por Steve Ellner
Resumo: Duas tradições marxistas contracenam no debate interno do movimento liderado por Hugo Chávez. Os "realistas" defendem políticas práticas para aumentar a produção, enquanto os "otimistas culturais" estão interessados no combate aos valores capitalistas. As discussões sobre diferenças salariais em fábricas autogeridas pelos trabalhadores e em cooperativas lembram a distinção marxista entre "a cada um conforme seu trabalho" (preferida pelos realistas) e "a cada um conforme sua necessidade" (defendida pelos otimistas culturais). Enquanto Chávez encoraja cooperativas e conselhos comunitários a descartar a "busca do lucro" (abordagem do otimismo cultural), os realistas enfatizam controles estatais para evitar o mau uso de recursos. A bandeira cultural-otimista da justiça social é mais adequada para assegurar apoio ativo dos setores desprivilegiados. Os realistas preferem encarar a dura realidade de que o socialismo não tem o bode expiatório da pobreza para estimular a produtividade dos trabalhadores, e portanto requer mecanismos alternativos. Apesar de trotskistas e outros encararem os realistas como defensores dos interesses de classe dos privilegiados, uma síntese entre as duas posições é necessária e possível.
As estratégias socioeconômicas conflitantes que se originaram do governo venezuelano de Hugo Chávez em seu esforço para estabelecer o socialismo refletem uma grande divisão no pensamento e movimentos de esquerda ao redor do mundo, que remonta a Marx.
O debate em curso centra-se nas motivações básicas daqueles que vivem e trabalham sob o socialismo, e nas realizações e objetivos fundamentais do sistema. Ainda que discussões informais dessas questões floresçam na Venezuela, o governo e o movimento chavistas falharam em promover o debate formal ou em estabelecer mecanismos que canalizem opiniões das bases até os que definem as políticas (Ellner, 2005, 186).
Devido à mentalidade eclética dos líderes chavistas e às novidades de recentes eventos, a experiência venezuelana pode contribuir consideravelmente para a discussão geral sobre o socialismo, o qual adquiriu especial importância desde a dissolução da União Soviética em 1991.
Uma das duas posições opostas neste debate que dura um século e meio pode ser chamada de otimismo cultural, e é associada com o conceito de Che Guevara sobre o "Novo Homem Socialista". Os defensores deste ponto de vista argumentam que as condições subjetivas estão maduras para mudanças de maior alcance e que o povo em geral está pronto para participar de relações socialistas e ultrapassar aspirações materialistas.
Uma expressão mais extrema desta posição é a asserção idealista de que a igualdade absoluta sob o socialismo é factível no futuro próximo [1] . O outro pólo deste contraste pode ser chamado de realismo. Os realistas enfatizam a luta para aumentar a produção (ao contrário de mudanças culturais) e políticas pró-trabalhadores tais como incentivos materiais e a manutenção, pelo menos por ora, de certas práticas associadas ao capitalismo para atingir este objetivo. Após quase um século de revoluções socialistas pelo mundo, as falhas de ambas as abordagens em sua forma pura poderia sugerir a necessidade de evitar posições dogmáticas e focar a discussão nos problemas práticos que surgiram, assim como nos imperativos políticos, que têm também se mostrado críticos.
Esses termos para a discussão serviriam como um corretivo ao que David Laibman chamou "receituário utópico" e que vários outros associados a Science & Society rotularam de "projetos de castelos no ar" (Laibman, 20021, 68; 200b,118; Science & Society, 1992, 8). De fato, muitas das discussões nestas bases se apoiaram em suposições sobre a natureza humana e carece de dados empíricos relativos à factibilidade das estratégias e mudanças de longo prazo que são propostas (ver Laibman, 2002b, 117).
As duas tendências encontram expressão nos escritos de Marx. O Marx dos primeiros tempos dedicou atenção considerável à alienação pessoal, e enxergou a luta política como meio para superá-la, em concordância com a tradição otimista cultural. O Marx mais velho, apesar de não ter abandonado suas preocupações da juventude, estudou as leis imutáveis da economia capitalista e concluiu que as contradições internas do sistema levariam inevitavelmente à sua destruição e à ascensão do socialismo [2] . O realismo de Marx foi também posto em evidência em suas polêmicas contra anarquistas e socialistas utópicos, nas quais ele os criticou por proporem esquemas grandiosos ao mesmo tempo em que falhavam em confrontar a realidade, levando em consideração as principais forças em cena. Imbuído do compromisso com a pesquisa científica, Marx pouco escreveu sobre os detalhes de como o comunismo funcionaria já que, como um sistema para o futuro distante, sua natureza exata não poderia ser prevista (Science and Society, 1992, 6-7; Laibman, 1992, 62).
A defesa da abordagem "realista" à construção socialista baseia-se no axioma marxista de que a remuneração dos trabalhadores sob o socialismo é baseada no princípio "a cada um segundo seu trabalho". A fórmula reforça a suposição dos realistas de que sob o socialismo os trabalhadores continuam a ser em grande parte motivados materialmente. Não obstante, tanto Marx como Lênin encararam essa interpretação como estando muito aquém da completa ruptura com valores burgueses e anteviram que o sistema socialista deveria implementar medidas que pavimentassem o caminho para o ideal comunista de "a cada um conforme suas necessidades", uma frase originalmente cunhada para a distribuição da riqueza não sob o socialismo mas sob o comunismo.
A referência de Chávez ao lema é um indicativo do conteúdo cultural-otimista da maior parte de seu discurso [3] . Alguns escritores pró-Chavez que enfatizam os objetivos culturais do socialismo venezuelano também aderem ao ponto de vista de que a construção do socialismo desde o seu princípio deve promover valores comunistas, tais como distribuição de acordo com as necessidades e não com a contribuição (bem como a eliminação da divisão entre trabalho intelectual e manual) [4] .
A tensão entre os realistas, que preferem, sob o socialismo, políticas que assegurem a viabilidade do sistema, e os otimistas culturais, que se focam em valores e em preocupações humanitárias, tem-se manifestado freqüentemente em diferentes cenários revolucionários. Assim, nos primeiros anos da revolução cubana, a disputa acerca de incentivos morais (defendidos pelo Che) e incentivos materiais (apoiados por Carlos Rafael Rodríguez, do antigo partido comunista pró-Moscou) foram parte de uma discussão mais ampla dentro do governo que englobou política econômica em geral e mesmo política externa [5] .
