A luta pelo futuro da Europa joga-se em Atenas e restantes cidades gregas, na sua resistência às exigências da finança, que são a versão do século XXI de um verdadeiro ataque militar. A ameaça de um absoluto domínio da banca não é certamente o tipo de política económica liquidatária que possibilite heróicos feitos de armas. As políticas financeiras destrutivas assemelham-se mais a um exercício da banalidade do mal – neste caso, os pressupostos pro-credores do Banco Central Europeu (BCE), União Europeia (UE) e FMI (incitado pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos).
Como sublinhou Vladimir Putin há uns anos atrás, as reformas neoliberais postas nas mãos de Boris Yeltsin pelos Harvard Boys nos anos 90 causaram na Rússia uma descida da natalidade, da esperança média de vida, e uma vaga de emigração – a maior queda do crescimento populacional desde a II Guerra Mundial. A fuga de capitais é outra das consequências da austeridade financeira. A "solução" proposta pelo BCE para o problema da dívida grega assevera-se autodestrutiva. Procura apenas ganhar tempo para que o BCE se aproprie de mais dívida do governo grego, deixando a factura para todos os contribuintes europeus. Foi evitar esta transferência das perdas dos bancos para os contribuintes que Angela Merkel insistiu para que os accionistas privados absorvessem algumas das perdas resultantes dos seus maus investimentos.
Os banqueiros estão a tentar obter receitas extraordinárias utilizando o mecanismo da dívida como forma de realizar aquilo que era antes levado a cabo pela guerra. Exigem a privatização do património público (a crédito, com benefícios fiscais para os juros, de modo a que aflua mais dinheiro para os cofres dos banqueiros). Esta transferência de terra, de serviços e de participações públicas, enquanto saque financeiro e tributo às economias credoras faz com que os efeitos da austeridade financeira se assemelhem nos seus efeitos aos de uma verdadeira guerra.
Sócrates disse que a ignorância é certamente a raiz de todo o mal, uma vez que ninguém é deliberadamente maldoso. No entanto, a "cura" económica que consiste em levar os devedores à miséria e forçá-los a liquidar o seu património público, tornou-se uma ciência socialmente aceite e ensinada nas melhores escolas de gestão. Seria legítimo pensar que, após cinquenta anos de programas de austeridade e privatizações liquidatárias para pagar dívidas, o mundo tivesse aprendido o suficiente no que toca a causas e efeitos.
O sector bancário escolhe deliberadamente a ignorância. As "boas práticas geralmente aceites" são apoiadas por Prémios Nobel da Economia de forma a fornecerem uma capa de negabilidade plausível quando os mercados são "inesperadamente" esvaziados e os novos investimentos abrandam como resultado de economias financeiramente exangues, enquanto a riqueza num estilo medieval é sugada para o topo da pirâmide económica.
O meu amigo David Kelley gosta de citar o gracejo de Molly Ivin: "É difícil convencer as pessoas de que as estás a matar para o seu próprio bem". A União Europeia tentou fazê-lo na Islândia, sem êxito. Tal como os islandeses, os manifestantes gregos já tiveram a sua dose da estudada ignorância neoliberal, segundo a qual a austeridade, o desemprego e a contracção dos mercados seriam o caminho para a prosperidade e não para o agravamento e aprofundamento da pobreza. Por isso, devemos perguntar-nos o que leva os bancos centrais a promoverem gestores de vistas curtas, que seguem as ordens e a lógica de um sistema que impõe o desperdício e sofrimentos desnecessários – e tudo isto para persistir na obsessão segundo a qual os bancos não devem perder dinheiro?
É forçoso concluir que os novos planificadores centrais europeus (não era a isto que Hayek chamava " Caminho da Servidão "?) agem como guerreiros de classe ao exigir que todas as perdas sejam sofridas pelas economias impondo uma deflação da dívida permitindo assim aos credores arrebatar os mais diversos activos. Como se isto não tornasse o problema pior. Esta linha dura do BCE é apoiada pelo secretário do Tesouro dos EUA, Timothy Geithner, para que as instituições americanas não percam as suas apostas nas jogadas com derivativos que subscreveram.
Trata-se de uma repetição da actuação de Geithner para impedir a mitigação da dívida irlandesa. O resultado é que entrámos no território do absurdo quando o BCE e o Tesouro insistem numa "renegociação voluntária" com base no facto de que alguns bancos podem ter feito investimentos fraudulentos do tipo dos da AIG ao oferecerem seguros de incumprimento ou apostas que os teriam feito perder tanto dinheiro que um novo resgate seria necessário. É como se as apostas financeiras fossem economicamente necessárias e não algo digno de Las Vegas.
