sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Para apressar a remoção de milhares de famílias da região, Estado pode ter cometido crime contra a humanidade

Por Eduardo Sales de Lima

Em menos de duas horas o “barraco” de Maria Auxiliadora estava debaixo d'água. Os remédios de seu marido estragavam dentro do quarto alagado. Do lado de fora, desespero. Crianças se afogando e mães gritando por socorro. Em apenas 24 horas, no dia 8, caiu sobre São Paulo (SP) o maior volume de água registrado desde 1999, 77,4 mm (cada milímetro equivale a um litro de água por metro quadrado).
“Ouvi mães gritando por socorro, aí eu caí para dentro da água. O que deu para salvar nós salvamos. Mas teve família que perdeu tudo, como mantimentos, geladeira, televisão. Isso na minha rua que é um local mais alto. E logo imaginei que na baixada estaria pior. Chegando lá a água estava dando quase no pescoço”, relata o líder comunitário da Chácara Três Meninas, Cristovão de Oliveira, que mora há mais de trinta anos na região.
Nas margens do rio Tietê, a natureza era mais feroz. Na “baixada”, como disse Cristovão, as casas não-terminadas de alvenaria e os barracos de madeiras beiram o rio. É lá que vive Maria Auxiliadora. A chuva que caiu sobre a casa dela também estava presente em diversas áreas da cidade São Paulo. Mas ela é pobre, vive na Chácara Três Meninas, periferia da capital paulista, numa região de várzea do rio Tietê; uma ocupação irregular. Péssima combinação.
Como a água subiu “até o pescoço” no seu barraco, Maria, seu marido, sua filha e seus seis netos foram obrigados a se alojar numa escola. Dois dias depois retornaram para casa. Das seis famílias que sobreviviam no pequeno terreno de 2 metros de largura por 8 de comprimento, cinco abandonaram o local. “Só fiquei eu, meu marido, minha filha e meus netos”, conta Maria Auxiliadora.
Crime
Tudo isso ocorreu por causa da “natureza”, mas humana e criminosa. O conjunto de informações indica um ato contra a vida. Crianças morreram, famílias foram desalojadas, doenças (sobretudo leptospirose) foram disseminadas; tudo isso aconteceu por uma opção. As seis comportas da barragem da Penha, reservatório de água próximo da região, foram completamente fechadas naquele 8 de dezembro. Somente dois dias depois, todas as comportas foram abertas. O próprio engenheiro responsável pela barragem da Penha afirmou à repórter Fabiana Uchinaka, do portal Uol Notícias, que optou-se por alagar esses bairros da zona leste ao invés da marginal. A barragem da Penha funciona sob a direção da Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), estatal paulista. Ele disse que, se não tivesse fechado as comportas, teria alagado as marginais e toda a cidade de São Paulo.
O engenheiro explicou à repórter que cada barragem em São Paulo, das quais perfilam a Móvel, a da Penha, a de Mogi das Cruzes e a de Ponte Nova, é responsável apenas por administrar o fluxo de água do local e não sabe o que acontece nos outros pontos. Ele acredita que as comportas foram abertas nas barragens de cima, em Mogi, e isso foi preponderante no alagamento da região da zona leste. A área que mais sofreu com o alagamento fica justamente entre a barragem de Mogi das Cruzes, que liberou suas águas; e da Penha, que as conteve.
Parque “Afogados”
Formou-se um imenso piscinão natural. O alagamento reforçaria a ideia de que aquela população é "invasora" de área de várzea e deveria ser despejada para que não impeçam a construção do Parque Linear da Várzea do Rio Tietê. Projeto do governador José Serra (PSDB) orçado em R$ 1,7 bilhão e que deve ser inaugurado até a Copa de 2014.
Segundo um técnico, ex-funcionário da Sabesp que preferiu o anonimato, nos períodos de intensas cheias, existe a condição de reverter as cheias do Pinheiros e Tietê para a represa Billings. “Existe uma caixa preta muito grande nessa história toda, essas informações não são transparentes, não dá para saber se houve uma opção de classe”, afirma.
Essa região da zona leste que engloba vilas como Pantanal e Chácara Três Meninas ficou, mesmo após o fim das chuvas, debaixo d'água por doze dias. “Não tinha policiamento, bombeiros; pessoas estavam saqueando as escolas. Nenhuma bomba foi lá para drenar”, relata o deputado estadual Raul Marcelo (Psol), que visitou, no dia 17, o Jardim do Pantanal, uma das localidades mais atingidas pelo alagamento.
“Eu não estou fazendo uma relação, estou fazendo uma afirmação: tem tudo a ver”, destaca o parlamentar, relacionando a construção do parque com a remoção de cerca de 10 mil famílias por meio da engenharia hidráulica e social. “O lugar da remoção é justamente ali, no Pantanal”, conclui. Para ele, o parque linear é importante, mas é necessário dar condições para que as famílias saiam de forma digna. “Com R$ 5 mil eles vão comprar no máximo madeiras para construir outro barraco”, ironiza Marcelo, se referindo ao valor do cheque-despejo oferecido pela prefeitura paulistana.
Um pouco mais reticente, outro deputado estadual que visitou a região, Adriano Diogo (PT), observa que aquele local “era exatamente a região que eles queriam despejar”. “Não dá para afirmar que tem uma intencionalidade, não tem uma prova cabal, mas é uma estranha coincidência”, afirma.
“Por que que ele [Serra] não lançou um projeto de habitação primeiro. Ele quis fazer sua propaganda para ser presidente da república e acabou ferrando o povo. Ele sabia que fechando a comporta da Penha e abrindo a comporta de Mogi das Cruzes, ele mudaria essa bacia”, critica o líder comunitário Cristovão de Oliveira.
“Todo mundo é a favor do parque, só que tem que pensar na habitação. Isso foi um ato criminoso. O poder público, a defensoria pública e o Ministério Público deveriam responsabilizar o governo por todas as perdas de vidas que tivemos nesses locais. Houve duas mortes de crianças por afogamento no Jardim Romano [onde fica o Jardim Pantanal]”, afirma Cristovão.
Esgoto
Para além das perdas materiais, Maria Auxiliadora se diz preocupada com os netos, repletos de feridas pelo corpo. “O médico falou que era água da chuva; estão tomando antibiótico”, conta.
Coisas de natureza incompetente. A estação de tratamento de esgoto de São Miguel Paulista também foi construído numa área de várzea, sem nenhum tipo de proteção. A água subiu, entrou na estação e ela deixou de funcionar. Por consequência, o esgoto foi jogado no rio e, como a barragem estava fechava, foi lançado diretamente nas comunidades da várzea. “A água que alagou o Jardim Pantanal teve duas vezes mais coliformes fecais que o próprio rio Tietê”, lembra Raul Marcelo. No dia 17, a estação foi reativada.
De acordo com o ex-funcionário da Sabesp, isso também é culpa de uma estagnação na infra-estrutura de saneamento.“Há um atraso estrutural no sistema de coleta e tratamento de esgoto e as instituições técnicas da área não têm uma sistemática de controle, de regulação, com controle dos problemas, das falhas”, diz.
Os deputados que visitaram as regiões alagadas da zona leste da cidade pretendem denunciar o caso, junto com a situação da estação de tratamento de esgoto, aos Ministérios Públicos Estadual e Federal.

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