A suposição de que sob um estilo popular de socialismo o povo em geral iria com o tempo assimilar completamente valores novos provou-se totalmente otimista no caso de Cuba. Depois de quase cinqüenta anos de socialismo, estudos sociológicos indicam ambivalências, incertezas e, em geral, um quadro confuso das prioridades materiais do povo cubano (particularmente as gerações pós-1958), uma avaliação reforçada pelo atual debate relativamente aberto na nação sobre o tema de incentivos materiais (Fernandes, 2003, 360, 370-373;Dore, 2007).
DESAFIOS PRÁTICOS E IDEOLÓGICOS À TRANSFORMAÇÃO RADICAL NA VENEZUELA Cooperativas, conselhos comunitários e companhias geridas por trabalhadores
O movimento encabeçado por Hugo Chávez na Venezuela é o último exemplo de colisão entre as duas abordagens, o que inclui shibbolets (idiossincrasias culturais) e suposições relativas à viabilidade e ritmo da mudança cultural, mas que falhou em analisar formalmente as experiências concretas e os problemas práticos que enfrentou (Wilpert, 2007, 233). Assim, a partir de 2004 o governo injetou grandes somas de dinheiro originadas das inesperadas receitas do petróleo para encorajar a formação de mais de 100.000 cooperativas operárias, muitas das quais constituídas de pessoas pobres com pouca experiência na economia formal [6] .
O presidente Chávez instou os membros das cooperativas a descartar a "motivação do lucro" e mostrar solidariedade com outros trabalhadores e com as comunidades ao redor (abordagem cultural-otimista), como parte da mudança nacional em direção a um novo modelo que ele chamou de "socialismo do século XXI". O resultado, todavia, esteve muito aquém das expectativas.
A esmagadora maioria das cooperativas consistiam de cerca de cinco membros (o mínimo requerido pela lei), fortemente ligados por laços familiares. Além disso, alguns presidentes de cooperativas embolsaram o capital inicial fornecido pelo estado ou os adiantamentos contratuais recebidos do setor público. Outras cooperativas foram apenas fronts de empresas existentes que procuraram tirar vantagens dos benefícios especiais garantidos pelo governo, como isenções fiscais e tratamento preferencial na concessão de contratos.
Na realidade, as falhas foram tão generalizadas que muitos líderes pró-governo, mesmo os na corrente esquerdista do movimento chavista que foram os principais defensores da transformação socioeconômica, descartaram a experiência toda como fracassada (Ellner, 2008, 138-174). O fato, todavia, é que milhares de cooperativas sobreviveram ao teste do tempo e levaram adiante o trabalho comunitário gratuito (como é sua obrigação legal), mesmo que muitas de suas práticas não se conformem à visão que tem um revolucionário dos valores defendidos pelos otimistas culturais (Lucena, 2007).
A iniciativa de tantos venezuelanos em estabelecer cooperativas, e seus esforços para mantê-las, reflete o entusiasmo dos setores não privilegiados pelas mudanças reais estimuladas pelos ardentes discurso e programas chavistas. Os 20 mil conselhos comunitários que brotaram da legislação estabelecida em 2006, e que eclipsaram em boa parte as cooperativas, também geraram expectativas e retórica favorável à cooperação e solidariedade, que são o centro da abordagem cultural-otimista. Eles enfrentam problemas similares com relação à ineficiência e ao mau uso de fundos, apesar de indubitavelmente em menor nível.
Os conselhos comunitários escolhem e desenvolvem projetos em suas comunidades, os quais recebem financiamento de agências estatais em nível nacional, estadual e municipal. Assembléias locais tomam todas as decisões importantes e elegem os líderes do conselho comunitário, os quais têm todos a mesma hierarquia. Como as cooperativas, os conselhos comunitários forneceram a um grande número de venezuelanos desprivilegiados capacitação e senso de fortalecimento. Eles também facilitaram a mobilização política, que tem sido essencial à sobrevivência política do governo Chávez em face de um inimigo agressivo com imensos recursos (Ellner, 2009).
O Movimento chavista também falhou na analise crítica e sistemática das experiências das indústrias autogeridas. O governo deu impulso ao sistema nacionalizando diversas empresas de porte médio que foram tomadas pelos trabalhadores na oposição à greve patronal nacional insurrecional armada em 2002-2003. Ao mesmo tempo, Chávez colocou na presidência da companhia alumineira ALCASA o líder esquerdista veterano Carlos Lanz, com o objetivo expresso de promover a participação dos trabalhadores na tomada de decisões.
No ano seguinte, entretanto, a tese dos realistas de que formas experimentais de autogestão não deveriam ser aplicadas em setores estratégicos da economia acabou ganhando aceitação geral na burocracia estatal, na ausência do debate público. Em conseqüência, estruturas de participação dos trabalhadores que surgiram na refinaria El Palito durante o lockout de 2002-2003 foram desmontadas, ao mesmo tempo que Lanz foi substituído no comando da ALCASA.
Além disso, os burocratas estatais começaram a negar a empresas controladas por trabalhadores e a cooperativas tratamento preferencial na concessão de contratos, na linha da abordagem realista. A discussão interna negligenciou o contraste entre os tipos de participação dos trabalhadores nas duas principais empresas que o governo nacionalizou em 2005: a papeleira INVEPAL e a companhia de válvulas INVEVAL. Na primeira, os trabalhadores pertencem a uma cooperativa que possui 49% das ações da empresa mas mantêm degraus salariais (abordagem realista) e até permitem contratação de trabalho assalariado. Na segunda, os trabalhadores renunciaram à posse das ações e estabeleceram um "conselho de fábrica" no qual todos os trabalhadores participam na tomada das decisões; utilizam-se pagamentos iguais para evitar diferenciações e tensões que podem interferir na democracia trabalhista (Montilla, 2008).
