Mário Maestri
Desde que os trabalhadores ingressaram na arena política e social, pondo a questão de sua representação, a degeneração de suas lideranças e organizações tornou-se acontecimento recorrente, que assumiu enormes dimensões nos momentos em que as classes exploradas recuaram diante da ofensiva dos exploradores. Karl Marx abordou esse fenômeno nas páginas luminares de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, ao dissecar as razões da degeneração que definiu de “cretinismo parlamentar”.
A primeira grande defecção de lideranças socialistas deu-se no início da II Guerra, quando as principais lideranças operárias europeias aprovaram os créditos militares, levando a que os trabalhadores fossem arrastados ao holocausto imperialista, sem oposição efetiva. A submissão ao militarismo burguês fora salto de qualidade em ruptura anterior, ocorrida na esteira da expansão do capitalismo e das concessões da representação sindical e parlamentar, conquistadas pelos trabalhadores.
Os principais paladinos dos oprimidos europeus acomodaram-se gostosamente às benesses das posições ocupadas nos sindicatos, parlamento, administração, universidades, aparelho dos partidos. Passaram a lutar para aprofundar a integração ao Estado que ainda juravam querer destruir. Já não se dispunham a arriscar a posição a que haviam sido elevados na imprescindível e implacável luta ao capital.
A Essência e a Consciência
No exercício do mandato objetivo e subjetivo outorgado pelo mundo do trabalho, direções operárias passaram a expressar as necessidades de segmentos médios e da aristocracia operária que se aninhavam igualmente à sombra do prestígio e força que os oprimidos adquiriam em duras e longas batalhas. Não mais representavam os setores que, segundo Marx e Engels, “nada tinham a perder, e tudo a ganhar” com a revolução. Queriam, podiam e progrediam no capitalismo, que passaram a defender, sob os olhares complacentes dos exploradores, que lhes apoiaram na estrada da traição que embocavam.
A teoria leninista do partido construiu-se na luta contra a expropriação do mandato delegado pelos trabalhadores por lideranças seduzidas pelo colaboracionismo. Para garantir direção aos oprimidos à altura das suas necessidades, os bolcheviques propuseram que os partidos operários se construíssem, política e organicamente, a partir de trabalhadores de vanguarda nucleados.
Para impedir a infiltração, mesmo inconsciente, do partido da revolução pelo cretinismo parlamentar e o colaboracionismo, afastavam dos órgãos máximos da direção seus dirigentes, enquanto ocupassem postos parlamentares, e não aceitavam militantes que vivessem da exploração do trabalho – industrialistas; latifundiários; comerciantes; banqueiros, etc. Aplicavam o princípio que, no geral, a existência material determina a consciência política e ideológica.
Em 1923, León Trotsky denunciou no opúsculo Curso Novo a burocratização do partido bolchevique, que levaria, décadas mais tarde, ao fim da URSS. Nessa obra premonitória, assinalava que aquele partido perdia sua consistência, por encontrarem-se os trabalhadores ligados à produção em minoria, dominando entre os militantes os membros do aparato administrativo, militar, diplomático, etc., comumente ex-trabalhadores desligados da produção.
No Brasil e no Rio Grande do Sul
Nos anos 1980, a polêmica no PT entre “partido de massa” e “partido de quadros” foi vencida pelos que se opunham à nucleação dos militantes, defendendo organização fluída, controlada e dirigida por parlamentares, administradores, profissionais, etc. Os resultados são conhecidos: hoje, antigos sindicalistas classistas e militantes revolucionários dedicam-se de corpo e alma às necessidades do capital, que os remunera regiamente em bens materiais e imateriais. Nessa safra de trânsfugas engordados pelos bons serviços ao Estado, encontram-se ex-trotskistas lambertistas, mandelistas, morenistas; maoístas, guevaristas, autonomistas, etc., todos arrependidos dos pecados da juventude.
Quando da fundação do PSOL, repetiu-se ritualmente a disputa entre “partido de quadros” e “de massas”, vencendo fulminantemente a desnecessidade da nucleação. Sem o impulso classista das lutas de fins dos anos 1970 conhecido pelo PT, o PSOL construiu-se no geral em torno das tendências de deputados ex-petistas e de frágeis segmentos organizados e não organizados dedicados a verdadeiro trabalho de Sísifo, para dar àquela organização impulsão classista, socialista e marxista.
