ESCRITO POR GABRIEL BRITO E VALÉRIA NADER
Nesta semana, Brasília foi palco de intensos debates na área ambiental, em um momento em que o presidente Lula pretende se jactar da respectiva política brasileira na Conferência Ambiental da ONU, em Copenhagen. Em meio à ambiciosa excursão à Escandinávia, a nação fervilha em poderosos conflitos de interesse no que se refere ao meio ambiente e também à propriedade da terra, com suas legislações cada vez mais debatidas nacional e internacionalmente.
Para tratar da questão, o Correio da Cidadania entrevistou o geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino, que traz à tona o dilema que vive o governo. Ávido em se apresentar positivamente ante a comunidade internacional, convive ao mesmo tempo com uma bancada de parlamentares proprietários de terra que passou o ano de 2009 tentando subverter ou afrouxar as mais relevantes leis ambientais.
Tais fatos revelam contradições inconciliáveis. "O IBGE, em 2006, constatou que 308 milhões de hectares de terras no país pertencem a proprietários sem documentação. Assim, como ele vai averbar uma reserva legal se não tem o título de propriedade da terra?", esclarece Umbelino. O geógrafo ainda desmistifica algumas informações sobre redução de desmatamento e emissão de gases. "Os fazendeiros estão desmatando mais no período de chuvas porque dessa forma a imagem do satélite não detecta", denuncia.
Correio da Cidadania: A MP 458, chamada MP da Grilagem, cujo intuito é a legalização de 67 milhões de hectares na Amazônia; a MP 452, que permite obras em rodovias sem licenciamento ambiental; a redução por decreto do valor pago como multa resultante de impactos ambientais negativos. Esses todos são exemplos de um arcabouço que vem sendo construído em detrimento da questão agrária e do meio ambiente. O que pensa da nova e atualíssima tentativa de se mudar o código florestal, concedendo autonomia aos estados no âmbito do meio ambiente, de modo que cada um possa legislar por conta própria sobre a questão?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar é preciso deixar claro que não tem nenhum cabimento tratar a questão ambiental no âmbito particular de cada estado, uma vez que os biomas e ecossistemas não reconhecem limites político-administrativos, nem dentro do país, muito menos fora. A Amazônia, por exemplo, é um ecossistema que atinge o Brasil e outros países, como Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Dentro do Brasil, atinge as unidades federativas mais variadas. Já o Cerrado vai desde MS e MT a SP, MG, GO, chegando a BA, MA e PI. Dessa forma, é praticamente impossível ter o controle sobre os ecossistemas e sua preservação tratando-os no plano de um gerenciamento estadual.
Na verdade, o que essa medida pretende obter é o ‘não controle’, ou seja, os ruralistas contam com o poder político que detêm nas unidades federativas do Brasil para não cumprir nenhuma legislação ambiental. Portanto, há uma razão de natureza política e outra razão de natureza técnica. É impossível resolver o problema ambiental no plano estadual. Imagine um estado tratando um ecossistema de uma maneira e outro estado tratando-o de um modo diferente.
Não há a menor coerência, trata-se de um ato de loucura da bancada ruralista, que evidentemente nunca respeitou lei ambiental e nem lei sobre terras neste país. Agora, obviamente, na medida em que se aproxima o prazo do cumprimento desta, recorre a alternativas estapafúrdias.
CC: Nessa esteira vem também a tentativa de se diminuírem as áreas de reserva legal na Amazônia, de 80% para 50% da área das propriedades, e também a intenção de incluir as APPs, as Áreas de Proteção Permanente, na reserva legal. Acha que essas tentativas serão vitoriosas?
AU: Precisamos tratar essa questão por mais de um caminho. Em primeiro lugar, todo esse caráter político deriva de medidas que o governo, ainda o de FHC, tomou com relação à ampliação da Área de Preservação Permanente e de aumentar a reserva legal. No caso da reserva legal, antes dessas medidas, a Amazônia tinha como área de reserva legal obrigatória 50% do terreno. É nisso que se apegam os ruralistas. Mas é bom deixar claro que já havia uma necessidade de o Brasil ampliá-la por conta de pressões internacionais, tendo em vista o ritmo em que corria o desmatamento.
Assim, é evidente que tal ampliação traz consigo a visão dos proprietários, que é a de terra arrasada, o que é mostrado pelo comportamento que sempre tiveram na história do país. Para eles, mato é para ser derrubado. Aliás, a origem etimológica da palavra mato é matar. Portanto, terra boa é terra limpa. Também é claro que esse tipo de postura, de raiz histórica, possui relação com a questão da propriedade privada da terra. Os proprietários, na maior parte das terras do Brasil, não cumprem a legislação nacional.