Dados esses resultados diferentes, uma discussão ampla seria urgente, não apenas para recuperar os experimentos das cooperativas e empresas autogeridas mas também para superar erros em programas como os conselhos comunitários, que enfrentam desafios semelhantes. A freqüência de eleições e referendos durante a presidência de Chávez, bem como a iminência de distúrbios promovidos pela oposição, distraíram a atenção deste tipo de análise dentro do movimento chavista. O recentemente criado partido chavista, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), está mais comprometido com o debate interno que seu predecessor, o Movimento Quinta República (MVR).
Não obstante, o PSUV também falhou na reflexão crítica das experiências das cooperativas, dos conselhos comunitários e dos esquemas de autogestão, apesar das grandes somas de dinheiro a eles alocadas e de sua importância no discurso chavista. Uma razão para a relutância dos lideres chavistas em promover o debate interno foi o desejo de evitar desvios em seus esforços correntes para manter a unidade orgânica de seu movimento, o que o coloca em posição vantajosa em relação aos partidos antichavistas agrupados numa desconfortável aliança.
A discussão política formal na Venezuela passou por cima de problemas concretos e complexos que são essenciais para a sobrevivência e sucesso das cooperativas e conselhos comunitários, e que têm implicações para o debate entre otimistas culturais e realistas. Uma dessas questões são as diferenças salariais.
Membros das maiores cooperativas (como o "Núcleo Endógeno Fabrício Ojeda" em Caracas) geralmente recebem salários iguais independentemente das habilidades profissionais e técnicas, em conformidade com a abordagem cultural-otimista. Em alguns casos, somente no final do ano a distribuição de dividendos entre os membros da cooperativa leva em conta o número de dias que cada um trabalhou. Não está claro se esse arranjo contribui para o absenteísmo e para a falta de motivação (Piñeiro Harnecker, 2007, 34).
O tema da diferenciação salarial em cooperativas é parte da questão mais ampla da igualdade social – uma popular bandeira chavista. A falha em distinguir entre igualdade relativa (na qual diferenças de renda são substancialmente reduzidas) e igualdade absoluta (que corresponde ao princípio marxista "a cada um conforme sua necessidade") são o fundamento das reservas de muitos chavistas da classe média. Especificamente, eles se opõem à retórica de Chávez sobre a necessidade de descartar valores materialistas assim como a certas práticas estatais nas quais pessoas pobres são isentadas da obrigação de pagar por bens e serviços como eletricidade.
Outra questão envolve os mecanismos para assegurar que as cooperativas paguem os empréstimos públicos. Algumas agências estatais criaram fundos especiais conhecidos como "Fundos de Garantias Recíprocas", que virtualmente eliminaram o requisito de garantias pelas cooperativas que solicitam créditos (abordagem cultural-otimista). Desde então, a agência supervisora SUNACOOP tem processado legalmente várias centenas de cooperativas acusadas de desvio de fundos públicos (abordagem realista), mas até o momento não foram tomadas quaisquer medidas exemplares (Ellner, 2007, 24). Prisão, confisco de propriedades ou mesmo multas pesadas não são prováveis, especialmente no caso de membros de cooperativas de baixo rendimento.
A questão da corrupção nos procedimentos dividiu os otimistas culturais e os realistas. Os primeiros, com sua fé na boa vontade e na capacidade dos setores não privilegiados, promovem as "controladorias sociais", que são comitês rudimentares estabelecidos por iniciativa popular para supervisionar instituições públicas, inclusive os conselhos comunitários (Giordani, 2008, 139). Em contraste, os realistas, que apóiam em maior medida as instituições estabelecidas, defendem que o estado processe os acusados de deslizes. Apesar de questões espinhosas como estas e de áreas problemáticas como o fracasso de dezenas de milhares de cooperativas, os otimistas culturais, e o próprio Chávez, continuam a enfatizar a suprema importância da igualdade social e da solidariedade. Ao mesmo tempo argumentam que esses objetivos, e não os benefícios materiais pessoais, deveriam ser a principal força motivadora dos membros de cooperativas, conselhos comunitários e companhias autogeridas.
De sua parte, o recentemente formado PSUV tem evitado se engajar em debates formais sobre essas ricas experiências. A falta de autocrítica foi evidente em 2006, quando os conselhos comunitários substituíram as cooperativas no centro do discurso e das prioridades orçamentárias chavistas, mas não foram adiantadas explicações para a mudança. Expressões políticas das duas abordagens As bases populares dos chavistas reagiram a desenvolvimentos políticos específicos articulando argumentos em favor das abordagens cultural-otimista e realista. Assim, por exemplo, os otimistas culturais enfatizam o papel da mobilização de massas na derrota do breve golpe de abril de 2002 e da greve geral (ou mais precisamente greve patronal, ou lockout) em dezembro e janeiro de 2002-2003, ambos tentativas de restabelecer a antiga ordem. As duas insurgências reforçaram a linha de pensamento otimista cultural por terem demonstrado um alto nível de conscientização e comprometimento por parte dos apoiadores de Chávez.
A cadeia de eventos de abril de 2002 foi particularmente significativa, porque os setores mais pobres foram os principais protagonistas (junto com os militares) e desconsideraram as informações incorretas da imprensa numa hora em que a popularidade de Chávez entre as classes mais privilegiadas tinha declinado significativamente (Ali, 2008, 21).
Os otimistas culturais chegaram à conclusão de que as condições subjetivas atingiram um novo nível na medida em que pessoas pobres, que constituíam a vasta maioria da população, provaram ser os principais agentes da mudança. Subseqüentemente, a importância simbólica do evento se refletiu no slogan chavista "cada 11 de abril tem seu 13 de abril", em referência ao dia em que Chávez foi afastado e ao dia em que a resistência massiva o levou de volta ao poder.
O "Movimento 13 de Abril", que foi uma das diversas organizações sociais e políticas chavistas de base criadas durante aqueles anos, refere-se ao incidente de 2002 como evidência da maturidade política dos setores não privilegiados.
