sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Quatro Século de Latifúndio : O regime econômico colonial: feudalismo ou capitalismo?


Por Alberto Passos Guimarães
Portugal, à época do descobrimento, como de resto todo o con­tinente europeu, achava-se em pleno florescimento do mercan­tilismo. O regime feudal desagregava-se, o poder absoluto da aristocracia agrária entrava em decomposição e os senhores de terras que escapavam à ruína buscavam, nas atividades urbanas, novos caminhos para a conservação de seus privilégios. A aristocracia ru­ral trocava os poderes da nobreza pelos do dinheiro.
Mas não se conclua daí que, nas novas terras da América, Por­tugal prolongaria ininterruptamente sua história. Nesse erro incor­reram muitos historiadores daqui e dalém-mar. Transplantando para o Brasil o quadro de fenômenos da sociedade portuguesa, foram levados a admitir o mesmo desenvolvimento aqui, sem qualquer interrupção no seu curso. A colonização, como fruto da expansão do comércio marítimo e da desagregação do regime feudal, deve­ria, de acordo com esse ponto de vista incorreto, seguir aqui os moldes da nova sociedade que germinava na metrópole. Nesse caso, nas relações sociais implantadas no Brasil haveriam de predominar não os traços da economia feudal decadente, mas os da economia mercantil em formação; e, por conseguinte, a exploração latifun­diária, "aqui, não teria as características fundamentais do feudalis­mo, mas as do capitalismo.
Percebe-se o conteúdo apologético dessa concepção errônea, pois com ela se admite que o sistema colonial, em vez de transportar para o território conquistado os elementos regressivos do país dominan­te, como de fato inevitavelmente acontece, abandonaria à sua sorte esses elementos, selecionaria os fatores novos determinantes da evo­lução social e deles se serviria para fundar, onde quer que fosse, socie­dades de um tipo mais avançado que as metropolitanas.
Ao contrário desse imaginoso quadro, incorporado ao fabulário do colonialismo, a História nos mostra, não só em relação à coloni­zação portuguesa como no que se refere a todas as outras, que as metrópoles exportam para as colônias processos econômicos e insti­tuições políticas que assegurem a perpetuação de seu domínio. Por isso, sempre que a empresa colonial precisa utilizar processos econômicos mais adiantados, ela recorre, como contrapartida obrigatória, a instituições políticas e jurídicas muito mais atrasadas e opressivas. Desse modo, quando os instrumentos de coação econômica se mos­tram incapazes de atender aos objetivos preestabelecidos, o sistema de coação extra-econômica é acionado com o máximo rigor e levado às últimas conseqüências.
O exemplo brasileiro ilustra e confirma esse imperativo histó­rico. A despeito do importante papel desempenhado pelo capital comercial na colonização do nosso país, ele não pôde desfrutar aqui a mesma posição influente, ou mesmo dominante, que havia assu­mido na metrópole; não conseguiu impor à sociedade colonial as características fundamentais da economia mercantil e teve de submeter-se e amoldar-se à estrutura tipicamente nobiliárquica e ao poder feudal instituídos na América portuguesa.
Por conseguinte, o processo evolutivo em curso na sociedade lusa não veio continuar-se no Brasil-Colônia, onde o regime econômico instaurado significou um recuo de centenas de anos em relação ao seu ponto de partida na metrópole. Para que assim acontecesse, a classe senhorial, despojada ali de seus recursos materiais, empenhou­-se a fundo na tarefa de fazer girar em sentido inverso a roda da His­tória, embalada pelo sonho de ver reconstituído o seu passado.
A grande ventura, para os fidalgos sem fortuna, seria reviver aqui os tempos áureos do feudalismo clássico, reintegrar-se no domínio absoluto de latifúndios intermináveis como nunca houvera, com vassalos e servos a produzirem, com suas mãos e seus próprios instrumentos de trabalho, tudo o que ao senhor propor­cionasse riqueza e pode rio.
Cedo se desvaneceriam as esperanças nesta reconstituição integral das instituições já caducas na sociedade portuguesa. A propriedade da terra era, ainda nesse tempo, um cabedal de nobreza, e a participação da Ordem de Cristo nos frutos da exploração vinham acrescentar aos dons nobiliárquicos a origem mística do direito dominial.
Isso, porém, não bastaria, como não bastou, para que a empresa colonial produzisse os rendimentos que dela era lícito esperar. Daí o fracasso das primeiras tentativas de colonização, o qual poderia muito bem se explicar pela impossibilidade de uma pura e simples transposição para o Novo Mundo de todos os componentes da estrutura produtiva da economia medieval.
Onde não havia o servo da gleba a produzir renda com seus braços, seus animais e instrumentos de trabalho próprios, onde a mão­-de-obra nativa se mostrava cada vez mais rebelde e reagia violenta ou passivamente contra o cativeiro, a exploração agrária exigiria outros recursos de que a nobreza não dispunha. Naturalmente, em um mundo já invadido pelo poder da moeda, o domínio da terra, nobre, místico, absoluto como fosse, não se transformaria em fonte de riqueza sem um complemento indispensável: o capital-dinheiro.
Os "homens de calidades", provindos da fidalguia peninsular endividada ou arruinada, não estavam preparados para colher, sozinhos, os pomos de ouro que deyeriam nascer da terra. "Esse fidalgo - escreveu. Oliveira Viana - vêm de uma sociedade ainda modelada pela organização feudal: só o serviço das armas é nobre, só ele honra e classifica. Falta-lhes aquele sentimento da dignidade do labor agrícola, tão profundo entre os romanos do tempo de ‘Cincinnarus’”.
Mas o que lhes faltava, realmente, era dinheiro.
Por todas essas razões, a empresa colonial teve de realizar-se mediante a associação de fidalgos sem fortuna e plebeus enriquecidos pela mercância e pela usura, mas sob uma condição: o predomínio dos "homes de calidades" sobre os "homes de posses".
Recordemo-nos de que na Península, Portugal inclusive, mais que noutra qualquer parte, as formas políticas, os costumes, as idéias religiosas, todas as forças ideológicas do medievalismo estavam profundamente arraigadas. As aventuras marítimas, principal fon­te de acumulação primitiva do capital comercial, tinham possibili­tado a formação de uma burguesia já bem nutrida de recursos monetários, à qual não se havia, contudo, transferido parcela subs­tancial e decisiva do poder do Estado.
Diogo de Gouveia, que tinha inspirado e formulado os planos da colonização portuguesa da América, não era, positivamente, um ideólogo da burguesia, mas da nobreza. "A verdade era dar, Senhor, as terras a vossos vassalos" - aconselhara ele em sua carta datada de 1532 a el-rei D. João III.
A posição dominante dos "homes de calidades" na empresa colonial é um fato bastante explícito em nossa História. Prova-o, sem deixar lugar a dúvidas, o espírito de casta que presidiu a divisão do vasto território conquistado ao gentio, particularmente da­queles quinhões maiores e melhores.
Desde o instante em que a metrópole se decidira a colocar nas mãos da fidalguia os imensos latifúndios que surgiram dessa parti­lha, tornar-se-ia evidente o seu propósito de lançar, no Novo Mundo, os fundamentos econômicos da ordem de produção feudal. E não poderia deixar de assim ter procedido, porque o modelo origi­nal, de onde necessariamente teria de partir - a ordem de produ­ção peninsular no século da Descoberta -:- continuava a ser, por suas características essenciais, a ordem de produção feudal.
É certo que o feudalismo do Portugal seiscentista não guardava mais o mesmo grau de pureza dos primeiros tempos: já havia pas­sado do estágio da economia natural para o da economia mercan­til. Mas nenhuma mudança na estrutura econômica se dera em
Portugal que pudesse justificar sua assemelhação a outro regime historicamente mais avançado.
Eis por que falharam irrecusavelmente alguns historiadores e economistas notáveis ao classificarem como capitalista o regime econômico colonial implantado no continente americano.
A extraordinária expansão do comércio marítimo e, como sua decorrência, o enorme incremento da economia mercantil no seio do Portugal feudal do século 16 levaram o Sr. Roberto Simonsen a perfilhar tão grave equívoco e a introduzir na historiografia brasilei­ra a tese que influenciou numerosos setores de nossa intelectualidade:
"Na verdade - afirmou Simonsen - Portugal, em 1500, já não vivia sob o regime feudal. D. Manuel, com sua política de navega­ção, com seu regime de monopólios internacionais, com suas manobras econômicas de desbancamento do comércio de especiarias de Veneza, é um autêntico capitalista."2

E partiu daí para as seguintes conclusões:
"Não nos parece razoável que a quase totalidade dos historia­dores pátrios acentuem, em demasia, o aspecto feudal do sistema das donatarias, chegando alguns a classificá-lo como um retroces­so em relação às conquistas políticas da época. Portugal, desejando ocupar e colonizar a nova terra e não tendo recursos para fazê-lo à custa do erário real, outorgou para isso grandes concessões a no­bres e fidalgos, alguns deles ricos proprietários, e outros já experi­mentados nas expedições das índias. (...) Sob o ponto de vista eco­nômico, que não deixa de ser básico em qualquer empreendimento colonial, não me parece razoável a assemelhação desse sistema ao feudalismo."