E na medida em que não cumprem a legislação da terra, ficam numa posição de não ter como cumprir a legislação ambiental. O IBGE, em 2006, constatou que 308 milhões de hectares de terras no país pertencem a proprietários sem documentação. Assim, como ele vai averbar uma reserva legal se não tem o título de propriedade da terra? São dois fatores que se cruzam. Ao costume histórico de desmatar além da conta, junta-se a impossibilidade de averbar a reserva legal.
CC: A cobrança da multa a proprietários que descumprem limites de reserva legal, prevista pra novembro, foi o estopim de tantas investidas?
AU: Na realidade, a lei deveria estar sendo cumprida desde que foi promulgada, no comecinho da década. Portanto, todos os proprietários tiveram tempo de sobra. O problema é que no Brasil se faz uma lei e demora-se para publicar o seu regulamento. Foi o regulamento da lei que demorou a sair. Este deve dizer claramente em seus artigos quando deve começar a ser cumprido; e o prazo estabelecido expira agora.
Dessa forma, o que o governo está fazendo é recuar, pensando que, adiando para 2010 a cobrança de multas, os proprietários passarão a cumprir o regulamento. Eles não vão cumprir e eu retomo a resposta anterior: eles não têm como cumprir. Pois como se pode averbar uma reserva legal sem que se possua o documento de titulação sobre aquela mesma terra?
Há uma contradição nisso e todo o debate ambiental está ignorando a questão fundamental, a da propriedade da terra, ou seja, a mesma coisa que se fez no caso da MP 458. Os ambientalistas têm uma posição equivocada: pensam que, se a posse estiver regularizada, o proprietário cumprirá a lei. Porém, a história do Brasil é a do não cumprimento das leis.
CC: Os ruralistas deverão então sair ganhando no que se refere às multas.
AU: Na verdade os ruralistas estão apostando tudo é na mudança da lei, já em trâmite no Congresso. Ao invés de cumprirem o que o decreto determina, investem num projeto de lei no Congresso que visa mudar a legislação atual. A estratégia é mudar a lei.
CC: O que pensa da idéia do presidente Lula de engavetar temporariamente alguns objetivos da área ambiental, como a meta de redução do desmatamento, para a conferência de Copenhagen? Trata-se de uma estratégia para conter a ofensiva dos ruralistas contra diversas leis ambientais?
AU: O fato é que o governo atual adotou duas políticas claras: a primeira é o apoio integral ao agronegócio. A segunda é remover toda possibilidade histórica que possa frear o apoio ao agronegócio. A reforma agrária foi substituída pela contra-reforma-agrária e a política ambiental é substituída gradativamente pela política anti-ambiental.
O Brasil faz um discurso no exterior, mas aqui a prática é outra. O desmatamento não diminuiu, apenas foi deslocado. Ao invés de se fazer como antes, quando se concentrava nos meses de julho, agosto e setembro, agora está distribuído. Os fazendeiros estão desmatando mais no período de chuvas porque dessa forma a imagem do satélite não detecta o desmate.
É um conjunto de atos irregulares que vão se somando, contando com a permissão do governo.
CC: O governo Lula se apresenta ao mundo com um discurso de defesa do meio ambiente (Marina foi durante um tempo o sustentáculo desse discurso) e, internamente, se mostra como defensor dos interesses dos trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo, megaprojetos como Belo Monte são patrocinados pelo governo, até mesmo com a criação de facilidades para o trâmite dos já contestados estudos de impacto ambiental. E agora estamos diante de todas essas tentativas de ‘regularização fundiária’ e ambiental às avessas. Estamos diante de mais uma das ‘faces duplas’ desse governo, a exemplo do que ocorre na condução da economia, não?
AU: A verdade é que o governo atual, do Partido dos Trabalhadores, nunca foi favorável à reforma agrária. Sempre ficou no discurso. No discurso, sim, era a favor. Mas nunca a implantou, tanto é assim que, se olharmos todos os anos deste governo, em nenhum a meta de assentamentos se aproximou da metade.