O argumento reforçou a demanda da organização quanto a defender o respeito dos burocratas à autonomia dos conselhos comunitários, que estão concentrados em áreas de baixa renda. A rejeição, pelo Movimento 13 de Abril, das "vanguardas ideológicas" e "vanguardas exclusivas" refletem a atitude de muitos chavistas das bases, que suspeitam do papel dos partidos políticos e que insistem que suas demandas cheguem ao Presidente Chávez diretamente, sem qualquer mediação por parte dos líderes de partidos. A essência antiburocrática da posição cultural-otimista foi expressa pelo líder do Movimento 13 de Abril, o escritor Roland Denis, que em seu breve período como vice-ministro do Planejamento colidiu com o que ele chama de "estado velho". Denis negou a afirmação de chavistas de "direita" que as interações entre a base (o poder constituinte) e os tomadores de decisão (o poder constituído) sob o governo Chávez era inerentemente mais "simbiótica" que conflituosa (Denis, 2006ª, 2006b).
Outro grupo político pró-chavista com bases locais, os "Tupamaros", que data de antes do advento de Chávez ao poder, é também "explicitamente anti-institucional", na linha da abordagem cultural-otimista (Ciccariello-Maher, 2007, 52-53). Os Tupamaros tomaram a decisão de priorizar o trabalho com os conselhos comunitários a fim de fortalecê-los e opor-se à interferência dos burocratas estatais (ver Valencia, 2007, 133-137).
O pensamento radical dos otimistas culturais em defesa da viabilidade de uma revisão do sistema existente no período atual foi mais consistentemente articulado pelos trotskistas venezuelanos, que mantêm uma presença importante na confederação de trabalhadores chavistas, a União Nacional de Trabalhadores (UNT; ver Ellner, 2008, 156-158) [7] .
Enquanto a base chavista protesta contra a restrição governamental a empréstimos e contratos para cooperativas e conselhos comunitários, os trotskistas vão um passo além, atribuindo o corte nos auxílios a um plano preconcebido para minar as relações socialistas. Por esse argumento, os "burocratas" no setor estatal, em parceria com grupos antiéticos de políticos chavistas, favorecem grupos, mesmo aqueles anteriormente associados com partidos políticos pró-establishment e acusados de negócios corruptos [8] .
Na mesma linha, os trotskistas alegam que os burocratas estatais têm evitado a cooperação com a empresa autogerida INVEVAL(nacionalizada em 2005) em seus esforços de adquirir componentes básicos e que a companhia petrolífera estatal PDVSA tem resistido a compras desta em detrimento do experimento (Wood, 2008, 415). O secretário-geral do sindicato da INVEVAL controlado por trotskistas, Ramón Montilla, afirma que "depois de sermos enrolados por burocratas estatais, finalmente nos encontramos com o Presidente Chávez, e agora estão em curso planos para a criação de uma fundição estatal que nos fornecerá as partes que necessitamos" (Montilla, 2008).
Os trotskistas concluem que a luta de classes deve ser travada entre o estado venezuelano e o partido no poder contra um inimigo que se disfarça como revolucionário.
Os trotskistas e outros otimistas culturais entendem que as condições subjetivas da nação estão maduras para a transformação socialista, e estão otimistas quanto ao potencial ilimitado dos experimentos socialistas como companhias autogeridas e cooperativas, desde que pudessem contar com condições justas de competição através do apoio econômico federal.
O debate sobre as relações do estado com as cooperativas, empresas autogeridas e conselhos comunitários é parte de uma discussão mais ampla sobre a estratégia política e o ritmo das mudanças. Sem surpresa dada sua fé no alto nível de consciência das classes populares, os otimistas culturais preferem, e defendem, a viabilidade de um ritmo radical. Eles encaram a transformação e a luta como em processo em curso e invocam o governo "revolucionário" a tomar a liderança no apoio total às cooperativas, companhias autogeridas e conselhos comunitários, ao invés de criar obstáculos burocráticos desnecessários.
Enquanto os otimistas culturais enfatizam o ativismo das classes populares na oposição ao golpe de abril de 2002, os trotskistas (assim como Roland Denis) chegam à conclusão de que, mesmo na ausência de um partido de vanguarda na Venezuela que provesse um direcionamento, as condições subjetivas conduziriam a uma transformação radical (Woods, 2006, 59). Robert Sewell, um trotskista inglês que coordena a organização internacional de solidariedade "Hands Off Venezuela" (não se meta com a Venezuela), afirmou no Fórum Social Mundial ocorrido em Caracas em janeiro de 2006: "As centenas de milhares de venezuelanos de baixo rendimento que afluíram às ruas demonstraram um nível extraordinário de consciência. Chegou a hora do povo tomar as rédeas da economia e da sociedade ... os trabalhadores estão prontos para gerir as empresas" (Sewell, 2006).
Alan Woods, outro importante trotskista e membro do "Hands Off Venezuela", que na ocasião se encontrou com o Presidente Chávez, argumenta que a consciência era tão alta que "transformações socialistas pacíficas" logo depois do golpe eram factíveis, já que a "oligarquia estava impotente e não teve força para impedi-las". Woods acrescenta que a falha em decretar a nacionalização massiva e o recuo do governo em várias frentes pavimentaram o caminho para a recobrada da oposição e a organização da greve geral oito meses depois (Woods, 2008,405).
Entre afirmar que os setores populares demonstraram alto grau de consciência política em abril de 2002 e alegar que os trabalhadores em geral estavam prontos a gerir as fábricas há na realidade uma enorme diferença. O otimismo de Woods e Sewell exagera o papel ativo da classe trabalhadora venezuelana, retardado pela prolongada fragmentação da UNT chavista.
Além disso, a tese apresentada por Woods e Sewell contradiz a complexidade da questão da autogestão fabril, que vai além de suas afirmações com relação à capacitação técnica e administrativa dos trabalhadores, já que também engloba temas desafiadores como os laços comerciais com fornecedores e clientes. A falha em analisar objetivamente as experiências concretas da participação dos trabalhadores na tomada de decisões econômicas na Venezuela sob o governo Chávez é uma deficiência importante, particularmente séria dado que a nação tomou um caminho de tentativa e erro para o socialismo.
A discussão organizada sobre esquemas de autogestão confrontaria questões essenciais como o dilema entre priorizar valores socialistas e objetivos sociais ou o lucro econômico, e entre inserir a companhia na economia de mercado ou depender do estado tanto para matéria prima quanto para vendas. A alegação de que a performance fraca dos experimentos socialistas deveu-se ao tímido suporte estatal ignora o fato de que o problema original enfrentado pelas cooperativas não foi o auxílio deficiente, mas a falta de controles.