Como se vê, Simonsen não se contentara em negar o caráter feudal do regime econômico implantado no Brasil-Colônia; e, indo mais além, deu por extinto, já no começo do século 16, o feudalis­mo em Portugal.
No entanto, os argumentos aduzidos pelo eminente historia­dor são insuficientes para a comprovação de sua tese. A imagem por ele tracejada do Portugal quinhentista revela uma sociedade onde a produção comercial havia alcançado elevado nível de evo­lução, onde as trocas monetárias tinham atingido apreciável desen­volvimento e onde era copioso o capital-dinheiro, condições essas PFculiares, em proporções crescentes, a toda a longa história vivida pela economia mercantil, desde os primórdios da civilização. 3
Não bastaria a presença de tais categorias econômicas, por maiores que fossem sua amplitude e significação na época, para caracterizar como capitalista o regime econômico de Portugal. Se tomássemos como ponto de referência, para definir e classificar os regimes econômicos, os fenômenos inerentes à circulação, acabaríamos por aceitar a absurda igualdade entre todos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que aban­donou a vida primitiva. Não teríamos, pois, como estabelecer distinção entre os períodos correspondentes à escravidão, ao feudalismo e ao capitalismo, de vez que, em todos esses regimes, com maior ou menor grau, o sistema mercantil está presente.
Acertara o Sr. Roberto Simonsen ao afirmar que "não deixa de ser básico em qualquer empreendimento colonial" o ponto de vista econômico. Entretanto, se é certo que o ponto de vista econômico fornece a base para interpretação do colonialismo, o que é que é básico para a classificação de um regime econômico?
O básico num regime econômico é o sistema de produção, isto é, o modo por que, numa determinada formação social, os homens obtêm os meios de existência. Assim, o modo por que os homens produzem os bens materiais de que necessitam para viver é que determina todos os demais processos econômicos e sociais, inclusive os, processos de distribuição ou circulação desses bens.
No Portugal quinhentista, a principal fonte de produção de bens materiais era a agricultura, embora, como talvez sucedesse, fosse já superior à dos senhores de terras a parcela da riqueza acumulada nas aventuras marítimas pela burguesia comercial, que emergia da sociedade como uma classe de forte potencial econômico.
Essa classe repartia com a realeza o poder do Estado, havia já mais de um século, mas não ocupava ali uma posição dominante e não dispunha de forças suficientes para destruir a ordem de produção vigente, que continuava a ser a ordem feudal.
Tal estado de coisas não era exclusivo da sociedade peninsular, onde, se por um lado, o capital-dinheiro abundava, por outro lado, a tradição exercia, como em nenhuma outra parte, o seu papel de "grande força retardadora de "vis inertiae da história.
Em toda a Europa, à altura do Descobrimento, ainda não al­cançara sua etapa final e decisiva e não se colocara na ordem do dia à derrubada da ordem feudal, que demorou nada menos de três centúrias.
"A longa luta da burguesia contra o feudalismo - disse Engels - foi marcada por três grandes e decisivas batalhas." A primeira foi a Reforma protestante na Alemanha. ("Ao grito de guerra de Lutero contra a Igreja, responderam duas insurreições políticas: a insur­reição da pequena nobreza dirigi da por Franz de Sickingen (1523) e a grande guerra dos Camponeses (1525).") A segunda foi a ex­plosão do calvinismo na Inglaterra (1648). E a terceira, a Revolução Francesa (1789), que travou todas as suas batalhas no terreno político, sem as anteriores roupagens religiosas, e de que resultou, pela primeira vez, a destruição de uma das classes combatentes, a aristocracia, e o completo triunfo da outra, a burguesia. 4
A ordem feudal vigente na sociedade portuguesa de 1500 tinha sua base interna no monopólio territorial. E como a terra era, então, indiscutivelmente, o principal e mais importante dos meios de pro­dução, a classe que possuía sobre ela o domínio absoluto estava ha­bilitada a sobrepor às demais classes o seu poderio, por todos os meios de coação econômica e, notadamente, de' coação extra-econômica.
Quando a Metrópole decidiu lançar-se na empresa colonial, não lhe restava outra alternativa política senão a de transplantar para a América Portuguesa o modo de produção dominante no além-mar. E o fez cônscia de que a garantia do estabelecimento da ordem feu­dal deveria repousar no monopólio dos meios de produção funda­mentais, isto é, no monopólio da terra. Uma vez assegurado o do­mínio absoluto de imensos latifúndios nas mãos dos "homens de ralidades" da confiança de el-rei, todos os demais elementos da produção seriam a ele subordinados.
E assim aconteceu. O monopólio feudal da terra impôs soluções específicas para os problemas que teve de vencer, sem contudo porder as características essenciais da formação social que tomara por modelo.
O feudalismo clássico havia dado um passo à frente sobre o regime econômico que o antecedeu, com a transformação do es­cravo em servo da gleba e obteve deste, à custa do estímulo pro­porcionado por sua condição mais livre, uma produtividade no trabalho bastante superior.
Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feuda­lismo colonial teve de regredir ao escravismo, compensando a re­sultante perda do nível de produtividade, em parte com a extraor­dinária fertilidade das terras virgens do Novo Mundo e, em par­te, com o desumano rigor aplicado no tratamento de sua mão-­de-obra. Teve, ainda, de dar outros passos atrás, em relação ao estágio mercantil que correspondia ao seu modelo, restabelecen­do muitos dos aspectos da economia natural. Mas, em compen­sação, pôde desenvolver o caráter comercial de sua produção, não para o mercado interno, que não existia, mas para o mercado mundial. E, com o açúcar, vinculou-se profundamente à manu­fatura.
Nenhuma dessas alterações, a que precisou amoldar-se o la­tifúndio colonial, foi bastante para diluir o seu caráter feudal. Muito freqüentemente as formas escravistas entrelaçaram-se com as formas servis de produção: o escravo provia o seu sustento dedicando certa parte do tempo à pesca ou à lavoura em peque­nos tratos de terra que lhe eram reservados. Desse modo, o re­gime de trabalho escravo se misturava com o regime medieval da renda-trabalho e da renda-produto, além de outras variantes da prestação pessoal de trabalho. Não faltava aos senhorios co­loniais a massa de moradores "livres" ou de agregados, utiliza­dos nos serviços domésticos ou em atividades acessórias desli­gadas da produção, os quais coloriam o pano de fundo do cenário feudal.
Fruto dessa estrutura, o sistema de plantação, que vários eco­nomistas e historiadores pretendem apontar como uma unidade econômica, do tipo capitalista, constituiu, de fato, e sem qualquer dúvida, a expressão realizada do feudalismo colonial. Que o pode­ria configurar como "capitalistá'? O caráter comercial da produ­ção? Certas formas atípicas de salariado?
Mas, como já tivemos ocasião de ver, o caráter comercial da produção não é uma característica do capitalismo, mas do mercantilismo.
"O estágio da produção mercantil - escreveu Engels - com o qual começa a civilização, distingue-se, do ponto de vista econô­mico, pela introdução;
1°) da moeda metálica e com ela o capital­dinheiro, o empréstimo, o juro e a usura;
2°) dos mercadores, como classe intermediária entre os produtores;
3°) da propriedade Territorial e da hipoteca; e
4°) do trabalho escravo, como forma dominante da produção."5
Data de cerca de 7.000 anos o reinado do mercantilismo: e em toda essa longa existência os germes do capitalismo, na acepção moderna e científica deste, buscavam as condições necessárias para .1 sua concretização histórica, que só se tornou plenamente possí­vel com o advento da revolução industrial. A passagem do feuda­lismo para o capitalismo verificou-se quando a todas as condições acumuladas gradualmente, veio acrescentar-se aquela que possibi­litou o salto qualitativo: o fim da coação feudal, da coação extra­econômica sobre o trabalhador, para que ele pudesse vender livre­mente sua força de trabalho, como assalariado, ao capitalista.
É claro que o momento em que se efetivou esse salto de quali­dade se entende ser aquele em que as formas capitalistas de produ­çao deixaram de ser exceções na sociedade em causa e passaram a constituir a regra.
Antes que isso se desse, as formas capitalistas de produção fo­ram tornando-se, gradualmente, menos raras, até se transforma­rem em formas predominantes. O caráter comercial da produção e as ocorrências esporádicas do salário coexistiram com a escravidão l' com o feudalismo, mas somente adquiriram sua plenitude com o modo de produção capitalista, ou seja, com o capitalismo industrial.
No sistema de plantação, como aliás no conjunto de economia pré-capitalista do Brasil-Colônia, o elemento fundamental, a ca­racterística dominante à qual estavam subordinadas todas as de­mais relações econômicas, é a propriedade agrária feudal, sendo a terra o principal e mais importante dos meios de produção.
O fato de se destinarem ao mercado exterior, sob o controle da metrópole, os produtos obtidos através desse mesmo sistema, só contribui para juntar àquele um novo elemento: a condição colo­nial.
Em trabalhos de Leo Weibel e Sergio Bagu, que tiveram signi­ficativa repercussão no Brasil, e nos quais foram analisados detida­mente os aspectos característicos do regime econômico colonial e do sistema de plantação, podemos encontrar argumentos objeti­vos que, se tivessem ocupado lugar de relevo na ordem de raciocí­nio, por eles seguida, haveriam de possibilitar conclusões muito diferentes daquelas a que chegaram.
