terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Os infernos de Obama


Por José Arbex Jr.
Sem acordo sobre Honduras: Arturo Valenzuela, o novo secretário assistente do Departamento de Estado dos Estados Unidos para o hemisfério ocidental, visitou o Brasil em 14 de dezembro, com o objetivo de forçar um acordo sobre o futuro de Honduras. Queria que o governo brasileiro endossasse a farsa eleitoral, em 29 de novembro, que conduziu Porfírio Lobo à presidência (segundo informações não confirmadas, Lobo é associado ao grupo católico fundamentalista Opus Dei). Ou que, pelo menos, emitisse uma declaração para atenuar sua condenação total do processo. Valenzuela saiu de mãos abanando. Marco Aurélio García, assessor para a política externa do presidente Luís Inácio Lula da Silva, tentou atenuar as discrepâncias em suas declarações à imprensa, mas reiterou a posição brasileira.
Sinal dos tempos: historicamente, Honduras sempre foi a típica “república de bananas”. Está sob intervenção militar dos Estados Unidos desde 1904, quando marines foram convocados para esmagar uma revolta de camponeses contra o regime de superexploração da mão de obra imposto pela sinistramente famosa United Fruit e outras empresas que exploravam cultivos tropicais. Ao longo da Guerra Fria, e em particular nos anos 80, Honduras era conhecida como o “porta-aviões não naufragável dos Estados Unidos”, pois o seu território era livremente utilizado pela CIA e por militares ianques para combater movimentos “inimigos”, como o governo sandinista da Nicarágua e a luta revolucionária em El Salvador. Hoje, Washington mal consegue articular um golpe de Estado em Honduras. É um fiasco.
A “ala combativa” dos governos latino-americanos (Venezuela, Bolívia, Argentina, Paraguai, Equador, Nicarágua e, claro, Cuba) condenou inequivocamente o golpe, ao passo que os governos vassalos (sobretudo, Colômbia e México) se calaram, para em seguida reconhecerem o resultado da farsa eleitoral. A posição do Brasil, nesse contexto, tornou-se muito importante para Washington. A manifestação favorável de Brasília poderia compensar a condenação pela maioria esmagadora dos governos do hemisfério ocidental. Mas Lula, ao menos até o momento, não cedeu.
E os atritos com Valenzuela não se limitaram a Honduras. O emissário de Barack Obama foi obrigado a ouvir de García que o Brasil tampouco aprova o recém-assinado acordo de Washington com Bogotá, que permite aos Estados Unidos manter centenas de soldados e civis em até dez bases militares daquele país, pelos próximos dez anos. No auge da “crise das bases”, Lula pediu a Obama que explicasse o acordo numa reunião de cúpula da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Obama não aceitou. Finalmente, outro ponto da conversa girou em torno da visita ao Brasil, em novembro, do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. A recepção oferecida por Lula produziu ataques histéricos por parte da secretária de estado Hillary Clinton.
Independentemente das razões que levam o governo Lula a assumir uma posição de resistência ao imperialismo estadunidense, quando já cedeu tantas vezes ao longo dos últimos seis anos, o fato é que Washington enfrenta dificuldades inéditas para manter a lógica da Doutrina Monroe. Desde 1823, quando o presidente James Monroe anunciou a sua doutrina, o hemisfério sul é tido como uma espécie de “quintal” dos Estados Unidos, sua “área de influência”, fora do alcance das outras potências colonialistas. O único país que desafiou a doutrina e conseguiu manter a sua soberania foi a pequena ilha cubana (e por isso não é perdoada por Washington). Até anteontem, a hegemonia estadunidense absoluta. Há menos de duas décadas, a Casa Branca pôde ordenar a invasão de Granada (1983) e a do Panamá (1989) sem encontrar qualquer resistência. Hoje, até mesmo o governo Lula, saudado por Barack Obama como alguém “da turma”, enfrenta com palavras e atos a petulância ianque.
A Doutrina Monroe agoniza, e este é um dado central, especialmente numa conjuntura mundial em que a disputa pelo controle das reservas de petróleo, minérios, água e biodiversidade tende a ser um marco determinante do século 21. A agonia da Doutrina Monroe, com o consequente alargamento das fissuras entre governos latino-americanos e Washington, abre a possibilidade do desenvolvimento do movimento de massas, em escala jamais vista (como já foi anunciado pelo papel de liderança dos povos originários). Além disso, o enfraquecimento da hegemonia estadunidense na região abre o espaço para o surgimento de alianças e diálogos até há pouco impensáveis (por exemplo: o diálogo entre Venezuela e Irã, ou mesmo a relativa autonomia com que o Brasil recebeu o presidente iraniano).
Mas afirmar que a Doutrina Monroe agoniza não significa, de modo algum, que ela deixou de existir, ou que seus estertores serão breves. Ao contrário. A agonia do Império Romano durou dois séculos, pelo menos, e produziu muitas mortes e sofrimento. Washington não entregará facilmente a rapadura, e tanto o acordo com a Colômbia, a “ressurreição” da Quarta Frota, também denunciada por Lula, e o próprio golpe em Honduras são claros sinais disso.
Sob Obama, a política imperialista dos Estados Unidos mantém toda a agressividade exibida sob George Bush. A diferença é o sorriso na cara. Obama acaba de ser agraciado com o Nobel da Paz, uma indicação muito forte de que os governantes europeus tentam reunificar a “sagrada aliança” com os Estados Unidos, única potência capaz, hoje, de assegurar as condições minimamente necessárias ao funcionamento do capitalismo. A permanência da Otan, uma aliança militar que, formalmente, perdeu sua função com o fim da Guerra Fria, é a expressão militar da “sagrada aliança” contemporânea.
Obama quer comprometer ainda mais as forças da Otan – isto é, das potências europeias centrais, incluindo Alemanha, França e Ingalterra - no Afeganistão, como usa a Otan como ponta de lança contra a Rússia, encarada pela Casa Branca como grande rival pelo controle da Eurásia. As tentativas de incorporar a Ucrânia e a Geórgia, bem como os acordos militares com a Polônia e a ofensiva contra o Irã são expressões dessa política, que, aliás, não é nova: foi anunciada, em 1992, por Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de segurança nacional no governo Jimmy Carter, no livro “The Grande Chessboard – American Primacy and its Geoestrategic Imperatives”.
Mas a reviravolta na América Latina não estava nos planos de ninguém. Nem mesmo Brzezinski, com toda a sua inegável capacidade de estrategista, pôde detectar esse “pequeno imprevisto”: os povos da América Latina, incluindo a pequena Honduras, são capazes de dizer não. Trata-se de uma dessas peças que, de vez em quando, a luta de classes prega nas potências hegemônicas, permitindo que o improvável se torne possível.
Obama já enfrenta o inferno no Afeganistão.
Ele que se cuide na América Latina.
José Arbex Jr. é jornalista.

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