Porque é que isto deveria interessar aos gregos? É um problema intra-europeu de regulação da banca. No entanto para contornar o verdadeiro problema, o BCE ordena à Grécia que venda as suas redes de águas e esgotos, portos, ilhas e outras infraestruturas.
É uma viragem rumo ao teatro financeiro do absurdo. Claro que alguns interesses especiais lucram sempre com o absurdo sistémico, por muito banal que pareça. Os mercados financeiros apostam já na possibilidade de a Grécia acabar por não poder pagar. É apenas uma questão de tempo. Os bancos estão a usar esta oportunidade para lucrar ao máximo e transferir as perdas para o BCE, UE, e FMI – instituições públicas que têm mais poder de alavancagem financeira que os credores privados. Assim os banqueiros tornam-se os patrocinadores do absurdo – e da teoria económica lixo (junk economics) recitada irrefletidamente por aqueles que impõem e apologistas da banalidade do mal. Pouco importa que se chamem Trichet, Geithner ou Papandreu. Estes são apenas parte integrante do polvo vampírico das exigências dos credores.
As multidões gregas que se manifestam diante do parlamento na praça Syntagma estão a procurar reproduzir o seu equivalente da "Primavera Árabe". Mas que poderão fazer, para além da violência, enquanto a polícia e os militares continuarem a alinhar com o governo que por sua vez esta do lado dos credores estrangeiros?
A táctica mais eficiente é a de exigir um referendo nacional perguntando da aceitação dos termos da austeridade impostos pelo BCE, assim como do aumento dos impostos, cortes na despesa pública, das privatizações. Foi desta forma que o Presidente da Islândia impediu que um governo social-democrata comprometesse a economia do seu país com os pagamentos ruinosos (e legalmente desnecessários) exigidos pelo Partido Trabalhista de Gordon Brown e pelos holandeses para o resgate do Icesave e do Kaupthing.
A única base legal para a exigência do pagamento por parte da UE do resgate dos bancos franceses e alemães – assim como a exigência do secretário do Tesouro americano Tim Geithner, para que as dívidas sejam sagradas, e não as vidas dos cidadãos – é a aceitação e consentimento públicos de tais políticas. De outra forma a imposição da dívida pode ser tratada como um simples acto de guerra financeira.
As economias nacionais têm o direito de se defenderem contra tal agressão. Os líderes dos manifestantes podem insistir em que na ausência de um referendo, seja eleita uma lista comprometida com a anulação da dívida. O direito internacional proíbe as nações de tratarem os seus nacionais de forma diferente dos estrangeiros, assim todas as dívidas de categorias específicas teriam de ser anuladas para que se possa pôr a zero (to create a Clean State) as contas públicas. A reforma monetária imposta pelos Aliados à Alemanha em 1947 que pôs as contas publicas a zero, foi um dos casos de maior êxito de uma política desse tipo libertando a economia alemã da dívida [incluindo as indemnizações devidas à Grécia pelas destruições causadas pela II Guerra Mundial] e tornou-se a base do milagre económico nacional.
Esta não é a primeira vez que tal hipótese se apresenta à Grécia. No final do século III a.c., os reis espartanos Ágis e Cleómenes exigiram o cancelamento da dívida, assim como o fez Nabis depois deles. Plutarco conta-nos a história, explicando também o defeito trágico desta medida. Os proprietários ausentes que haviam pedido dinheiro emprestado para comprar bens imobiliários apoiaram o cancelamento da dívida, obtendo assim inesperadamente enormes ganhos.
Isto seria ainda mais verdade hoje do que no passado, pois actualmente a maior parte da dívida são precisamente hipotecas imobiliárias. Imagine-se o que o cancelamento da dívida faria pelos Donald Trumps deste mundo – tendo adquirido as suas propriedades a crédito, com o mínimo de investimento próprio, subitamente não deveriam nada à banca! O objectivo da reforma financeira deveria ser libertar a economia da sobrecarga financeira que é tecnologicamente desnecessária. Para evitar dar almoços grátis aos proprietários ausentes, o cancelamento da dívida teria de ser secundado por um imposto sobre as rendas dos bens imobiliários. O sector público receberia assim o valor das rendas da terra como base fiscal.