Weibel, por exemplo, depois de criticar as definições de Hahn e Weber e de reconhecer que o sistema não é exclusivo das culturas tropicais, concorda em que "esta grande participação das plantages na produção de matérias-primas estrangeiras e, de modo geral, das plantas cultivadas introduzi das, é por si compreensível e pode ser explicada pelo caráter colonial desta forma de economia". Noutro trecho de seu estud06, valendo-se de afirmações feitas por Brentano e outros, estabelece que "a forma econômica da plantage pode ser relacionada espacial e cronologicamente com o aparecimento do sistema na Mesopotâmia, nos primórdios da Idade Médià'.
Todavia, por não dar a essas suas próprias observações a importância que mereciam, chegou apenas à seguinte definição: "Uma plantage é um grande estabelecimento agroindustrial, que, via de regra, sob direção de europeus, produz, com grande emprego de trabalho e de capital, produtos agrícolas valorizados para o merca­do mundial".
Em estudo posterior, Weibel, que, pelo visto, menosprezara o exame dos processos de produção e também se deixara impressio­nar pelo papel que nesse tipo de exploração desempenha o capital comercial, passa a conceituar a plantage como um "sistema econô­mico capitalista. 7
Menos compreensíveis e explicáveis são as conclusões do Pro­fessor Sergio Bagu 8 que, partindo de premissas bastante lúcidas e lendo admitido, relativamente à colonização do território ameri­cano, que "jamais as metrópoles se desligaram da ideologia feudal", chega, por fim, à formulação da tese de que "o regime econômico luso-espanhol do período colonial não é feudalismo" mas sim "ca­pitalismo colonial".
Ao enumerar, com inegável exatidão, o que chama de "ele­mentos de configuração feudal" no processo de colonização da maioria dos países americanos, Sergio Bagu principia pela gran­de propriedade territorial apontando as semelhanças na forma­ção da estrutura latifundiária em todo o novo continente. E acres­centa: "O conceito feudal da propriedade do solo aparece tão fortemente - e talvez mais - na colonização britânica do século 17 quanto na luso-espanhola do século 16". Mas no confronto entre os vários componentes feudais por ele examinados e o que chama de "elementos de configuração capitalistà', Bagu cai em evidente exagero e comete os mesmos equívocos de outros histo­riadores, confundindo as categorias econômicas do mercantilismo com as do capitalismo moderno. Para ele "desde o século 16 cir­cula nas colônias hispano-lusas um capital financeiro originado na acumulação capitalista produzida nas mesmas colônias", afir­mação esta inaceitável, quer do ponto de vista econômico quer do ponto de vista histórico. O que de fato circulava nas colônias era o capital comercial, em sua forma mais elementar, o capital­-dinheiro acumulado por meios que se distinguem nitidamente dos processos de acumulação capitalistas, os quais só muito mais tarde, com o desenvolvimento industrial, iriam possibilitar o aparecimento do capital financeiro.
Foram essas incompreensões que levaram Bagu, de analogia em analogia, a uma outra afirmação ainda mais absurda: "a escravidão não tem nada de feudal e sim tudo de capitalista, como acredita­mos haver provado no caso de nossa América".
Deter-se nessa controvérsia em busca de um ponto de vista fir­mado sobre a classificação do regime econômico colonial pode parecer, aos menos avisados, uma inútil perda de tempo e um es­forço desnecessário. Entretanto, não se trata de um debate mera­mente acadêmico e desligado de qualquer sentido prático. Nele estão envolvidas questões de enorme significação para o desenvolvimen­to econômico e social de nosso país, bem como interesses políticos da máxima relevância, como iremos ver.
A simples eliminação em nossa História da essência feudal do sistema latifundiário brasileiro e a conseqüente suposição de que iniciamos nossa vida econômica sob o signo da formação social capitalista significa, nada mais nada menos, considerar uma excrescência, tachar de supérflua qualquer mudança ou reforma profunda de nossa estrutura agrária.
Supondo-se inicialmente capitalista o regime econômico im­plantado no Basil-Colônia, estaria implícita uma solução, inteira­mente diversa daquela preconizada pelos partidários da reforma agrária. Se a estrutura agrária brasileira sempre teve uma "configu­ração capitalista", por que revolucioná-Ia? Por que reformá-Ia?
Partindo desse ponto de vista, evidentemente falso, concebe-se uma estratégia política não-reformista ou não-revolucionária, uma estratégia evolucionista: o desenvolvimento gradual, sem reformas. De acordo com ele, acrescentando-se à atual estrutura agrária al­guns ingredientes - mais adubação, mais mecanização, numa pa­lavra: mais capital - alcançaríamos a fórmula milagrosa para acele­rar o progresso agrícola em geral, sem precisarmos apelar para qualquer reforma de base. 9
A teoria do capitalismo colonial não é, assim, um achado his­tórico tão inocente quanto parece. É uma teoria conservadora, rea­cionária que, bem arrumada, se encaixa perfeitamente nos esque­mas políticos mais retrógrados.
A negação ou mesmo a subestimação da substância feudal do latifundismo brasileiro retira da reforma agrária sua vinculação histórica, seu conteúdo dinâmico e revolucionário.
Esse conteúdo dinâmico e revolucionário, na presente etapa da vida brasileira, expressa-se pelo objetivo principal do movimento pela reforma agrária, que é o de extirpar e destruir, em nossa agricultura, as relações de produção do tipo feudal e não as relações de produção de tipo capitalista.
Por aí se vê que, ao admitir-se que a estrutura agrária existente em nosso país foi, desde os mais remotos tempos, e continua sen­do, capitalista, está-se admitindo, por coerência, a inoportunidade da desnecessidade de uma reforma revolucionária, de uma mudança democrática dessa mesma estrutura. Que restaria por fazer, se se tratasse de tornar mais capitalista nossa estrutura agrária já capita­lista? Deixá-la como está, inalterada, e injetar nela mais dinheiro, mais capital.
A experiência brasileira encarregou-se de demonstrar que tem sido infrutíferas as tentativas de salvar nossa agricultura latifundiá­ria da crise crônica em que mergulha há cerca de um século, à cus­ta de transfusões de recursos, privilégios e favores, de "valorizações" artificiais, da "fixação do homem à terra", de "reajustamentos eco­nômicos" e outras panacéias do gênero.
Agora, já penetrou na opinião nacional a consciência de que há, no .campo, relações de produção caducas que precisam ser subs­tituídas por novas relações de produção, sem o que as forças pro­dutivas de nossa agricultura não estarão desimpedidas de desen­volver-se.
Quais são essas relações de produção caducas?
Essas velhas relações de produção que travam o desenvolvimento e nossa agricultura não são do tipo capitalista, mas heranças do feudalismo colonial. A primeira e mais importante dessas relações de produção, cuja destruição se impõe, é o monopólio feudal e colonial da terra, o latifundismo feudo-colonial.
O monopólio feudal e colonial é a forma particular, específi­ca, por que assumiu no Brasil a propriedade do principal e mais importante dos meios de produção na agricultura, isto é, a pro­priedade da terra. O fato de ser a terra o meio de produção fun­damental na agricultura indica um estágio inferior da produção agrícola, peculiar às condições históricas pré-capitalistas. À me­dida que o capitalismo penetra na agricultura, vão-se desenvol­vendo, e aumentando sua proporção no conjunto, os demais meios de produção, isto é, os meios mecânicos de trabalho, as máquinas ou os instrumentos de produção, as construções, os elementos técnicos e científicos etc., de tal maneira que numa agricultura plenamente capitalista, esses passam a ser (e não mais a terra) os principais meios de produção. Quanto à agricultura brasileira, é fato comprovado pelos dados estatísticos que conti­nua a caber à terra aquele papel predominante no conjunto dos meios de produção. 10 Por isso, na situação objetiva de nossa agri­cultura, dominar a terra, açambarcá-la, monopolizá-la significa ter, praticamente, o domínio absoluto da totalidade dos meios de produção agrícolas.
Acresce que o monopólio da terra, nas condições pré-capitalis­tas de nossa agricultura, assegura à classe latifundiária uma força maior do que o poderio econômico, uma outra espécie de poder que freqüentemente supera e sobrevive àquele - o poder extra-eco­nômico.
O poder extra-econômico é uma característica e uma sobrevi­vência do feudalismo. Ele se exerce, ainda nos nossos dias, através do "governo" das coisas e das pessoas dentro e em torno dos latifúndios. Aquilo que Antonil recriminava no século 18 ("Quem chegou a ter título de senhor, parece que em todos quer dependên­cia de servos") e Koster observava no século 19 ("O grande poder do agricultor, não somente nos seus escravos mas sua autoridade sobre as pessoas livres das classes pobres"), revive, no século 20, sob a forma do "coronelismo" de antes de 1930 e, com algumas modi­ficações no estilo, não desapareceu até hoje.