O governo sempre teve uma política de enganar os movimentos sociais, dizendo que faria a reforma agrária, mas na realidade só tratou de apoiar incondicionalmente a expansão do agronegócio no Brasil, transformando o país num grande celeiro de produção de alimentos para o mundo, mas sem desenvolver nenhuma política de soberania alimentar, que deveria ser seu maior princípio.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Nesta semana, Brasília foi palco de intensos debates na área ambiental, em um momento em que o presidente Lula pretende se jactar da respectiva política brasileira na Conferência Ambiental da ONU, em Copenhagen. Em meio à ambiciosa excursão à Escandinávia, a nação fervilha em poderosos conflitos de interesse no que se refere ao meio ambiente e também à propriedade da terra, com suas legislações cada vez mais debatidas nacional e internacionalmente.
Para tratar da questão, o Correio da Cidadania entrevistou o geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino, que traz à tona o dilema que vive o governo. Ávido em se apresentar positivamente ante a comunidade internacional, convive ao mesmo tempo com uma bancada de parlamentares proprietários de terra que passou o ano de 2009 tentando subverter ou afrouxar as mais relevantes leis ambientais.
Tais fatos revelam contradições inconciliáveis. "O IBGE, em 2006, constatou que 308 milhões de hectares de terras no país pertencem a proprietários sem documentação. Assim, como ele vai averbar uma reserva legal se não tem o título de propriedade da terra?", esclarece Umbelino. O geógrafo ainda desmistifica algumas informações sobre redução de desmatamento e emissão de gases. "Os fazendeiros estão desmatando mais no período de chuvas porque dessa forma a imagem do satélite não detecta", denuncia.
Correio da Cidadania: A MP 458, chamada MP da Grilagem, cujo intuito é a legalização de 67 milhões de hectares na Amazônia; a MP 452, que permite obras em rodovias sem licenciamento ambiental; a redução por decreto do valor pago como multa resultante de impactos ambientais negativos. Esses todos são exemplos de um arcabouço que vem sendo construído em detrimento da questão agrária e do meio ambiente. O que pensa da nova e atualíssima tentativa de se mudar o código florestal, concedendo autonomia aos estados no âmbito do meio ambiente, de modo que cada um possa legislar por conta própria sobre a questão?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar é preciso deixar claro que não tem nenhum cabimento tratar a questão ambiental no âmbito particular de cada estado, uma vez que os biomas e ecossistemas não reconhecem limites político-administrativos, nem dentro do país, muito menos fora. A Amazônia, por exemplo, é um ecossistema que atinge o Brasil e outros países, como Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Dentro do Brasil, atinge as unidades federativas mais variadas. Já o Cerrado vai desde MS e MT a SP, MG, GO, chegando a BA, MA e PI. Dessa forma, é praticamente impossível ter o controle sobre os ecossistemas e sua preservação tratando-os no plano de um gerenciamento estadual.
Na verdade, o que essa medida pretende obter é o ‘não controle’, ou seja, os ruralistas contam com o poder político que detêm nas unidades federativas do Brasil para não cumprir nenhuma legislação ambiental. Portanto, há uma razão de natureza política e outra razão de natureza técnica. É impossível resolver o problema ambiental no plano estadual. Imagine um estado tratando um ecossistema de uma maneira e outro estado tratando-o de um modo diferente.
Não há a menor coerência, trata-se de um ato de loucura da bancada ruralista, que evidentemente nunca respeitou lei ambiental e nem lei sobre terras neste país. Agora, obviamente, na medida em que se aproxima o prazo do cumprimento desta, recorre a alternativas estapafúrdias.
CC: Nessa esteira vem também a tentativa de se diminuírem as áreas de reserva legal na Amazônia, de 80% para 50% da área das propriedades, e também a intenção de incluir as APPs, as Áreas de Proteção Permanente, na reserva legal. Acha que essas tentativas serão vitoriosas?
AU: Precisamos tratar essa questão por mais de um caminho. Em primeiro lugar, todo esse caráter político deriva de medidas que o governo, ainda o de FHC, tomou com relação à ampliação da Área de Preservação Permanente e de aumentar a reserva legal. No caso da reserva legal, antes dessas medidas, a Amazônia tinha como área de reserva legal obrigatória 50% do terreno. É nisso que se apegam os ruralistas. Mas é bom deixar claro que já havia uma necessidade de o Brasil ampliá-la por conta de pressões internacionais, tendo em vista o ritmo em que corria o desmatamento.
Assim, é evidente que tal ampliação traz consigo a visão dos proprietários, que é a de terra arrasada, o que é mostrado pelo comportamento que sempre tiveram na história do país. Para eles, mato é para ser derrubado. Aliás, a origem etimológica da palavra mato é matar. Portanto, terra boa é terra limpa. Também é claro que esse tipo de postura, de raiz histórica, possui relação com a questão da propriedade privada da terra. Os proprietários, na maior parte das terras do Brasil, não cumprem a legislação nacional.