Este foi o objectivo fundamental dos economistas do mercado livre do século XIX: tributar a terra e a natureza – e os monopólios naturais – em vez de tributar o trabalho e os meios de produção do capital. O objectivo era fazer reverter para o público aquilo que a natureza e as infraestruturas públicas criavam. Há um século atrás acreditava-se que os monopólios, hoje cobiçados pelo sector privado, deviam ser operados pelo sector público; ou ainda que, no caso destes serem operados pelo sector público, os seus preços deveriam ser regulados de modo a estarem de acordo com o custo real de produção. No caso da terra, das minas e dos monopólios que já se encontravam na mão de privados, as receitas das rendas seriam inteiramente tributadas. Isto incluiria o privilégio financeiro de que os bancos desfrutam na criação do crédito.
A maneira de reduzir os custos de produção é a redução dos "maus" impostos que se aumentam o preço de produção, sobretudo os impostos sobre o trabalho e o capital, as vendas e os impostos de valor acrescentado. Em contrapartida, a tributação da rendas recolhe os "almoços grátis" da economia, deixando menos para ser entregue aos bancos para que estes capitalizem a dívida dos empréstimos mais elevados. Transferir a carga fiscal grega do trabalho para a propriedade reduziria o preço do trabalho, e reduziria também o preço dos bens imobiliários que está a ser inflacionado pelo crédito bancário.
Uma alteração da taxa sobre os bens imóveis foi a principal reforma proposta nos séculos XVIII e XIX, dos Fisiocratas a Adam Smith passando por John Stuart Mill e pelos reformadores da época progressista americana (American Progressive Era). A ideia era libertar os mercados das rendas hereditárias da aristocracia que remontavam às conquistas medievais Vikings. Isto libertaria as economias do feudalismo, alinhando os preços com os custos de produção socialmente necessários. Na ausência da renacionalização da terra e da infraestrutura, tributar plenamente a sua renda económica (pagamentos de acesso a sítios cujo valor é criado pela natureza ou pelo investimento público) recuperaria para as autoridades gregas aquilo que os credores estão a tentar agarrar à força.
Esta ameaça clássica dos reformadores do séc. XIX pode ser a resposta dos gregos ao Banco Central Europeu. Eles podem relembrar ao resto do mundo que se trata, afinal de contas, do ideal do mercado livre tal como foi expresso por Adam Smith e John Stuart Mill em Inglaterra, o mesmo que esteve na base da despesa pública, das agência reguladoras e da política fiscal estado-unidense na época da sua ascensão.
Quão estranho (e triste) é que o governo do Partido Socialista grego, cujo líder está à frente da II Internacional, tenha rejeitado este programa reformista centenário. Não se trata de comunismo. Nem sequer de algo intrinsecamente revolucionário, ou pelo menos não na altura em que foi formulado. Trata-se de um socialismo de tipo reformista, que é o ponto culminante de dois séculos de pensamento político-económico clássico.
Mas este é o tipo de mercados livres contra os quais luta o Banco Central Europeu, apoiado pelas exortações estridentes dos Estados Unidos na pessoa do seu secretário do Tesouro Geithner. O presidente Obama não intervém, deixando aos burocratas da Wall Street a tarefa de definir as políticas económicas nacionais. É isto perverso? Ou apenas passivo e indiferente? E faz alguma diferença no que toca ao resultado final?
Para falar de forma sucinta, podemos dizer que os objectivos da agressão financeira estrangeira são os mesmos que os de uma conquista militar: a terra e o domínio público. Mas as nações têm o direito de tributar os lucros das rendas das suas terras, bem para além do simples retorno do capital investido. Ao contrário do que está implicado na "desvalorização interna" (cortes nos salários) exigida pela UE, como forma de diminuir o custo do trabalho na Grécia, tornando-o assim mais competitivo, a diminuição do nível de vida não deve ser o caminho a seguir, uma vez que isso reduz a produtividade do trabalho, ao mesmo tempo que corrói o mercado interno, levando a uma espiral descendente de contracção económica.
A necessidade de um referendo popular
Todo o governo tem o direito e, na verdade, a obrigação política de proteger a prosperidade e assegurar a subsistência da sua população de forma a que esta possa viver no seu país e que não seja obrigada a imigrar ou posta numa posição de completa dependência financeira face aos investidores. No âmago da democracia económica encontra-se o princípio segundo o qual nenhuma nação soberana pode ser forçada a abrir mão do seu património público ou dos impostos que sobre ele recebe, e por conseguinte da sua prosperidade económica e subsistência futura, em favor de estrangeiros ou de qualquer classe financeira doméstica. Foi por este motivo que a Islândia votou "Não" no referendo da dívida. A sua economia encontra-se agora em recuperação.
A Irlanda votou "Sim" e enfrenta já uma nova Diáspora que compete com os grandes movimentos migratórios pelos quais, em meados do séc. XIX, os irlandeses procuraram escapar à miséria e à fome. Se a Grécia não se impuser, será uma vitória para a agressão financeira e fiscal e para o seu objectivo de impor a escravatura pela dívida.