Graças a esse tipo de relações coercitivas entre os latifundiários, seus moradores , agrega os , meeiros , colonos , camaradas, mesmo assalariados, estendendo-se também aos vizinhos de pe­quenos e médios recursos, alguns milhões de trabalhadores brasileiros vivem, inteiramente ou quase inteiramente, à margem de quaisquer garantias legais ou constitucionais e sujeitos à jurisdição civil ou criminal e ao arbítrio dos senhores de terras. Estes últimos determinam as condições dos contratos de trabalho, as formas de remuneração, os tipos de arrendamento, as lavouras e criações per­mitidas, os preços dos produtos, os horários de trabalho, os servi­ços gratuitos a prestar, ditam as sentenças judiciais e impõem as restrições à liberdade que lhes convêm, sem o mínimo respeito às leis vigentes.
Todas essas e outras relações extra-econômicas derivam do mo­nopólio feudal da terra e correspondem a um tipo de exploração pré-capitalista que consiste em coagir os trabalhadores a lavrarem a terra que não lhes pertence, por processos primitivos ou rotineiros e mediante uma ínfima participação no produto de seu trabalho.
Mas não pára aí a configuração pré-capitalista do sistema lati­fundiário existente no Brasil. Nossa estrutura latifundiária se com­pleta com uma conotação colonial, que é parte integrante do siste­ma e uma das condições que respondem pela sua resistência às transformações de caráter democrático e à sua evolução para o tipo de produção capitalista.
Quando o monopólio feudal da terra existe em função do mer­cado interno, como no caso dos países desenvolvidos da Europa e da América (antiga Prússia, Sul dos Estados Unidos etc.). em virtude de ficar retida no país a totalidade do excedente econô­mico obtido na produção e do próprio desenvolvimento indus­trial interno, o latifúndio é levado a incorporar processos técni­cos mais adiantados, a adotar formas de trabalho e de produção do tipo capitalista, e tem condições para modernizar-se gradual­mente, para "aburguesar-se" ou converter-se em grandes propriedades capitalistas.
Com o monopólio feudal e colonial da terra (ou semifeudal e semicolonial), de que o sistema de plantação é a forma típica, isso só pode acontecer muito lenta e dificilmente. Em primeiro lugar, porque o sistema latifundiário feudal-colonial está constituído para exportar toda a sua produção, e ao fazê-lo, por definição, exporta também parte da renda e dos lucros produzidos, ceden­do-os aos trustes compradores internacionais. Para que tal mecanismo de sucção funcione sem prejuízo da parte que cabe à classe latifundiária, esta transfere, para os seus trabalhadores e para a população do país onde se situa, os ônus decorrentes desse pro­cesso de espoliação. Em segundo lugar, porque o sistema latifundiário feudal-colonial exige, como peça inseparável de seu meca­nismo, a organização de uma rede de intermediários-compradores e intermediários-usurários que atuam não só no sentido de facilitar a transferência da parte dos lucros especulativos para as mãos dos trustes internacionais, como no sentido de ainda mais redu­zir a remuneração dos trabalhadores agrícolas. Esse tipo de comercialização, vinculado ao sistema latifundiário feudal-colo­nial, corresponde aos antigos moldes do capital mercantil e exer­ce sobre o desenvolvimento capitalista semelhante influência re­gressiva. E, em terceiro lugar, porque todo esse aparelho pré-capitalista de produção e distribuição, à medida que promo­ve a evasão de parte da renda gerada para o exterior, descapitaliza () país e limita o desenvolvimento industrial; e, à medida que comprime o poder aquisitivo das massas rurais, limita a expan­são do mercado interno.
Em suma, a condição colonial do monopólio feudal da ter­ra acentua, fortemente, os fatores regressivos, os elementos de atraso inerentes àquele. Com isso queremos dizer que no latifundismo brasileiro são mais fortes ainda os vínculos do tipo rt'udal, tais como as relações de domínio sobre as coisas e pessoas, as interligações com as formas primitivas do capital co­mercial, aos quais se acrescentam as particularidades da depen­dência aos trustes internacionais compradores da produção Li tifundiária.
Todas essas características, presentes em nossa atual estrutura fundiária, são heranças diretas do regime econômico colonial Implantado em nosso país logo a seguir ao período da descoberta, 1111 seja, do feudalismo colonial. Evidentemente, ao nos referirmos às características feudais e coloniais do latifundismo brasileiro, não pretendemos asseverar que elas existem agora com o mesmo grau de intensidade em que existiam no Brasil-Colônia, nem que revestem as mesmas formas "puras" ou "integrais". Pouco importa, para as conclusões a que devemos chegar, o grau menos ou mais acentuado de suas mani­festações; o que de fato importa é reconhecer sua presença, sua sobrevivência, sua permanência ainda que residual, como vestí­gios de um passado que deveria estar morto.
Nossa atual estrutura latifundiária, verdadeiramente semifeudal e semicolonial, apresenta as características fundamentais do pré-capitalismo. Tanto basta para que nos recusemos a aceitar como originariamente "capitalistà', não no sentido vulgar, mas no senti­do moderno e científico do termo, a conceituação do regime eco­nômico implantado no século 16 na América Portuguesa. A não ser que endossássemos outra hipótese não menos absurda: a de que, devido, talvez, à nossa "incapacidade" para o progresso, tenhamos regredido, em quatro séculos, do "capitalismo", para o pré-capita­lismo agrário...
Como vimos, a importância dessas conclusões não é meramente conceitual; elas têm grande significação prática, política, estratégica, para os destinos de nossa agricultura e de nossa economia em geral.
Mostram-nos, tais conclusões, que a redistribuição da terra, a divisão da propriedade latifundiária não é uma simples operação aritmética, uma reparação de injustiças ou uma medida de assis­tência social.
Uma reforma agrária democrática tem um alcance muito maior: seu objetivo fundamental é destruir pela base um duplo sistema espoliativo e opressivo; romper e extirpar, simultaneamente, as relações semicoloniais de dependência ao imperialismo e os vínculos semifeudais de subordinação ao poder extra-econômico, político e "jurídico" da classe latifundiária. E tudo isso para libertar as forças produtivas e abrir novos caminhos à emancipação econômica e ao progresso de nosso país.
Seria indesculpável que fossemos repetir hoje, em face dos pro­blemas formulados pela exigência da reforma agrária, o mesmo erro em que incorreu o movimento abolicionista, ao deixar-se empol­gar pela ilusão de que o trabalho escravo era a causa única e determinante de todos os males que assolavam tanto a agricultura quanto toda a sociedade brasileira.
Resultou desse imperdoável equívoco que, após a extinção da
escravatura, as esperanças de muitos abolicionistas no fraciona­mento da propriedade logo se desfizeram e, em vez disso, o lati­rlmdio não tardou a refazer-se do tremendo golpe recebido e encontrou, rapidamente, novas formas servis de trabalho para substituir o braço escravo.
Tendo ficado intactos o monopólio feudal e colonial da terra l' seu imenso poder de coação extra-econômica, o latifúndio pôde, mesmo desfalcado de seus anteriores recursos econômicos, prolongar pelo tempo a crueldade do tipo de exploração semi-escra­vista ou sem i-servil que era a única compatível com a sua estru­tura. Catou em todas as partes do mundo devastado pela miséria rural um tipo "inferior" na escala humana que viesse substituir o negro; experimentou os cules chins, tentou subjugar os imigran­tes europeus e acabou por convencer-se que seus melhores servos da gleba seriam os próprios trabalhadores nativos, os caboclos que estes tanto desprezara. Os instrumentos jurídicos necessários para essa reintegração do sistema latifundiário em suas mais remotas tradições foram a lei de locação de serviços e os famigerados contratos de parceria, uma ardilosa recomposição legal, instituí­d.1 pelo senador Vergueiro, dos velhos costumes soterrados com a Idade Média.
A história deu razão aos abolicionistas mais esclarecidos, que não alimentaram aquelas ilusões. Eis o pensamento de um deles, André Rebouças - que conserva a mais completa atualidade, ex­presso em cartas dirigidas a seus amigos: "12 de março de 1897 ­Meu querido Nabuco: Produziram-me grata emoção estas doutas palavras de seu venerando Pai, citadas à página 130 da Revista Bra­sileira, de 10 de fevereiro de 1897: 'A nossa propriedade territorial está tão concentrada, tão mal dividida, tão mal distribuída que, neste vasto império, afora os sertões e os lugares incomunicáveis, não há terra para serem cultivadas pelos brasileiros e estrangeiros, que não têm outra esperança senão nas subdivisões tardias que a morte e as sucessões podem operar.' Na verdade são estas palavras admirável síntese que resume todos os males produzidos pelo monopólio territorial no Brasil. Quanta satisfação em reconhecer que exímios estadistas do Império precederam-nos na campanha contra o lati­fúndio e na propaganda para a subdivisão da terra, para a pequena propriedade e para a Democracia Rural. Sempre e sempre, André Rebouças." 11
Suas são também estas palavras, extraídas de outra carta a An­tonio Machado:
"Para quem estuda os fenômenos sociais não há crime maior do que o do monopólio da terra; é o fator principal da escravidão e da servidão da gleba, disfarçados atualmente em Sweatinge num salariado forçado; é o produtor satânico da miséria e de todos os horrores de anarquismo e desespero que ora afligem o Velho e o Novo Mundo.12

A sesmaria 13

Dividiam-se as simpatias da Metrópole Portuguesa entre os "homens de qualidade" e os "homens de posses", estes os mais desejados quando se tratava de fixar na agricultura os grandes interesses da exploração colonial. Na luta entre a decadente classe senhorial portuguesa, detentora de grandes poderes feudais, apoiada pela Igreja, herdeira das tradições mais vivas do medievalismo, e a burguesia nascente que se liga­va por muitos interesses comuns à realeza, nesse conflito que foi a laracterística dominante do século 16, é possível encontrar muitos dos aspectos ainda obscuros de nossa história. Eram interesses con­traditórios os daquelas classes e por isso as concessões da realeza aos nobres feudais (em muitos casos sob o patrocínio da Igreja) e, refletia, as vitórias dos comerciantes sobre os interesses da nobreza, apareciam no cenário da colônia como outras tantas contradições não muito fáceis de explicar, se se afasta a concepção da luta de classes, se toma uma sociedade, uma nação, como um todo indivisível.