A onda de fracassos em cooperativas ensinou os gestores e administradores estatais a serem cuidadosos e céticos. Em conseqüência, a SUNACOOP, a PDVSA e outras instituições estatais começaram a exigir longos relatórios, um requisito que os membros das cooperativas freqüentemente criticavam como grande obstáculo ao bom funcionamento de seus empreendimentos. Além disso, os burocratas estatais justificavam a concessão de contratos de obras públicas com o setor de negócios ao invés de com as cooperativas recém-formadas com o argumento de que os primeiros, ao contrário das últimas, tinham capital, perícia e experiência suficientes, assim como uma reputação a proteger.
Dado o fervor revolucionário que caracteriza o movimento chavista, não é de surpreender que os argumentos práticos nessa linha formulado pelos realistas tenham sido em sua maior parte confinados às discussões internas à burocracia estatal, mesmo que muitos chavistas, particularmente de classe média, partilhem as mesmas preocupações. Não obstante, os argumentos realistas não estiveram totalmente fora das discussões públicas. Heinz Dieterich, alemão de nascimento morando no México, sistematicamente aplica posições realistas ao caso venezuelano e é freqüentemente citado pelos chavistas.
Como outros realistas escrevendo em outros países socialistas no passado, Dieterich defende a aplicação da lei do valor aos preços na Venezuela, opondo-se assim ao princípio "a cada um de acordo suas necessidades" defendido pelos otimistas culturais (tais como o Che em Cuba).
Além disso, Dieterich argumenta que condições nacionais e internacionais desfavoráveis, como a dependência da Venezuela da produção de petróleo, e a praticamente não diminuída força dos defensores do antigo sistema, tais como a Igreja e o setor empresarial, descartam a revolução socialista no estágio atual.
Ele prossegue afirmando que, mesmo que o estado venezuelano não esteja em posição de abandonar a economia de mercado, pode favorecer o interesse dos pequenos negócios e formas experimentais de produção a fim de facilitar a transição para fora do capitalismo.
Não obstante, na sociedade democrática da Venezuela, o socialismo não pode ser imposto ao povo. Dieterich insiste que o governo Chávez seja aberto às críticas e que instituições como a Assembléia Nacional assegurem sua independência frente ao ramo executivo do governo (Dietrich, 2006; New York Times, 6 de dezembro de 2007, A3).
Em consonância com seus conselhos para a Venezuela, Dieterich defende as medidas pragmáticas tomadas por Raúl Castro para aumentar a produtividade em Cuba, enquanto questiona a posição de Fidel e do ex-ministro das Relações Exteriores Felipe Pérez Roque, que prioriza a "ética revolucionária" e a "disciplina revolucionária". De acordo com Dieterich, Fidel e Pérez Roque ignoram a frase de Lênin de que "uma classe dominante não pode se distanciar de sua capacidade de resolver a tarefa da produção".
Dieterich prossegue argumentando que "o esforço para vacinar ideologicamente os jovens contra o padrão de vida que eles consideram justo e necessário" não é viável e somente conduzirá à derrubada do socialismo cubano (Dieterich, 2007b, 161-163). A importância da eficiência e produtividade levantadas por Dieterich em sua análise de Cuba está no centro das diferenças entre as abordagens realista e otimista cultural na Venezuela.
O persistente esforço de Allan Woods para demonstrar o "revisionismo" de Dieterich, sem oferecer dados empíricos sobre os experimentos socialistas da Venezuela, somente obscurece as questões cruciais do modelo venezuelano (Woods, 2008). A tese realista sobre a necessidade de controles estatais efetivos e a posição otimista cultural (enfaticamente argumentada pelos trotskistas) a respeito dos interesses e conflitos de classe que se manifestam na esfera estatal não são mutuamente exclusivos.
Ambos são reações aos problemas reais que surgiram na Venezuela revolucionária. Por outro lado, muitos governos locais e estaduais liderados por chavistas têm favorecido consistentemente com contratos um pequeno grupo de empresários influentes, uma prática que pode conduzir à corrupção que é um problema amplamente percebido nesses níveis, mesmo entre os chavistas. Por outro lado, o fracasso do governo em cumprir sua promessa em 2006 de publicar estatísticas definitivas sobre o número de cooperativas em operação no país (Piñeiro, 2009) reflete o controle limitado do estado sobre as novas formas populares de tomada de decisão.
Não há razões pelas quais aspectos das estratégias otimista cultural e realista não posam ser adotados simultaneamente para lidar com esses problemas. A estratégia otimista cultural procuraria cortar as relações próximas entre os funcionários chavistas eleitos e os grupos econômicos existentes, e ao invés disso favoreceria formas experimentais de produção como um passo na direção da "democratização do capital" e da construção socialista.
Ao mesmo tempo, seria reforçado e institucionalizado o controle sobre todos os programas populares financiados pelo estado (abordagem realista), mesmo que essa política corresse o risco de sobrecarregar os destinatários com papelada e desencorajasse sua aplicação por alguns membros de baixo rendimento.
Num exemplo de combinação possível entre as duas abordagens, o controle estatal em nível estadual e nacional cooperaria e daria orientação para "controladorias sociais" improvisadas, que são iniciativas populares com o objetivo de monitorar o gasto público (de acordo com a abordagem cultural-otimista). Esses vínculos promoveriam a institucionalização de programas experimentais como cooperativas, conselhos comunitários e empresas autogeridas, de acordo com a abordagem realista.
IMPERATIVOS POLÍTICOS
Há convincentes razões históricas para não se rejeitar a tese otimista cultural como inviável ou quixotesca, particularmente em momentos em que revoluções estão sob o maior dos ataques.
Revoluções socialistas, juntamente com outras ao longo da história, têm invariavelmente enfrentado adversários impiedosos que não recuam ante nenhum obstáculo para atingir seu objetivo de restaurar a ordem anterior. Em face de desafios formidáveis, o suporte ativo e decidido das classes populares é uma condição sine qua non para a sobrevivência da revolução. Somente as bandeiras cultural-otimistas da solidariedade, justiça social e igualdade, e ações concretas que favoreçam o atingimento desses objetivos, podem obter o comprometimento necessário dos setores não privilegiados; os incentivos materiais defendidos pelos realistas apontam na direção oposta.