A finança tornou-se o tipo de guerra preferido do séc. XXI. O seu objectivo é a apropriação, pelas suas próprias elites, da terra e das infraestruturas públicas. A realização financeira deste fim, através da imposição da escravatura pela dívida às populações subjugadas, evita o sacrifício de vidas por parte do agressor – mas é possível apenas enquanto os países devedores carregarem voluntariamente o seu fardo. Se não houver um referendo, a economia nacional não pode ser responsabilizada pelo pagamento da dívida, nem mesmo aos seus principais credores: o FMI e o BCE. Bens que foram privatizados graças à pressão exercida pela banca internacional podem ser renacionalizados e tal como as nações que são alvo de ataques militares podem processar aqueles que as atacam, assim também a Grécia pode processá-las pela devastação causada pela austeridade – pela perda de emprego, produtividade e população, bem como pela fuga de capital.
A economia grega não acabará com o dinheiro de qualquer "salvamento" do BCE. Os bancos obterão o dinheiro. Eles gostariam de dar meia volta e emprestá-lo novamente aos compradores da terra, monopólios e outras propriedades que a Grécia está a ser obrigada a privatizar. As taxas cobradas aos seus utilizadores (sem dúvida cobrando encargos no processo, para cobrir os juros e pagarem-se os aumentos de salário habituais nos bens privatizados) serão pagas a título de juro. Não se assemelha tudo isto a um tributo militar?
Margaret Thatcher costumava dizer "Não há alternativa". Mas claro que há. A Grécia pode simplesmente optar por não participar nesta dádiva de bens e privilégios económicos aos credores.
O que é que os colegas de Papandreu na Internacional Socialistas têm a dizer sobre os acontecimentos que se desenrolam na Grécia? Creio que é evidente que a antiga Internacional Socialista está morta, uma vez que Papandreu é o seu líder. Aquilo que é hoje em dia tido como socialismo opõe-se diametralmente às reformas promovidas sob a mesma designação há um século, na época imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Os partidos sociais-democratas e trabalhistas europeus actuais estiveram na linha da frente das privatizações e da financiarização das suas economias sob condições que bloquearam o aumento do nível de vida. O resultado será provavelmente um realinhamento político internacional.
A austeridade económica não consegue, em última análise, assegurar as exigências dos credores
Quinta-feira à tarde o Dow Jones, que já estivera a cair 230 pontos, reagiu subitamente e fechou a perder "apenas" 60 pontos, tudo por causa dos rumores segundo os quais a Grécia tinha dado o seu aval ao plano de austeridade do FMI. Mas o que é a "Grécia"? É apenas o governo? Certamente, não se tratava ainda da totalidade do parlamento. Haverá um voto parlamentar contrário ao interesse público, aceitando a austeridade e as privatizações?
Só um referendo pode comprometer o governo grego com o pagamento de novas dívidas resultantes da austeridade. Só um referendo pode impedir a renacionalização dos bens que foram privatizados. Tal transferência não é legítima sob as concepções comumente aceites de democracia política e económica. De qualquer forma um imposto sobre o rendimento pode recuperar para a economia grega aquilo de que os seus agressores financeiros estão a tentar desapropriar.
A História é rica em exemplos instrutivos. As oligarquias locais da região convidaram Roma a atacar Esparta, e esta derrubou os reis e o seu sucessor Nabis. Em seguida, Roma instalou-se à cabeça de um império oligárquico, usando a violência para assassinar reformadores democráticos internos como os irmãos Graco, mergulhando a República num século de guerra civil. Os interesses dos credores acabaram por dominar inteiramente, e o seu egoísmo mergulhou o Império Romano do Ocidente numa idade das trevas económica e social.
Resta-nos esperar que o resultado seja melhor desta vez. Irá certamente haver luta, num campo fiscal e financeiro mais do que num campo abertamente militar. Tal luta só poderá, em última análise, ser ganha pela compreensão das dinâmicas corrosivas da "mágica combinação dos interesses" e da necessidade social de subordinar os interesses dos credores aos da economia real. Mas para que tal compreensão possa ter lugar, é preciso que a teoria económica seja subtraída da banalidade da sua corrente pós-clássica e neoliberal. [*] Antigo economista da Wall Street. Professor e Investigador na Universidade de Missouri, Kansas City (UMKC), autor de vários livros entre os quais, Super Imperialism: the Economic Strategy of American Empire (Pluto Press, 2002) e Trade, Development and Foreing Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy. Pode ser contactado através do endereço mh@michael-hudson.com
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