"No final do século 14, havia já em Portugal uma classe mercantil cosmopolita, rica e influente, com gostos e interesses opos­los aos dos barões feudais. Embarcadores e comerciantes, uni­dos aos povos das cidades marítimas, fizeram a revolução de 1.383 e 1385 recusando-se a reconhecer D. João de Castela, ca­sado com a filha de D. Fernando, proclamando rei D. João de Avis, filho bastardo de D. Pedro. Com o rei de Castela estavam os magnatas e os grandes proprietários de terras. Em Aljubarrota triunfaram os negociantes e embarcadores, o litoral e a política (Iceânica e de transporte, ao dominador dos campos; venceu o mar à terra."14
Daí por diante, em todo o continente europeu, tendiam a agra­var-se os choques de interesses, entre um mundo decadente - o do feudalismo - e o que nesse mundo se gerava como fruto de suas (manhas - o mundo da burguesia.)
Haveria de corresponder aos interesses dos mercadores utilizar as colônias para fins exclusivamente de comércio, tendo por base a riqueza extrativa, a preia de índios, o tráfico de escravos. Ao con­trário, os cavaleiros feudais miravam as colônias vendo-Ihes prin­cipalmente o colosso territorial.
Explica-se, pois, por que, servindo mais aos fins mer­cantilistas do que às aspirações da nobreza, tardasse a realeza a volver suas atenções para a utilização da terra no país descober­to.
"Como então a principal ocupação del Rey e de seu Conselho - referia em tom de discreta censura a crônica real - se empregava nas cousas da Índia, por serem de grandíssima importância, tratou-se menos das do Brasil, avendo-as por menos importantes, porque os proveitos delas se esperavam mais da granjearia da terra que do comércio da gente, por ser bárbara, inconstante e pobre; e tendo-se por esta causa pouca atenção no princípio a povoar esta terra, se dava a homens particulares quanta quantidade cada um pedia nela, com nome de capitães e grandes poderes de jurisdição de cível e crime."15
As duas grandes linhas da política do reino, ora a facilitar as expansões do comércio marítimo, ora a ceder à influência da no­breza feudal, refletiam os interesses fundamentais de duas classes econômica e ideologicamente poderosas.
Expressão do antagonismo entre essas duas classes, na sociedade portuguesa do século 16, foi a instituição da sesmaria. "Quando, no reinado de D. Fernando I - escreve Cirne Lima - se publicou a Lei das Sesmarias, era velha já a praxe de se tirarem aos donos as terras cultivadas, que estes desleixavam, para entregá­ Ias, mediante foro ou pensão devidamente arbitrada, a quem as quisesse lavrar e aproveitar."16 Segundo as Crônicas dos Reis de Portugal, todos os que tives­sem herdades "suas próprias ou emprazadas ou por outro qualquer título fossem constrangidos para as lavrar."
"E que fossem muitas, ou em desvairadas partes, lavrassem as que mais lhes aprouvesse, e as outras fizessem lavrar por ou­trem ou dessem a lavradores de sua mão. De maneira que todas herdades que eram para dar pão, todas fossem de trigo, cevada e milho."
A legislação de sesmarias representava, em Portugal, uma ten­tativa para salvar a agricultura decadente, para evitar o abandono dos campos que se acentuava à medida que se decompunha a economia feudal, na razão do crescimento das atividades dos centros urbanos. Era, em sua interferência na propriedade agrária, uma tí­mida restrição ao Direito Feudal, embora, bem se possa avaliar, muito difícil de ser praticada.
Devia ser bastante grave, no Portugal quinhentista, a situação da agricultura, a miséria e o despovoamento das zonas rurais, para justificar as medidas que com tanta freqüência aparecem nos forais <: ordenações da época. As leis cominavam penas aos proprietários que não mantivessem suas terras cultivadas. Advertidos, se não voltassem a produzir dentro de um certo tempo (6 meses, um ano ou dois anos) perderiam por completo o domínio sobre suas ter­ras, as quais passariam a pertencer a quem as cultivasse. Eis por que, às voltas com tais problemas, sem ter meios de resolvê-los no limitado espaço da península, não poderia interes­sar-se a Metrópole pela granjearia das novas terras cuja grandeza sóenchia de fascinação os olhos dos fidalgos. A nova classe dos ricos já era, a esse tempo, bastante esperta para não considerar fácil ne­gócio a aventurosa agricultura no além-mar. Surge, então, um produto milagroso - o açúcar - capaz de modificar os rumos da história. Os nossos ricos massapês provavam ser terras de primeira or­dem para as plantações da matéria-prima: a cana. Quanto à técni­ca, Madeira fornecê-la-ia. Indústria das mais rendosas em plena revolução dos preços, havia que subverter um princípio sagrado da colonização, instalando-se suas fábricas em território colonial e não metropolitano como as demais manufaturas. É que sua matéria­prima não fora feita para as travessias distantes, tinha de ser indus­trializada no próprio sítio onde se plantasse, sob pena de ressecar e se perder. "Pé no canavial e ponta na moenda", como se dizia. A experiência já havia indicado que se receios houvera, da parte da Metrópole, estes se dissipariam. A própria gemi nação da agricul­tura com a fábrica se fizera e continuaria a fazer-se com a submis­são da fábrica à agricultura, à terra, ao domínio absoluto e nobiliárquico da terra. Estando a propriedade nas mãos da fidalguia lusa nada havia que recear quanto às tendências emancipadoras da indústria. Caberia ao açúcar uma função excepcionalmente importante: O seu modo de produção permitiria a Portugal materializar, numa admirável síntese, a solução dos seus problemas funda­mentais. Viria o açúcar possibilitar a ocupação da terra em moldes inteiramente ao gosto feudal da época. A certeza de gran­des lucros bastaria para atrair a classe dos mercadores, cujos re­presentantes seriam intermediários e bancários dos nobres na empresa do açúcar. O afluxo dos metais preciosos aumentava. Expandiam-se o comércio e os mercados, os preços continuavam a elevar-se e o consumo de todos os artigos, inclusive do açúcar, aumentava progressivamente. Os navegadores portugueses viriam, igualmente, colher benefícios com a produção do produto milagroso, que chegou a ser o gênero predominante no comércio internacional. Foi o modo de produção do açúcar aqui implantado que con­formou nos primeiros tempos da colonização o regime de terras e, demais, toda a sociedade que então sobre ele se erguia. Modo de produção talvez sui-generis na história, pois que reunia elementos de dois regimes econômicos: o regime feudal da propriedade e o regime escravista do trabalho. A sesmaria encontrara no açúcar o seu destino econômico. Coube a Martin Afonso de Sousa, a quem a Metrópole confe­rira amplos poderes pelas três cartas régias de 20 de novembro de 1')30, lançar as bases, na colônia ainda desprezada, de uma nova política econômica que se apoiaria solidamente em duas institui­ções - a sesmaria e o engenho - as quais constituíram os pilares da antiga sociedade colonial. Desse modo, passaria a colônia de Vera Cruz a uma etapa mais adiantada de sua exploração. À fase puramente extrativa, em que não haviam medrado satisfatoriamente umas poucas feitorias esparsas, se sucederia uma fase de exploração melhor organizada, lendo por base a utilização extensiva da terra e o imediato aproveitamento de sua matéria-prima fundamental: a cana-de-açúcar. A substituição da riqueza extrativa desorganizada, sobre a qual não se poderia exercer um mínimo de controle fiscal e administra­tivo, pela produção organizada, tendo por centro a lavoura açucareira e seu aproveitamento industrial, caracterizou as origens do sistema agrário cujas marcas profundas até hoje permanecem nítidas em nossa história. Simultaneamente, acompanhando os primeiros passos da for­mação da propriedade, germinavam as sementes do Estado. "Quando D. João 111 dividiu sistematicamente o nosso territó­rio em latifúndios denominados capitanias, já existiam aqui capi­tães-mores nomeados para as capitanias do Brasil. O que se fez en­tão foi demarcar o solo, atribuir-lhes e declarar-lhes os respectivos direitos e deveres e os direitos, foros, tributos e cousas que tinham os colonos de pagar ao rei e aos donatários, passando-se a cada um deles a sua carta de doação, ou donataria com a suma dos poderes conferidos pela Coroa portuguesa autorizando-os a expedir forais, que eram uma espécie de contrato em virtude do qual os sesmeiros ou colonos se constituíam perpétuos tributários da Coroa ou dos seus donatários ou capitães-mores. A terra dividida em senhorios, dentro do senhorio do Estado, eis o esboço geral do sistema administrativo na primeira fase de nossa História." 