Assim, por exemplo, em face da iminente invasão alemã com a possível cumplicidade de outras nações capitalistas avançadas na década de 30, a União Soviética apelou ao povo para que fizesse sacrifícios extremos a fim de construí uma economia industrial, e priorizou incentivos morais aos materiais na forma do movimento stakhanovista.
A revolução cubana da década de 60, que confrontou invasões e ações terroristas apoiadas pelos EUA na ilha, também contou largamente com os incentivos morais, culminando com o apelo para o trabalho voluntário para atingir o objetivo de produzir dez milhões de toneladas de açúcar em 1970.
O governo cubano também levantou a bandeira da solidariedade internacional e consistentemente a colocou em prática numa extensão não superada pela União Soviética nos anos 30 [9] . No caso da Venezuela, a sobrevivência do governo Chávez tem dependido de sua habilidade para mobilizar seguidores num grau sem precedentes na história do país.
Esta conquista política foi em grande medida possibilitada pela preferência do Presidente Chávez pela retórica otimista cultural sustentada por ações concretas, tais como políticas de distribuição da riqueza. Tanto na Venezuela como em toda parte, os realistas com sua ênfase em incentivos materiais e esforços para conquistar a classe média reconhecendo a importância de capacitação profissional – uma estratégia que implicitamente aceita a desigualdade social – são menos capazes de garantir o apoio ativo e continuado dos setores populares do que os otimistas culturais.
Na verdade, a explicação do porquê a revolução cubana sobreviveu enquanto a União Soviética colapsou pode ser parcialmente baseada em fatores subjetivos influenciados por estratégias cultural-otimistas. Por décadas, o governo cubano foi mais bem sucedido no emprego do discurso otimista cultural, contribuindo para um grau relativamente alto de entusiasmo e fervor revolucionário entre o povo cubano, o que estava visivelmente ausente no caso da União Soviética e do restante do bloco da Europa Oriental.
Assim, por exemplo, a solidariedade dos cubanos "internacionalistas" que viajaram a outros países para participar em missões diversas que variaram de atividade guerrilheira (nos anos 60) a serviço médico não tem equivalente na União Soviética no mesmo período. Os críticos de esquerda do governo cubano nos anos 60, que acusaram os fidelistas de ultra-esquerdismo e voluntarismo (ambos associados à abordagem otimista cultural), falharam e levar em conta essa dinâmica, que foi essencial à sobrevivência política da revolução.
O discurso de Chávez tem raízes na abordagem otimista cultural e sua ardente retórica (incluindo ataques pessoais contra outros chefes de estado), que tem sido útil na manutenção de uma grande capacidade de mobilização, também deve ser entendida nesse contexto.
UMA REFORMULAÇÃO DO DEBATE SOBRE A CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO
Tanto os otimistas culturais como os realistas fazem suposições a respeito do grau no qual pessoas numa sociedade revolucionária estão dispostas a descartar aspirações materiais individuais em favor da construção do socialismo e da sociedade em geral. Deve-se distinguir, entretanto, entre sacrifícios para enfrentar uma ameaça imediata colocada por um inimigo bem definido (como no caso da URSS nos anos 30) e apelos contínuos à população operária por chefes de estado socialistas que estão razoavelmente bem instalados no poder por um bom período.
A ênfase dos otimistas culturais na solidariedade e em outros valores socialistas, junto com sua rejeição aos incentivos materiais, mostrou-se mais efetiva no primeiro tipo crítico de situação que no último. Uma diferença importante entre as posições dos realistas e dos otimistas culturais refere-se à capacidade produtiva dos sistemas capitalista e socialista. A afirmação dos realistas sobre a inquestionável superioridade do socialismo neste aspecto relembra a famosa afirmação de Nikita Krushchev de que a União Soviética acabaria por "enterrar" os Estados Unidos na batalha da produção.
Subseqüentemente, todavia, as nações capitalistas ultrapassaram completamente as socialistas no desenvolvimento tecnológico, tendo uma das suas mais impressionantes conquistas ocorrido na área da ciência da computação, que deixou as nações socialistas muito atrás. Os realistas atribuiriam a desapontadora performance socialista à aplicação insuficiente de incentivos materiais.
Em contraste, alguns otimistas culturais questionam a esmagadora importância da produção e preferem mudar o debate na direção da transformação cultural, temas ecológicos e a humanização das condições de trabalho.
Num exemplo especialmente revelador das prioridades dos otimistas culturais, Chávez incluiu na proposta de reforma da Constituição uma emenda para reduzir a semana de trabalho de 44 para 36 horas, a despeito da condição da Venezuela de nação em desenvolvimento. A medida, que foi derrotada num referendum realizado em dezembro de 2007, foi, em suas palavras, proposta para "promover o desenvolvimento educacional, humano, físico, espiritual, moral, cultural e técnico dos trabalhadores" (Chávez, 2008, 85).
Os realistas estão mais propensos que os otimistas culturais a aceitar a dura realidade relativa aos obstáculos e desafios especiais que os governos socialistas enfrentam no esforço para aumentar a produção. Mais importante que isso, o socialismo, ao contrário do capitalismo, não tem o bode expiatório da pobreza para estimular a disciplina e produtividade dos trabalhadores.
A "garantia absoluta de emprego" que os países socialistas asseguram aos trabalhadores, agrava o problema. Enquanto na teoria a medida significa para os trabalhadores segurança de emprego, exceto nos casos de rompimento da disciplina de trabalho, na prática eles são demitidos somente nas circunstâncias mais extremas.
Garantia absoluta de trabalho em alguns casos tem conduzido ao absenteísmo e a baixos níveis de produtividade [10] . Se as nações socialistas reproduzissem a insegurança que prevalece no capitalismo, estariam negando as bandeiras mais caras do socialismo. Deve-se estabelecer mecanismos alternativos para estabelecer e fazer cumprir os níveis requeridos de produtividade, um imperativo que o discurso realista e os incentivos materiais estão mais capacitados a satisfazer.
Idealmente, os incentivos materiais criariam disparidades de receita suficiente para impactar significativamente a motivação dos trabalhadores, mas não ao ponto de admitir diferenciação social. Os realistas também defendem a propriedade privada no socialismo. Deve-se diferenciar, entretanto, entre negócios pequenos, médios e grandes.
