bancada ruralista de pastagens degradadas no Centro-Oeste... São todas derivações desses processos insanos de uso da natureza em sua plenitude, que levarão nosso país a uma situação de caos ambiental no futuro.
É necessário ainda dizer que o deputado Aldo Rebelo anda equivocado no ponto de vista de reforçar a oposição que mencionei, de preservação/conservação contra desenvolvimento econômico. Aliás, não é apenas agora que o ilustre parlamentar se equivoca. No episódio que envolveu a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, também julgou que a demarcação iria contra o desenvolvimento econômico, representado pela presença arbitrária de produtores de arroz dentro da área de povos indígenas de Roraima.
Na realidade, a tese que o deputado desenvolve e defende não tem o mínimo de procedência, pois tende a tratar a questão ambiental com uma ótica exclusivamente social, sendo que a natureza possui processos intrínsecos e dinâmicas próprios, que, a partir do uso inadequado por parte da sociedade humana, desencadeiam um conjunto de desastres ambientais. É o que temos visto ocorrer em diferentes porções do território brasileiro, como SC e RJ, entre outras regiões que têm apresentado as conseqüências dessa ocupação sem o mínimo critério preservacionista e conservacionista.
Correio da Cidadania: Em entrevista concedida a este Correio no final de 2009, o senhor avaliava que a possibilidade de transferir aos estados o poder de legislar sobre o tamanho das reservas legais e áreas de preservação – uma das mudanças mais importantes propostas para o Código Florestal – seria absurda, vez que biomas e ecossistemas não reconhecem limites político-administrativos. Ao mesmo tempo, estaria em curso uma investida dos ruralistas, que contam com forte poder político nas unidades da federação. Pensa que tal medida será validada, pelo Congresso ou pelo presidente?
Ariovaldo Umbelino: Este é outro ato de insanidade e desconhecimento da causa sobre a qual se está legislando. Os fenômenos que envolvem a preservação, a conservação e os diferentes biomas do país não obedecem ao critério administrativo.
É a mesma coisa que legislarmos sobre a propriedade privada da terra colocando-a sob a administração de municípios e estados. Seria um caos completo no país. A propriedade privada da terra, os biomas e os ecossistemas nacionais têm de ser administrados a partir de uma ótica nacional, pois são constituintes de processos e dinâmicas que não respondem a limites territoriais entre os diferentes entes que formam a federação brasileira.
Portanto, trata-se de um desconhecimento. Inclusive, penso que o deputado Aldo Rebelo está deixando de lado tudo aquilo que estudou nos bancos escolares, tudo aquilo que leu enquanto militante do PCdoB, estando agora, a seu livre arbítrio, fazendo análises e julgamentos descabidos, sem nenhum procedimento de caráter científico, que normalmente constitui a forma de abordagem política dos comunistas do mundo inteiro.
Correio da Cidadania: Quanto à diminuição das áreas de reserva legal na Amazônia de 80% para 50% e a intenção de incluir as APPs, as Áreas de Proteção Permanente, na reserva legal, o senhor também salientava que são medidas associadas aos interesses dos grandes proprietários. 380 milhões de hectares de terras no país sem documentação implicam em impossibilidade dos proprietários de cumprimento da legislação da terra, quanto mais da legislação ambiental. Como está essa discussão, acredita que será aprovada essa redução?
Ariovaldo Umbelino: Com relação à necessidade de se estabelecer um controle nas APPs e na demarcação de registro cartorial das Reservas Legais, é preciso dizer o seguinte: toda lei, pelo principio jurídico universal, entra em vigor na data da sua publicação. Isso quer dizer que, ao tratar do passado, ela pode ter posturas que reconhecem o que aconteceu até o ato da lei, ou pode impor, por conta dos passivos gerados por uso descabido do meio ambiente, medidas que vão recompor os biomas afetados.
No caso particular, o que temos é uma situação que eu definiria como estapafúrdia, pois, na realidade, o Estado incumbido, do ponto de vista legal, da fiscalização do Código Florestal ora objeto de discussão e alteração não fez, através de seus órgãos competentes, a devida fiscalização. Isso significa que se instaurou no país o desrespeito à legislação existente. E agora é preciso verificar cautelosamente as diferentes situações durante o processo de reformulação.
Falando de modo estritamente jurídico, todos aqueles que não respeitaram a legislação do código desde sua assinatura na década de 60 não apenas cometeram crimes ambientais, como deveriam ir à justiça responder por eles. O que se está fazendo é uma coisa que do ponto de vista do direito, em minha modesta opinião, é um absurdo total.
Está se repetindo a mesma coisa vista na introdução dos transgênicos. Aqueles que introduziram os transgênicos cometeram vários crimes. No entanto, a legislação veio em seu beneficio e eles foram perdoados pelos crimes cometidos, já que antes os transgênicos eram proibidos por lei e foram introduzidos clandestinamente.
Agora é o mesmo com o Código Florestal. De tanto haver transgressão às leis, a transgressão pode vir a ser 'perdoada', num claro mau exemplo a toda a sociedade, que vai entender o recado: a lei foi feita, mas não para ser cumprida, pois, em outras palavras, o crime compensa.