17 Estruturavam-se, assim, tanto a propriedade como o Estado, sob os mesmos moldes e princípios que regiam os domínios feu­dais: grandes extensões territoriais entregues a senhores dotados de poderes absolutos sobre as pessoas e as coisas. Dentro desse sistema regulava-se a hierarquia, tanto pelo isola­mento das distâncias geográficas, quanto pela força das armas. E como a extensão das terras, da mesma maneira que a quantidade das armas, existiam muitas vezes em função do poder do dinheiro, não é exclusivamente o sangue, mas daí por diante, a posse da terra e da riqueza em geral que se torna o brasão da aristocracia rural. As duas instituições fundamentais, a sesmaria e o engenho, transformaram-se numa unidade econômica, numa unidade pro­dutora. A ela a Coroa dispensa todas as suas atenções e não são raras as provas de que o sistema aplicado ao Brasil, já experimentado com êxito em outras colônias portuguesas, para aqui se transplantava deliberadamente, em virtude de um plano preestabelecido. Nada há de acidental, por conseguinte, no fato de se iniciarem as atividades econômicas em nossa terra, sob o signo da grande propriedade, da grande lavoura. A intenção da Metrópole era realizar o que efetivamente foi cumprido: por nas mãos da fidalguia o monopólio de grandes tratos de terreno, enfeudá-los segundo as suas mais puras tradições jurídicas e, ao lado disso, associar na empresa os "homens grossos", os mais diletos filhos da classe burguesia enriquecida na mercância. Também não seria obra do acaso o ter-se enfeixado nas mãos de Martim Afonso poderes para doar terras e construir engenhos, missão dúplice que o alcaide-mor da Casa de Bragança soube muito bem cumprir. Registra a história que, aqui chegando, Martim Afonso de Sousa iniciava as doações, tendo concedido sesmarias na ilha da Guaíba a 111.10 Ramalho, em 1531, e a Braz Cubas em Piratininga, a 10 de outubro de 1532. "Até o ano de 1533 - escreve Pedro Taques - existiu em a vila de S. Vicente o seu fundador Martim Afonso de Sousa e nela esta­beleceu o primeiro engenho de açúcar que houve em todo o Brasil, com vocação de S. Jorge (depois com grande aumento de fábrica e escravatura passou a ser dos alemães Erasmo Esquert e Julião Visnat e se ficou chamando S. Jorge dos Erasmos." 18 Instituir sesmeiros e fazer engenhos são primazias que nos parecem continuar a caber a Martim Afonso, O engenho de Pedro Capico que já em 1526 teria existido em Pernambuco ainda não conta com melhor comprovação histórica além da conhecida referencia de Varnhagen aos direitos pagos naquela época, na Alfândega ­de Lisboa, por açúcar do Brasil. Quanto ao alvará de D. Manuel I, datado de 1516, mandando fornecer "machados e enxadas e todas as ferramentas às pessoas que fossem a povoar o Brasil e que procu­rassem e elegessem um homem prático e capaz de ir ao Brasil dar começo a um engenho de açúcar; que se lhe desse uma ajuda e tam­bém todo o cobre e ferro necessário e mais cousas para o fabrico do dito engenho" prova apenas quanto era antigo o propósito do Rei­no de realizar tal plano só mais tarde posto em ação pelo "homem prático" que foi Martim Monso. Tão prático se mostrou o Alcaide-Mor que, segundo se conta, tratou de associar-se a banqueiros flamengos e alemães para a ins­talação de boa parte dos engenhos aqui montados. "São devidas ao donatário de Pernambuco, Duarte Coelho, as informações mais antigas sobre os engenhos do Nordeste, que fo­ram os da sua capitania - escreve José Antônio Gonsalves de Melo, neto. 19 Os empreendimentos de Martim Monso, depois da ausência deste, encontraram continuador no Donatário de Pernambuco cujos esforços nos são revelados através de sua correspondência ao Rei de Portugal. "Dey ordem de se fazerem enjenhos daçuquares que de lá de Portugal trouxe contratados" e "cedo acabaremos hum enjenho mui grande e perfeito a amdo ordenan­do de começar outros" - dizia em carta de 27 de abril de 1542.20 Também em carta de 14 de abril de 1549, Duarte Coelho se re­feria a um engenho "de minha lavra", empenhando-se em fundar outros "que he cousa reall e que muito aumenta e acrescenta ho bem da terra."21 Eram passados já 15 anos desde que Martim Monso recebera as suas três cartas régias e a instalação de engenhos continuava a ser .) principal preocupação dos colonizadores, como se vê dos termos dessa mesma missiva de Duarte Coelho, datada de 1549: "Entre lodos os moradores e povoadores huns fazem engenho daçuquer porque são poderosos para isso, outros canaveaes e outros algodoaes e outros mantymentos que he a principall e mais necessarya cousa pera a terra... outros são mestres demjenhos e outros mestres daçuqueres, carpynteiros ferreiros oleiros e ofycyaes de formas e synos para os açuqueres... e os mando buscar a Portugall e a Galyza as Canareas as minhas custas e alguns que os que vem a fazer emjenhos trazem." 22 Outras atividades nasciam, é evidente, mas em torno das sesmarias transformadas em engenhos. A agricultura dos mantimen­tos, apesar de reconhecidamente a cousa principal e mais necessá­ria da terra, continuaria a ser, pelos séculos a fora, subordinada ao poder absorvente do açúcar, isto é, ao monopólio da terra, o que equivale a dizer, à monocultura. Noventa anos mais tarde, em 1639, ao tempo da dominação holandesa, van der Dussen, às voltas com a escassez de alimentos, clamava em seu relatório dirigido à Câmara dos XIX de Amsterdam: "Assim V. Exas. devem manter sempre os armazéns bem provi­dos de víveres sem fazer conta dos produtos da região - que não são suficientes e nos levariam à penúria - nem dos víveres que os comerciantes ou os particulares enviam para lá - porque estes são quase todos consumidos nos engenhos e vendidos pelo interior. De modo que, quando a miséria surge e se pensa em obter algo dos comerciantes, encontra-se tudo vazio, como nos aconteceu nos etremos que passamos."23 Este o quadro que permanecia durante todo o período colonial. A terra enfeudada açambarcava a energia humana disponível, apli­cando-a exclusivamente a serviço dos senhores daqui e dalém-mar. Obter o máximo de rendimento em riqueza e tributos era o obje­tivo da dominação, pouco se lhe dando atender às prementes ne­cessidades dos que, desaquinhoados, nada possuíam além de sua força de trabalho. Não que faltassem leis, de certo impotentes quando se tratava de contrariar o regime dos senhorios. A "mesquinha plantação de mandioca como a chamava, em 1807, Rodrigues de Brito, "que se dá em toda a qualidade de ter­ra, não caberia nos "raros e preciosos torrões de massapê, aos quais a natureza deu o privilégio de produzirem muito bom açúcar."24 Mas, como não somente os torrões de massapê e sim toda a terra próxima aos centros de consumo pertencia aos grandes senho­res, onde assentar as culturas de subsistência? Tornavam-se, portanto, inúteis as leis "tais como os Alvarás de 25 de fevereiro de 1688 e de 27 de fevereiro de 1701, modernamente instauradas pela Provisão de 28 de abril de 1767, que obrigam os lavradores do Recôncavo a plantar quinhentas covas de mandioca por cada escravo de serviço que empregarem, e aos negociantes de escravatura, a cultivar quanta baste para o gasto de seus navios."25 A verdade é que, desde suas origens, a sesmaria, o engenho, erguiam intransponível barreira à cultura dos mantimentos, a pe­quena e pouco rendosa agricultura de subsistência. Tomé de Sousa, nomeado Governador-Geral a 17 de dezem­bro de 1548, aqui viria encontrar cerca de 15 povoações cujas eco­nomias haviam atingido uma prosperidade relativ, produzindo e exportando portando para o Reino principalmente açúcar, algodão, tabaco, e matéria-prima extrativa. Os senhorios, ao se desenvolverem como entidades produtoras autônomas, ameaçavam a unidade da colô­nia com uma perigosa descentralização política. Os poderes confe­ridos ao Governador-Geral, nos termos do seu Regimento,correspondiam, de fato, como queria Varnhagen, a um plano mais amplo de colonização oficial. A centralização administrativa, o fortalecimento do Estado, tornara-se uma medida de proteção necessária à manutenção da propriedade senhorial, para cujo mister os donatários não se tinham mostrado bastante capazes. Capitães e senhores de engenho "para segurança e defesa de suas povoações seriam obrigados a construir nelas torres e casas fortes." Quem tivesse propriedades, casas, terras, águas ou navios, deveria prover-se de armas e munições dentro do prazo de um ano. Novo impulso deveria dar Tomé de Sousa à economia açucareira sendo uma das prescrições de seu Regimento dar melhores terras,ribeirinhas, as mais próximas das vilas, para que se fundassem engenhos de açúcar, com a obrigação, para os senhores desses engenhos, de moerem as canas dos lavradores da vizinhança que não os possuíssem. Elevava-se bem alto, nessa época, o prestígio econômico e tam­bém político dos senhores, a julgar pelo que confessava Duarte Coelho numa de suas cartas de 1549: - "antes vou contra ho povo qui contra os donos dos engenhos."26 Acontecimentos da maior importância para a evolução da economia brasileira assinalam-se, porém, a partir da época em que foi instalado, na Bahia, o Governo de Tomé de Sousa. "Para a Bahia e Pernambuco - nota Felisbello Freire (27) - afluía de preferência quem queria tirar da terra a renda por meio de es­cravos e do agregado. O proprietário territorial que vivia na capi­tal, no gozo da Corte, tinha quem desbravasse as florestas