Na Venezuela (como em outros países em transição para o socialismo), a oposição acusa falsamente o governo Chávez de tentar acabar com a propriedade de pequenos empresários, personificados na propaganda televisiva por um açougueiro que teme o confisco de seu modesto negócio. Em muitos países socialistas, os realistas afirmaram que negócios de pequeno porte devem ser tolerados e mesmo encorajados sob o socialismo, enquanto apóiam a ampliação dos direitos de propriedade privada, como domicílios familiares (um tópico do atual debate em Cuba).
Um estado socialista precisaria usar mecanismos de taxas, monitorar cuidadosamente e exercer controle sobre empresas de médio porte, de modo que estas não pudessem usar o poder econômico como influência política (Dieterich, 2007b, 166-167).
Em contraste, o socialismo por definição abole a grande posse privada, exceto em áreas específicas por períodos limitados (em contrário aos acontecimentos na China e ao que é referido como socialismo do tipo escandinavo). Diferentemente do que os defensores do modelo escandinavo mantém, os incentivos materiais no socialismo não necessariamente levam a empresas capitalistas de grande porte, que são basicamente incompatíveis com o sistema socialista (ver Moses, Geyer e Ingebristen, 2000, 1-6).
O estímulo à produção para satisfazer à demanda dos consumidores (uma prioridade na abordagem realista) e a promoção do debate interno no movimento revolucionário para analisar os erros – duas das principais preocupações deste artigo – tornar-se-ão cada vez mais viáveis à medida em que o inimigo se enfraquece política e economicamente e os revolucionários podem escolher entre várias opções.
Na realidade, no caso da Venezuela, a perda de poder das forças pró-sistema nos anos 80 e 90 tornaram possível o caminho democrático e pacífico para mudanças radicais sob a gestão de Chávez. Desde os anos 80, a burguesia venezuelana tornou-se criticamente fragmentada e subordinada a interesses econômicos estrangeiros, que tomaram setores inteiros da economia tanto na esfera pública como na privada. Esses acontecimentos foram agravados pela crise financeira do país em 1993-1994 (Ortiz, 2004, 76-85) Além disso, todos os partidos conservadores, mesmo os de centro-esquerda, que sem nenhuma exceção aceitaram o neoliberalismo nos anos 90, ficaram grandemente desacreditados (Ellner, 2008, 105-106).
Esta fraqueza, combinada ao declínio da influência dos EUA durante a administração Bush, tornaram possível o sucesso político de Chávez. Não obstante, a ameaça do retorno da oposição ao poder com apoio americano, que é ainda uma possibilidade muito real, pressionaram os líderes chavistas a levantar a bandeira da unidade e colocar de lado o debate ideológico entre realistas e otimistas culturais.
Argumentos poderosos sustentam tanto as teses realistas quanto as otimistas culturais. De um lado, o estímulo à transformação de valores no socialismo, como Marx deixou claro, não pode ser relegado ao distante estágio futuro do "comunismo", nem pode ser confinado a campanhas educacionais, mas, ao contrário, deve ser construído nas relações econômicas (abordagem otimista cultural).
Por outro lado, os marxistas há muito reconheceram que diferenças sociais e tensões persistem sob o socialismo, uma premissa básica dos realistas (assim como de muitos otimistas culturais). Além disso, a experiência mostra que o utopicismo ou a superestimação do nível de consciência da classe operária e da população em geral pode produzir deformações tais como intolerância com aqueles que resistem às mudanças, e repressão sistemática (Laibman, 1992, 66).
Este artigo apontou para diversos fatores que pesam no caminho da construção socialista, como imperativos políticos, a força relativa do inimigo, os níveis de consciência e disciplina da classe trabalhadora e o processo de institucionalização. Mais importante, o estágio inicial da revolução requer o aproveitamento da energia dos setores populares na forma de mobilização política constante e outras formas de ativismo político, O governo revolucionário pode maximizar sua atratividade formulando slogans igualitários e políticas que enfatizam a solidariedade de acordo com a abordagem otimista cultural.
O processo subseqüente de consolidação coloca a maior ênfase na produção, que no mínimo por um certo período é mais incentivada pelo aumento no peso dos incentivos materiais (enfoque realista). Mas em nenhum tempo os dois enfoques representam uma proposição "esta ou aquela" (Laibman, 1992, 66). Esta complexidade argumenta contra posições dogmáticas ou extremas associadas com as estratégias cultural-otimista e realista e em favor de uma combinação de ambas.
Um exemplo na Venezuela é a proposição referida acima, na qual o controle estatal estabelecido para assegurar contra o abuso ou o uso ineficiente de dinheiro público trabalha em conjunção com a "controladoria social" temporária que consiste de pessoas nas comunidades encarregadas de monitorar o gasto de seus respectivos conselhos comunitários.
O argumento em favor da síntese das duas posições também repousa na necessidade de levar em conta a diversidade social no processo da transição socialista. Por exemplo, grande número daqueles que pertencem aos setores médios têm uma atitude ambivalente com relação às mudanças em curso, e de modo a conquistá-las suas aspirações devem ser reconciliadas com os chamados para a igualdade e justiça social (enfoque otimista cultural) que ressoam nos setores mais pobres da população. Além disso, diferenças salariais e incentivos materiais (enfoque realista) não somente são atrativos para os setores médios mas também alavancam a capacidade produtiva da classe operária.
Assim, o debate acerca de diferenças salariais limitadas mas efetivas não deveria ser rejeitado ou considerado tabu, mesmo que a excessiva disparidade de renda que atualmente vigora na China contradiga a essência do socialismo. Muito da discussão sobre a construção do socialismo na Venezuela é influenciado pelas suposições do otimismo cultural sobre a disposição do povo em aceitar os ideais da sociedade em construção e participar entusiasticamente na tomada de decisões no nível local e de trabalho [11] .