E na medida em que não cumprem a legislação da terra, ficam numa posição de não ter como cumprir a legislação ambiental. O IBGE, em 2006, constatou que 308 milhões de hectares de terras no país pertencem a proprietários sem documentação. Assim, como ele vai averbar uma reserva legal se não tem o título de propriedade da terra? São dois fatores que se cruzam. Ao costume histórico de desmatar além da conta, junta-se a impossibilidade de averbar a reserva legal.
CC: A cobrança da multa a proprietários que descumprem limites de reserva legal, prevista pra novembro, foi o estopim de tantas investidas?
AU: Na realidade, a lei deveria estar sendo cumprida desde que foi promulgada, no comecinho da década. Portanto, todos os proprietários tiveram tempo de sobra. O problema é que no Brasil se faz uma lei e demora-se para publicar o seu regulamento. Foi o regulamento da lei que demorou a sair. Este deve dizer claramente em seus artigos quando deve começar a ser cumprido; e o prazo estabelecido expira agora.
Dessa forma, o que o governo está fazendo é recuar, pensando que, adiando para 2010 a cobrança de multas, os proprietários passarão a cumprir o regulamento. Eles não vão cumprir e eu retomo a resposta anterior: eles não têm como cumprir. Pois como se pode averbar uma reserva legal sem que se possua o documento de titulação sobre aquela mesma terra?
Há uma contradição nisso e todo o debate ambiental está ignorando a questão fundamental, a da propriedade da terra, ou seja, a mesma coisa que se fez no caso da MP 458. Os ambientalistas têm uma posição equivocada: pensam que, se a posse estiver regularizada, o proprietário cumprirá a lei. Porém, a história do Brasil é a do não cumprimento das leis.
CC: Os ruralistas deverão então sair ganhando no que se refere às multas.
AU: Na verdade os ruralistas estão apostando tudo é na mudança da lei, já em trâmite no Congresso. Ao invés de cumprirem o que o decreto determina, investem num projeto de lei no Congresso que visa mudar a legislação atual. A estratégia é mudar a lei.
CC: O que pensa da idéia do presidente Lula de engavetar temporariamente alguns objetivos da área ambiental, como a meta de redução do desmatamento, para a conferência de Copenhagen? Trata-se de uma estratégia para conter a ofensiva dos ruralistas contra diversas leis ambientais?
AU: O fato é que o governo atual adotou duas políticas claras: a primeira é o apoio integral ao agronegócio. A segunda é remover toda possibilidade histórica que possa frear o apoio ao agronegócio. A reforma agrária foi substituída pela contra-reforma-agrária e a política ambiental é substituída gradativamente pela política anti-ambiental.
O Brasil faz um discurso no exterior, mas aqui a prática é outra. O desmatamento não diminuiu, apenas foi deslocado. Ao invés de se fazer como antes, quando se concentrava nos meses de julho, agosto e setembro, agora está distribuído. Os fazendeiros estão desmatando mais no período de chuvas porque dessa forma a imagem do satélite não detecta o desmate.
É um conjunto de atos irregulares que vão se somando, contando com a permissão do governo.
CC: O governo Lula se apresenta ao mundo com um discurso de defesa do meio ambiente (Marina foi durante um tempo o sustentáculo desse discurso) e, internamente, se mostra como defensor dos interesses dos trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo, megaprojetos como Belo Monte são patrocinados pelo governo, até mesmo com a criação de facilidades para o trâmite dos já contestados estudos de impacto ambiental. E agora estamos diante de todas essas tentativas de ‘regularização fundiária’ e ambiental às avessas. Estamos diante de mais uma das ‘faces duplas’ desse governo, a exemplo do que ocorre na condução da economia, não?
AU: A verdade é que o governo atual, do Partido dos Trabalhadores, nunca foi favorável à reforma agrária. Sempre ficou no discurso. No discurso, sim, era a favor. Mas nunca a implantou, tanto é assim que, se olharmos todos os anos deste governo, em nenhum a meta de assentamentos se aproximou da metade.
O governo sempre teve uma política de enganar os movimentos sociais, dizendo que faria a reforma agrária, mas na realidade só tratou de apoiar incondicionalmente a expansão do agronegócio no Brasil, transformando o país num grande celeiro de produção de alimentos para o mundo, mas sem desenvolver nenhuma política de soberania alimentar, que deveria ser seu maior princípio.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
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