e ama­nhasse suas terras. No Rio e em São Paulo e Espírito Santo, princi­palmente no século 16, é o próprio lavrador quem, ao lado do seu escravo, vai fazer o trabalho agrícola." Revela o autor da História Territorial o caráter de classe que presidia as doações de terras desde o primeiro século da coloniza­ção: ''As concessões rio norte abrangiam em geral uma maior ex­tensão territorial do que no sul. Com exceção feita da donataria do visconde de Asseca, em Campos, as sesmarias no sul não excediam de três léguas de extensão, quando no norte havemos de encontrar concessões de 20, 50 e mais léguas. Basta assinalar as concessões de Garcia d'Avila e seus parentes que se estendiam da Bahia até o Piauí em uma extensão de 200 léguas. " (28) E quais os motivos que teriam determinado essa tremenda di­ferenciação quantitativa e qualitativa nas concessões de sesmarias? Responde Felisbello Freire: "A causa disto está na desigualdade social do colono que vinha para o Brasil... Essa diferença de colonização torna evidente que no norte o trabalho de povoamento encontrou óbices e deles o principal era as extensas concessões que foram feitas, colocando o membro do povo na posição de ser ou um simples arrendatário ou colonizar as zonas do sertão, cheias de índios e das maiores dificul­dades, perante as quais escasseavam os recursos do pobre." Vem daí o fato de ter surgido primeiramente no norte, e antes de findo o século 16, a renda agrária no seu típico sentido parasitá­rio, antiprogressista, e com ela uma casta separada da produção, por conseguinte supérflua e nociva aos interesses da sociedade. "Em geral os concessionários eram a nobreza da capital da ca­pitania, muitos deles órgãos e representantes do próprio governo. Aí estão D. Álvaro da Costa, Tomé de Sousa, Miguel de Moura e muitos outros, cujas sesmarias, pela sua grande extensão territorial, eram verdadeiras donatarias. Iniciou-se, então, o regime do arren­damento aos pequenos colonos. Ai está o procurador de D. Álvaro a substituir a doação por entre eles, criando-se assim a classe dos agregados agrícolas, que tanto contribuiu para a prosperidade do agricultor. Foi essa classe justamente que, entre nós, é a primeira forma do trabalho livre, na indústria agrícola, ao lado do trabalho escravo." (29) O preceito das Ordenações do Reino estabelecendo que as doa­ções de sesmarias deveriam ser limitadas à capacidade de exploração de cada concessionário, de modo que não se "dessem maiores terras a huma pessoa que as que razoavelmente parecer que poderão aproveitar", tornara-se prática ineficiente. O Regimento de Tomé de Sousa viera ratificar (e não introduzir, como afirma Cirne Lima),(30) em lei expressa aplicável a toda a Colônia, o "espírito latifundiário" que influenciava as datas de terras. Para os poderosos de então, tivessem o prestígio da nobreza ou do dinheiro, as concessões não encontrariam limites, além dos confina­dos pela força das armas nas lutas pela expropriação do indígena. Os favores da Metrópole inclinavam-se para os pretendentes que dispusessem de recursos bastantes para iniciar numa parte ape­nas dos senhorios uma exploração qualquer, contanto que erigissem fortificações e defesas para manter os seus domínios através de regiões incomensuráveis. A condição social do concessionário era, em última instância, o fator decisivo no regime das doações. Deve-se exclusivamente a isso, como já vimos, a desigualdade com que os pretendentes eram contemplados; aqui e ali, os grandes e pequenos sesmeiros, se é que a estes, favorecidos pelo mínimo legal de três ou quatro léguas de terras, cabe aquela denominação. Esclareça-se que as menores sesmarias eram, contudo, domínios imensos comparados com a capacidade de utilização de cada colonizador ou de cada família e longe se acham daquilo que razoavelmente estava ao alcance de um homem de medianas posses cultivar. A desigualdade na distribuição não iria, como nunca foi, ao ponto de extremar, de"um lado, imensos senhorios e, de outro lado, pequenos lotes, concedidos a pessoas de pequenos recursos, a homens do povo. Não chegaria a distribuição das sesmarias, por mais desigual e injusta que fosse, a se afastar dos limites da classe dos senhores. Apenas a injustiça consistia, para a época, em criar a desigualdade dentro da classe dominante, composta de nobres e ple­beus ricos ou remediados, os "homens bons" de qualidades ou de posses, únicos, por sua condição, a merecerem o dignificante título de senhores da terra. Não nos parece que tenha jamais passado pela mente da Corte portuguesa colocar a terra nas mãos dos homens do povo, o que sempre foi desaconselhado pelo espírito da época, além de se ter por antieconômico, no melhor conceito wakefieldiano corporifi­cado em doutrina, tempos depois. As leis, baixadas com o propósito de restringir as proporções dos territórios concedidos, responderiam aos insistentes abusos e às repetidas demandas nas quais levavam a melhor os senhores. mais poderosos, com prejuízo da marcha da colonização que se desejava acelerar. "Representando a câmara da capitania do Rio Grande do Nor­te, que ali existiam muitas pessoas, a quem se havia dado quanti­dade de terras de sesmarias, que não podiam cultivar, tendo algu­mas duas e três sesmarias de cinco e seis léguas em quadro, que vendiam e arrendavam, estando muitos moradores sem nenhuma terra onde pudessem acomodar suas criações, tendo servido à Coroa, e derramado o seu sangue, se ordenou por Carta Régia de 16 de março de 1682 ao governador Antonio de Souza de Menezes que 11.10 cumprindo as pessoas a quem foram repartidas as sesmarias com as obrigações das doações e emprazamentos, lhas tirasse, e as desse a quem as cultivasse, preferindo os moradores daquela capitania que a estavam povoando." (Arch. da Secretaria do Gov. da Bahia, Liv. 1° de Ord. Reg. N° 767; Arch. Da Fazenda Real, Liv. 2° de' Cartas, fI. 54.) (31) Numa tentativa para pôr termo aos excessos, várias cartas régias '" expediam, regulando o tamanho das sesmarias, entre as quais a de 27 de dezembro de 1695, que recomendava não se concedessem a cada morador mais de quatro léguas de comprimento e lima de largo, "que é o que comodamente pode povoar cada morador", segundo consta de um manuscrito atribuído ao mar­quês de Aguiar. (32) Bem se pode imaginar quão dificilmente eram aplicadas as restrições, que as leis sucessivamente impunham à esterilidade do sistema dominial imperante, visando, como é natural, ao acréscimo da produção e, conseqüentemente, dos tributos à Metrópole. Lembremo-nos de que o sistema mercantil, sucedendo e superando a economia natural, impulsionava a divisão social do traba­lho. Ao mesmo tempo, os senhores da terra, que se afastavam da produção, subdividiam a exploração de seus domínios em parcelas, entregando-as aos lavradores, destes usufruindo a renda agrária. Desse modo se golpeava o conteúdo por assim dizer metafísico da legislação sesmeira, a qual impunha, em tese, aos beneficiários, a obrigação de cultivar, por seus próprios recursos, as terras doadas. Acreditamos que, particularmente, em virtude do número crescentes dos arrendamentos, viria a Real Ordem de 27 de dezembro de 1695 inaugurar a cobrança de um tributo até então inexistente. Instituía-se, assim, "além da obrigação de pagar dízimo à ordem de Cristo, e as mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza e a bondade da terra. Não se conhecem, entretanto, provas de que tal determinação fosse cumprida antes do ano de 1777, quando Manoel da Cunha e Menezes, governador da Bahia, começou a cobrar, de foro, 1 $ e até 2 $ por nova sesmaria concedida. (33) O século 18 assinalaria a estratificação da propriedade sesmeira. Dentro do crescimento generalizado das atividades econômicas ru­rais e urbanas, fortalece-se ainda mais o monopólio da terra, refor­ça-se o poder absoluto dos grandes senhores, ao mesmo tempo em que as camadas menos providas da população encontram-se com dificuldades cada vez maiores. Já havia a Coroa percebido a neces­sidade de distinguir em sua desordem administrativa, de que Caio Prado nos dá uma excelente descrição, (34) os dois campos fundamen­tais em que se separavam as forças econômicas da Colônia. Con­sultaria melhor os interesses da Metrópole colocar-se ao lado dos senhores mais poderosos, respeitar-lhes os privilégios antes que contrariá-lo. Nem se compreenderia que fosse de outro modo, co­nhecidas as condições econômicas e políticas do Reino. À medida que se agravava o processo de desagregação da sociedade portuguesa, desenvolviam-se, igualmente, no Brasil Colonial, os antagonismos de classe. "De um lado, brasileiros proprietários que se consideram'" no­breza da terra, educados num regime de vida larga e de grandes gastos, desprezando o trabalho e a economia; doutro, o mascate, o imigrante enriquecido, formado numa rude escola de trabalho e parcimônia e que vem fazer sombra com seu dinheiro à posição social daqueles. A oposição ao negociante português - mascate, marinheiro, pé-de-chumbo, o epíteto com