A avaliação dos otimistas culturais na Venezuela não foi testada na forma de exame empírico sistemático. Um exemplo de problema espinhoso que requer soluções práticas e como o estado pode lidar eficazmente com as cooperativas e conselhos comunitários apoiados publicamente mas ineficientemente geridos a fim de estimular maior disciplina sem desencorajar a participação continuada de seus membros. Acadêmicos, ativistas e bases chavistas precisam olhar cuidadosamente para as limitações, obstáculos e avanços das experiências venezuelanas na democracia direta e nas relações experimentais da tomada de decisões pelos trabalhadores. O mais importante é o seu impacto não tanto sobre os céticos e os oponentes do socialismo, mas sobre aqueles que apóiam o processo.
Um socialismo realmente democrático estabeleceria mecanismo para assegurar que a avaliação dessas experiências se traduzissem em políticas projetadas para corrigir erros. Este artigo sugeriu que os desafios que a Venezuela enfrenta na construção do socialismo estão longe de ser excepcionais. A despeito da rica variedade de desenvolvimentos desde 1917, insuficiente análise tem se focado nos detalhes e nos aspectos práticos das relações socialistas como eficiência e disciplina no local de trabalho e motivação do operário, enquanto suposições têm tido maior peso que evidência concretas na avaliação das condições subjetivas.
Notas:
1. – O termo "otimismo cultural" ou "posição cultural-otimista" empregado neste artigo tem uma natureza dual: refere-se à ênfase na transformação de valores, como oposta à transformação material, assim como à avaliação otimista das condições revolucionárias. Uma expressão especialmente radical da posição cultural-otimista na Venezuela vê as mudanças inspiradas pelo socialismo como uma possibilidade imediata.
2. Louis Althusser (1979, 49-86) argumenta que os escritos do "jovem" Marx, juntamente com o que este artigo chama de posição "cultural-otimista", destacam-se do Marxismo, que se baseia na análise científica.
3. Um exemplo de argumento favorável a "a cada um conforme sua necessidade" é a posição de que bens e serviços que satisfazem necessidades básicas como saúde, educação e moradia não deveriam estar sujeitos a condições de mercado mas, ao contrário, deveriam ser excepcionalmente baratos, se não gratuitos. A questão em debate na Venezuela de Chávez, onde a destinação estatal de recursos para a saúde, educação e transporte, entre outros setores, tem reduzido substancialmente os preços ou mesmo os eliminado. A crítica por parte de muitos chavistas de classe média sobre certos serviços e bens gratuitos ou virtualmente gratuitos fornecidos pelo estado demonstra que o princípio marxista de "a cada um conforme sua necessidade" não é exatamente uma questão abstrata.
4. Michael Lebowitz, por exemplo, enfatiza a importância da solidariedade na economia venezuelana, a qual ele afirma se sustentar na constituição de inspiração chavista de 1999. Leibowitz argumenta que Marx considerava a noção de "a cada um conforme seu trabalho" um desvio (ou "defeito"), e portanto se opôs à sua aplicação sob o socialismo (Leibowitz, 2007, 484, 478, 2006, 106). Para outro estudo que enfatiza valores (de acordo com a linha cultural-otimista de pensamento) da forma como aplicado ao movimento cooperativo venezuelano, veja Piñeiro, 2009.
5. Líderes dos Partidos Comunistas pró-soviéticos ao longo da América Latina se alinharam com as políticas de Rodriguez, assim como os economistas marxistas Charles Bettelheim e Edward Boorstein (1968, 253-4, 260). O debate foi revisitado pelo marxista alemão Heinz Dieterich (2007ª), que considerou as políticas de Che sumamente idealistas, e por Helen Yaffe (2009), que concede a ele uma opinião favorável.
6. Antes de 2000 havia somente 2.500 cooperativas registradas na Venezuela. Em 2006, das 100.000 cooperativas não-agrícolas, 52% estavam no setor de serviços, seguidas pelas de produção (32%) e transporte (10%) (Lucena, 2007, 73, 290).
7. Três grupos trotskistas desfrutam algum grau de influência no movimento trabalhista venezuelano: a Corrente Marxista Revolucionária (CMR), afiliada ao movimento inglês International Marxist Tendency (dirigido por Allan Woods); a "Maré Socialista"; e a Corrente Classista, Unitária, Revolucionária e Autônoma (C-CURA), encabeçada pelo sindicalista veterano Orlando Chirino, que é extremamente crítica do governo Chávez. O CMR e a Maré Socialista, ao contrário do C-CURA, seguem a estratégia de trabalhar com o partido chavista, o PSUV.
8. Além do problema da corrupção que se percebe prevalecer largamente na Venezuela, alguns funcionários chavistas locais expressaram, particularmente, medo de que formas experimentais de tomada de decisões, tais como o movimento de conselhos comunitários, possa minar sua posição de autoridade (Ellner, 2009).
9. Enquanto os soviéticos e cubanos enfatizavam incentivos morais frente aos impiedosos inimigos durante esses primeiros anos críticos, pararam de colocar em prática a bandeira mais ambiciosa do controle pelos trabalhadores, e por essa razão alguns otimistas culturais referem-se ao sistema predominante na URSS como "capitalismo de estado" (ver Resnick e Wolf, 2002, 237-280).
10. O problema se manifesta quando os trabalhadores que têm segurança absoluta de emprego não recebem incentivos para se destacar em seu trabalho,. Por muitos anos na Venezuela, por exemplo, professores universitários que recebiam estabilidade tendiam a manter níveis mais baixos de disciplina no trabalho e na produção. O "Programa de Promoção de Investigadores (PPI) iniciado em 1990, que atrelou as bolsas de estudo à produtividade na área de pesquisa da universidade, teve como objetivo corrigir este problema.
11. Para uma discussão da tese que supõe um alto nível de conscientização da classe trabalhadora na União Soviética pós-1917, atribuindo o desvio na nação do verdadeiro socialismo às lideranças oportunistas que emergiram, ver Smith, 2007, 168.
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[*] Autor de Rethinking Venezuelan Politics: Class, Conflict, and the Chavez Phenomenon . Apartado 485, Barcelona, Anzuàtegui 6001, Venezuela, sellner74@gmail.com .
Agradeço os comentários críticos de Peter Marcuse, Miguel Tinker Salas, Jack Hammond, Dick Parker e Ralph Van Roy.
O original encontra-se na revista Science & Society, volume 74, nº 1, Janeiro/2010. Tradução de RMP.
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