No Rio Grande do Sul, o operariado industrial e urbano encontrou sempre enorme dificuldade para organizar-se autonomamente, levando a que o movimento social tivesse como eixo sobretudo a luta dos camponeses sem terra, dos bancários e do professorado da rede pública estadual. Nos últimos anos, regrediu fortemente a mobilização dos sem terra, em favor de outras regiões, e a dos bancários, golpeados pela racionalização do setor. Sob a depressão do mundo do trabalho na sociedade sulina, o PSOL regional nasceu e cresceu sobretudo nas classes médias, sob a hegemonia da ex-deputada Luciana Genro e de sua tendência, o MÊS, de fortes tendências colaboracionistas.
Ficando e Saindo do PT
Luciana Genro elegeu-se como deputada estadual, pelo PT, em 1995, com 24 anos, alavancada pelo prestígio eleitoral de seu pai, Tarso Genro, então prefeito da capital. Integrava então pequena tendência estudantil que rompera com a Convergência Socialista [depois PSTU], que se negara a abandonar o PT. Nos anos seguintes, construiu-se como liderança da juventude, estudantes e professores da rede pública radicalizados.
Com a formação do PSOL, consolidou a hegemonia de seu grupo no Sul e estendeu a influência a outros estados, já com prática eleitoreira, uma das razões que levou ao afastamento das principais direções combativas do professorado que confluíram no MES. A crescente socialdemocratização do MES levou-o a priorizar o denuncismo da corrupção, fenômeno agora endêmico no Rio Grande, marginalizando a organização e propaganda classista e socialista. Viveu ativamente a proposta dos fóruns mundiais, de transformar a sociedade no interior do capitalismo. Apoiou acriticamente o nacional-populismo da Venezuela, Bolívia, Equador.
O MÊS defende agora que as revoluções do norte da África não ultrapassem as reivindicações democrático-burguesas. “Sendo revoluções democráticas, aqueles que levantam a bandeira do socialismo estão absolutamente descontextualizados. Hoje não há a possibilidade de criar uma alternativa de massas sob esta bandeira.” [psol50.org.br] O importante escore eleitoral de Luciana Genro, para deputada federal, em 2002 e 2006, e à prefeitura de Porto Alegre, em 2008, facilitaram a arregimentação de vocações parlamentarias e administrativas, algumas realizadas, outras à espera de realização.
De Braços Dados com o Capital
Em outubro de 2008, candidata à prefeitura da capital, Luciana Genro foi de chapéu na mão receber cem mil reais da GERDAU, o principal grupo transnacional rio-grandense, ferindo os próprios estatutos do PSOL. Roberto Robaina, presidente do PSOL sulino, dirigente máximo do MES, companheiro desde sempre de Luciana, afirmou nada ver de mais na iniciativa e estar pronto para outras contribuições semelhantes. A militância socialista e de esquerda do PSOL pataleou, bufou e o coreto seguiu adiante.
Nas passadas eleições, o MES contava com votação estrondosa e reeleger Luciana Genro ao Congresso, Roberto Robaina à assembleia e, talvez, mais um ou dois deputados. Durante o período anterior e na campanha, Luciana, Robaina, Pedro Ruas e o MES centraram obsessivamente a agitação política na denúncia da corrupção do governo Yeda Cruzius, que dera muito pano pra manga, nesse relativo.
Ao igual que nos anos anteriores, a campanha de Luciana comportou infindáveis referências, fotos, afagos e declarações positivas a Tarso Genro, ex-ministro da Educação e, a seguir, da Justiça, candidato a governador. A deputada pousou sentada no colo do papai, para constrangimento da militância psolista. Propondo tratar-se de relação entre pai e filha, apareceu na propaganda televisiva de Tarso Genro ao governo!
A Ver Navios!
Nas últimas eleições, o resultado eleitoral do MES no Sul foi pífio. O escore eleitoral de Luciana Genro despencou, perdendo 56 mil votos, em relação à eleição anterior, não se elegendo para a Câmara. Robaina, que se dava por eleito, sequer morreu na praia. Foram muitas, as razões apontadas do desastre. A fragilidade do programa do PSOL sulino, centrado na denúncia da ex-governadora, esvaziou-se com a sua rejeição eleitoral, que a relegou a uma humilhante terceira colocação.