que o tratam varia - se generaliza, porque este, empolgando o comércio da colônia, o grosso como o de retalho, exclui dele o brasileiro, que vê cercearem-se-Ihe os meios de subsistência; o conflito assim se aprofunda e se esten­de.” (35) O que se passava no Brasil nada mais seria do que um aspecto particular da expansão mundial da economia burguesa, necessaria­mente oposta aos interesses da economia feudal. Aqui, o caráter contraditório do desenvolvimento burguês exprimia-se pelas relações de devedor e credor entre proprietários agrários e comerciantes. aqueles, já no correr do século 18, seriamente endividados em conseqüência dos efeitos de uma crise que atingia nossos princi­pais produtos de exportação. A esse tempo, acentuava-se a avidez tributária da Coroa que aqui vinha buscar, a todo transe, através do dízimo e dos subsídios .It' várias espécies, os meios para cobrir os extraordinários gastos a que levavam seus desmandos. Mas, nesse empenho de oprimir espoliar a Colônia, seriam de certo modo poupados os senhores poderosos, também menos atingidos pela crise, em prejuízo da desabrida corrida aos tributos. A aristocracia rural constituía, com poucas exceções, os pontos de' apoio da Metrópole em sua política de drásticas restrições ao progresso das manufaturas, na supressão dos ofícios, na destruição das fontes de riqueza que pudessem concorrer com a propriedade burguesa da Metrópole. Acentuava-se o monopólio reinol ao mesmo tempo em que aqui aumentava a concentração dos bens de pro­dução nas mãos de uma casta privilegiada. E aí está porque o pro­gresso da economia mercantil, em Portugal, refletia-se no Brasil, contraditoriamente, pelo fortalecimento da propriedade agrária feudal. A caça ao ouro, o desenfreado ciclo de mineração que foi a ati­vidade dominante no 3° século e que produzia conseqüências de­sastrosas para a nossa lavoura, causa de tantos conflitos entre os interesses econômicos nacionais e os dos colonizadores, não fora capaz de afetar a marcha avassaladora da grande propriedade lati­fundiária. Pelo contrário, resultava que, enquanto as atividades agrícolas em geral declinavam, enquanto empobrecia a lavoura e os ~pos ficavam abandonados, uma minoria de poderosos resis­tia às dificuldades e tirava partido de sua situação especial ainda mais se enriquecendo. Passadas as ilusões, esgotados os veios auríferos, desbaratadas as atividades mineradoras, a Colônia apresentava um quadro desolador, um incrível contraste que só o monopólio da terra po­deria explicar. Terras abandonadas por toda a parte e uma enorme massa humana privada de trabalho em face dos tremendos empe­cilhos legais que se antepunham à pequena e média propriedades. Das "Relações Parciais" mandadas levantar pelo Marquês de Lavradio em 1779, constam numerosas referências a terras devolutas nas imediações do Rio de Janeiro: "Todos os Certoens que medeiam entre os moradores de Saquarema da terra firma, e a Fazenda dos Religiosos do Carmo chamada Hipitanga, até Bacaxá estão por cultivar. Todos os Certoens que medeiam entre os moradores de Iraruama, a Fazenda chamada Parati, as duas Iguabas, a grande e a pequena, até o Rio Bacaxá estão por éulti­varo Todos os Certoens que medeiam entre as terras dos Indios da Aldeya de S. Pedro até a Alagoa de Inhutruayba, estão por culti­var. Todos estes Certoens estão por cultivar porque os moradores da Margem da Alagoa de Saquarema e Hypitinga não se alargam para o Centro do Certão das terras e o mesmo acontece com to­dos os mais de Iraruama, Fazenda de Parati, Iguabas e Aldeya dos Indios, que estes só se entranham pelos matos dentro, a fazerem Gamelas, e alguns taboado. Da parte de Bacaxá, Rio de Bacaxá e Alagoas de Inhutruayba acontece o mesmo porque todos moram nas testadas das terras." (36) Se isso acontecia nas proximidades dos núcleos mais populosos, fácil será imaginar o que se passava terras a dentro. A legislação de Sesmarias, traída em suas origens pelo mono­pólio feudal, revelava-se incapaz de servir às finalidades expressamente declinadas em seus textos: a disseminação das culturas e o povoamento da terra. "Os seus resultados - escreve Cirne Lima - nunca foram me­lhor resumidos do que na memória de Gonçalves Chaves, publicada sob o anonimato, ao tempo da Independência. Segundo a memória aludida, os resultados produzidos pela legislação das sesmarias foram os seguintes: 1° - Nossa população é quase nada, em com­paração com a imensidade do terreno que ocupamos há três sécu­Ios. 2° - As terras estão quase todas repartidas e poucas há a distri­buir que não estejam sujeitas à invasão dos índios. 3° - Os abarcadores possuem até 20 léguas de terreno e raras vezes consen­tem a alguma família estabelecer-se em alguma parte de suas terras e mesmo quando consentem, é sempre temporariamente e nunca por ajuste, que deixe ficar a família por alguns anos. 4° - Há muitas famílias pobres, vagando de lugar em lugar, segundo o favor e capricho dos proprietários das terras e sempre faltas de meios de obter algum terreno em que façam um estabelecimento permanente. 5° - Nossa agricultura está em o maior atraso e desalento, a que ela pode reduzir-se entre qualquer povo agrícola, ainda o menos avançado em nossa civilização. 37 De acordo com os preceitos que regulavam a concessão de sesmarias, estas eram concedidas sempre a título precário e sob três condições: medição, confirmação e cultura. A primeira dessas condições - a medição - era raramente observada, o que se explica pelo elevado custo dessa operação, assim como pela escassez de técnicos capazes de levá-la à prática; quanto às outras duas, e principalmen­te a última, não havia como justificar o seu descumprimento. A exigência de cultivar as terras doadas era inerente ao próprio instituto sesmeiro que para tal fora criado, pois, como já tivemos ocasião de dizer, ele representava uma restrição ao direito de propriedade ao considerar reversível ao patrimônio público a terra que não fosse utilizada. Para eliminar quaisquer dúvidas, o conceito foi reafirmado pelo Alvará de 5 de janeiro de 1785, que declarou ser a cultura a condição essencialíssima na concessão de sesmarias. José Augusto Gomes de Menezes 38 dá-nos uma idéia resumida dos fatos que teriam levado a Coroa a pôr um fim ao estado de coisas reinante: "Das faltas de medições nasceu a maior desordem, porque ciente ou incientemente foram os posseiros entrando, e quando mais des­cobertas as regiões, foram melhor conhecidas as localidades, gran­des estabelecimentos existiam já nas terras concedidas. E por essa mesma ignorância que tinha muitas vezes o posseiro do que com­preendia o concedido, novas concessões de sesmarias se verificaram dentro das já concedidas, e quando o tempo mostrou o erro, os estabelecimentos estavam já feitos. Desta marcha das coisas nas­ceram mais demandas do que se deram sesmarias no Brasil; e se excetuarmos um ou outro sesmeiro que mediu e realizou toda a terra que lhe fora dada, grande parte deixou cair as sesmarias em comisso, e o maior número contentou-se com cultivar uma parte delas. Já tarde o Sr. D. João VI pretendeu melhorar este estado de coisas e por seu Alvará de 25 de janeiro de 1809 ordenou que a Mesa do Desembargo do Paço não mandasse passar carta de concessão das sesmaria ou de confirmação das que concedessem os governa­dores e capitães generais, sem sentença passada em julgado. (...) As ,kmandas, pois, à proporção que a população ia crescendo e se movendo para o interior, recresceram e chegaram as coisas ao pon­to que em 1822 se julgasse melhor não fazer mais concessões de terras por título de sesmaria, porque a experiência havia mostrado que produziam elas mais desordens entre os cultivadores e punham cada vez mais duvidosa a propriedade territorial." A Resolução de 17 de julho de 1822 extinguindo o regime de sesmarias no Brasil foi o reconhecimento de uma situação insupor­tável, cujas conseqüências poderiam de tal modo agravar-se a pon­to de constituirem uma ameaça à propriedade latifundiária. Referimo-nos a um acontecimento da maior significação para a história do monopólio da terra do Brasil: a ocupação, em escala cada vez maior, das terras não cultivadas ou devolutas, por grandes contingentes da população rural. Foram esses contingentes de posseiros ou intrusos, como pas­savam a ser chamados, que apressaram a decadência da instituição das sesmarias, obrigando as autoridades do Brasil Colonial a to­marem outro caminho para acautelar e defender os privilégios da propriedade latifundiária. Com eles surge nova fase da vida agrária brasileira, pois a sua luta por novas formas de apropriação da terra foi que tornou pos­sível, mais tarde, o desenvolvimento de dois novos tipos menores de propriedade rural: a propriedade capitalista e a propriedade camponesa. Fonte: GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1968. O texto "O regime econômico colonial: feudalismo ou capitalismo?" corresponde ao capítulo 11 da 4" edição. 1997, pp. 21-40.

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