Correio da Cidadania: Mas acredita que todas estas medidas serão aprovadas ao final?
Ariovaldo Umbelino: Quando analisamos a composição atual do Congresso, acredito que lá se votará e aprovará qualquer tipo de proposta que passe pelo beneplácito do governo atual. Foi o que aconteceu no ano passado com a MP 458 e no ano anterior com a MP 422. Acredito que estamos prestes a ver mais um ato de insanidade, a ser tomado pelo nosso Congresso Nacional. E a postura deveria ser de mais juízo, fazendo-se o debate da questão, mas sem colocá-la em votação, levando a temática para a campanha eleitoral e, para o novo Congresso, a mudança da legislação. Neste caso, sim, com o beneplácito, ou não, da população brasileira que elegerá seus novos representantes.
Correio da Cidadania: Pelas propostas de mudança, haveria alguma possibilidade de benefício ao pequeno agricultor, segundo defendem os ideólogos da mudança?
Ariovaldo Umbelino: No Brasil sempre foi muito comum os pequenos produtores serem usados como bucha de canhão para que os médios e grandes proprietários atingissem seus objetivos. Sempre foi assim. Foi o que ocorreu na MP 458, quando a regularização dos posseiros da Amazônia era a justificativa para a regularização da área dos grileiros.
É bom esclarecer que os pequenos agricultores, a respeito da regularização de suas posses, já tinham uma legislação que lhes garantia a posse do terreno. Agora, com relação ao cumprimento do Código Florestal, é evidente que seria necessário verificar se o processo de destruição das APPs e o não registro da Reserva Legal, por exemplo, foram um ato deliberado desses agricultores durante o período de vigência da lei. Se foi este o caso, esses agricultores não deveriam ficar impunes, podendo-se pensar em atenuantes, períodos maiores que eles teriam para recompor a vegetação nativa das APPs e fazer a demarcação de recomposição da vegetação nativa, inclusive abrindo a possibilidade de obterem acesso ao apoio científico e tecnológico das universidades federais no processo de recomposição. Podemos discutir atenuantes, mas mesmo o setor que de maneira geral vem sendo penalizado na agricultura brasileira não deveria ser livrado da pena por infração ao Código Florestal.
Já os médios e grandes produtores poderiam ter um prazo muito mais restrito para tal recomposição, já que são capitalistas e se vangloriam de a agricultura brasileira ser a mais rentável do planeta. Portanto, devem agora usar esses recursos financeiros e tecnologia, de que se arrogam para ficar no Brasil, para recompor as vegetações urgentemente. E a eles deveriam ser infligidas não só as penas que a lei determina, como também o rigor e o prazo curto para a recomposição das APPs e Reservas Legais.
É evidente que o país e o INPE (Instituto Nacional de Pesquisa Tecnológica) possuem um vasto arquivo de imagens de satélite, desde a década de 70, que permitiria verificar o momento histórico em que as derrubadas aconteceram. Seria possível saber quem devastou APPs e reservas antes, quando não havia legislação que protegesse essas duas formas de preservação da natureza. É preciso separar o que ocorreu no passado do país, quando não havia lei voltada à conservação da natureza, de tudo o que aconteceu depois da existência da lei.
Nos comentários que leio e entrevistas que vejo de integrantes da bancada ruralista e do próprio Aldo Rebelo, parece que estão confundindo os que praticaram devastação antes da lei com aqueles que o fizeram depois. Estão tentando juntar não criminosos com criminosos, outro absurdo que deveria ser evitado nos debates e ações do Congresso.
Correio da Cidadania: De todo modo, nosso Código Florestal já tem mais de 40 anos. Haveria mudanças ou atualizações pertinentes a serem feitas?
Ariovaldo Umbelino: A alteração da Reserva Legal, por exemplo, foi objeto da MP que deu origem a esse debate no Congresso que até hoje se arrasta. É evidente que nenhuma lei tem efeito retroativo. O que se pode fazer é criar uma série de fatores que permitam recomposição.Cito como exemplo as APPs. Para aqueles que cometeram a imprudência de devastá-la antes da lei, devem ser dados prazos para a recomposição, compatíveis com suas rendas. Para os pequenos, uma determinada medida; para médios e grandes, outra.
Mas para aqueles que destruíram depois da lei, há dois crimes cometidos. Primeiro, a infração da lei. Depois, o perdão do crime se o Congresso aprovar a mudança.
É preciso uma atitude serena no sentido de que o descumprimento da lei só deseduca a população brasileira, o que tem acontecido no país há muito tempo. Nem sempre as pessoas cumprem as leis e ainda por cima são premiadas. Isso cria na sociedade uma visão profundamente equivocada de que a lei não foi feita para ser cumprida, com todas as conseqüências.
No caso da Amazônia brasileira, antes dessa MP objeto de debate, o Código Florestal previa a demarcação de 50% da área como Reserva Legal. Eram 50%, mas, com a alteração por MP, elevou-se para 80%. Inclusive - eu que estudei os processos de colonização e desenvolvimento da Amazônia brasileira nos governos militares posso lembrar -, havia um prazo para fazer as derrubadas e ocupação econômica da área, senão perdia-se direito aos lotes entregues.
É preciso ter cautela, mas já naquela época nenhum desmatamento era feito acima dos coeficientes do Código Florestal, e tal argumento está sendo utilizado para encobrir o desmatamento acima de 50% da Amazônia brasileira.
Todo cuidado é pouco, pois, propositalmente, a bancada ruralista mistura desmatamentos anteriores e posteriores ao código, no sentido de confundir a população e fazer valer esse argumento esdrúxulo de que conservação da natureza se opõe ao desenvolvimento econômico.
Correio da Cidadania: Ainda que eventualmente viéssemos a ter um Código Florestal elogiável em seu texto, em que medida ele esbarraria na grande lacuna da regularização fundiária do país?
Ariovaldo Umbelino: Eu penso que a legislação ambiental brasileira é bastante positiva e coerente com as legislações do mundo inteiro, com uma diferença: não se podem comparar os biomas e ecossistemas das áreas temperadas com os das áreas tropicais, pois estes são muito mais sensíveis, tendo em vista que as ações da natureza, sobretudo do ponto de vista climatológico, são muito mais destruidoras nas faixas tropicais que nas temperadas.
Inclusive uma parte de toda a umidade que o solo recebe deriva dos degelos de neve etc. Aqui não. Aqui, as chuvas em excesso e em falta destroem. Vivemos em uma área do planeta em que é preciso ter muito cuidado com a natureza, sob o risco de legarmos às gerações futuras processos irreversíveis de destruição ambiental.
É preciso ter em mente esses conceitos básicos que formam o conhecimento da humanidade, trazidos pela ciência e pela tecnologia, permitindo que a análise de congressistas no que se refere à legislação esteja amparada por especialistas.
Voltando de forma direta à pergunta, é preciso dizer que a legislação brasileira é de qualidade, e que nosso problema não é fazer uma legislação melhor ainda, o que seria um ato altamente positivo por parte do Congresso. Mas o problema é que o debate instaura uma oposição entre conservar e preservar a natureza e os processos de destruição que o agronegócio tem trazido ao meio ambiente deste país.
O governo atual, em seu segundo mandato, adotou uma postura completamente absurda e tresloucada por conta do apoio incondicional ao agronegócio do país. E estamos agora assistindo ao mesmo que aconteceu com relação às MPs 422 e 458 e com relação aos 67 milhões hectares de terras do INCRA na Amazônia legal que serão transferidos de forma praticamente gratuita aos grileiros.
Correio da Cidadania: Considera, portanto, sofrível a política ambiental do atual governo? Em que medida a sua condução ajudou a que se confluísse para o atual estado de embate em torno do Código Florestal?
Ariovaldo Umbelino: O governo, em seu segundo mandato, não teve planejamento algum, do ponto de vista nacional, para a área. E é evidente que um governo sem plano faz aquilo que sua base parlamentar solicita, pois ele não tem horizonte, não tem rumo. E essa ausência de rumo se dá simultaneamente ao apoio incondicional ao agronegócio e à bancada ruralista.Um dos últimos atos do órgão competente do Ministério do Desenvolvimento Agrário foi definir o preço que os grileiros terão de pagar. E vimos o absurdo que se propôs: que eles paguem R$ 2,99 por hectare. Quando li a notícia até pensei que os dirigentes desse setor do MDA tinham se equivocado. Talvez estivessem pensando naquela forma de comércio de produtos importados sem nenhuma utilidade vendidos a R$ 1,99. Achei que era nisso que eles pensavam quando anunciaram os preços das terras do INCRA na Amazônia legal.
Mas depois vi que era outra coisa! Ou seja, mais uma vez o crime compensa. É melhor cometer o crime, pois depois virá o perdão. E junto do perdão, os preços baixos e insignificantes que o governo impõe ao patrimônio público para que seja repassado a esses criminosos grileiros de terra. A mesma atitude está sendo tomada com o Código Florestal.
A saída da ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente já teve esse componente. É bom lembrar que, depois da sua saída, o desmatamento aumentou e o descumprimento da legislação ambiental continuou. E o que o governo fez foi alterar o decreto que previa o cumprimento do Código Florestal. O governo atual baixou um decreto que adiava as multas que o IBAMA já estava aplicando àqueles que cometeram crimes contra a legislação ambiental.
O governo atual já mostra, com exemplos cabais, desrespeito à legislação existente, o que obviamente abre caminho político para que a alteração da legislação se faça dentro daquilo que deseja a bancada ruralista.
Toda essa composição faz com que, no Brasil, o governo não apenas legisle perdoando os crimes contra as leis, como ainda não apóie a defesa de legislação que proteja a natureza e permita legarmos às gerações futuras um meio ambiente do qual possam se orgulhar de herdar.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
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