A orientação política de Luciana, nos últimos anos e na campanha, afastou-a do eleitorado mais combativo. Ela também perdeu contato com o eleitorado mais jovem e menos politizado que, ajudado pelo refluxo social, votou na candidata progressista que parecia expressar a juventude, segundo os padrões mais alienados: ou seja, a candidata mais simpática, mais jovem, mais bonita. Já quarentona e com filho da idade de seu ex-eleitorado, Luciana viu-se substituída por Manuela D’Ávila, do PC do B, de 30 anos, rosto bonito e cabeça vazia, cuja campanha estava centrada na palavra de ordem: “E aí, beleza?” Manuela obteve o mais alto escore eleitoral na eleição – quase 500 mil votos!
Para o militante social, o parlamento é posição transitória e eventual. Luciana ressentiu-se fortemente da perda de mandado mantido havia dezesseis anos. A situação de cidadã comum comprometia toda uma futura trajetória, em direção à prefeitura da capital e, quem sabe, ao governo do estado. A derrota agravava-se com lei anti-nepotismo que proíbe candidatura de parentes até segundo grau de governantes. Por quatro – e, caso Tarso Genro se reeleja, oito – anos, encontrava-se proibida de concorrer a cargo legislativo, em partido sem administração de prefeituras e governos.
Filha não é Parente!
Apenas derrotada, Luciana saiu em campanha, buscando apoios, até mesmo entre políticos direitistas, para reivindicar o direito de candidatar-se, em 2010, a vereadora da capital para, certamente, em 2012, tentar retorno à câmara. Tratava-se de convencer a Justiça Eleitoral de sua excepcionalidade, pois não é do partido de seu pai e diz não depender politicamente dele. Qualquer coisa como “filha” não é “parente”, na esteira da campanha brizolista dos anos 1960, de que “cunhado” não era parente – como realmente não é!
Mas retomar à campanha, após dois anos longe dos holofotes e recursos permitidos pelo parlamento, concorrendo contra dois vereadores de sua tendência, requer indubitavelmente recursos ingentes, impossíveis de obter em tendência de muitos capa-preta e pouquíssimos soldados e peões. Sob o signo da Gerdau, Luciana saiu em busca do dinheiro onde está, esquecendo que toda a mulher de César não deve apenas ser honesta, como deve parecer honesta! E vice versa.
Sob o guarda-chuva de cursinho pré-vestibular para cem alunos carentes, “Projeto Emancipa”, arrancou financiamento quase milionário de grandes empresas privadas. Piorando tudo, sediou inicialmente sua empresa em duas salas do mais tradicional colégio público estatal sulino, o Júlio de Castilhos, agora sob a autoridade paterna pai. Um prato feito para a revista Veja, que lhe dedicou página inteira, na edição de 9 de março, espinafrando a ela, ao seu pai, ao PSOL e a esquerda revolucionária e classista, que nada tem que ver com esse operação estranha.
O Capital e a Revolucionária
O curso é gratuito para os alunos, mas quem paga a coordenação de Luciana, os professores, o aluguel, etc. são cinco grandes empresas capitalistas, entre elas, a PANVEL [rede de farmácias], o ZAFFARI [rede de supermercados], a Icatu Seguros. Em resposta à revista Veja, Lucina jura que os, segundo parece, quinhentos mil reais recebidos, a fundo perdido, não se devem ao “prestigio” do governador, seu pai, mas ao seu “próprio prestigio”!
Luciana não esclarece por que representante de partido que se define anticapitalista e pró-socialista possui suficiente prestígio junto ao grande capital para arrancar-lhe, segundo parece, quinhentos mil reais, ou seja, cinco mil reais por cada aluno! Mensalidade superior à de muito curso de pós-graduação estrito senso! Dinheiro que apoiará, no melhor dos casos, indiretamente, a campanha de Luciana, em 2012. No Sul, a Justiça Eleitoral proibiu os tradicionais albergues gratuitos que deputados sulinos mantinham para professores e alunos do interior, por constituir aliciamento disfarçado de voto.
A operação pode não ser ilegal – sobretudo se Luciana não concorrer a cargo em 2012. Trataria-se apenas de mais uma das doações, apoios e facilitação de negócios, de grandes empresas, para familiares de políticos poderosos que querem agradar. Como a que celebrizou o Lulinha Júnior. Isso porque não há dúvida de que, se Yeda ou Fogaça tivesse vencido, Luciana não obteria as graças da secretaria da Educação, para o aluguel das salas, e o financiamento das grandes empresas, com destaque para a Icatu Seguros, que opera através do Banrisul, banco público estadual.
Privatizando a Educação
Mesmo legal, a operação é certamente imoral, do ponto de vista dos princípios defendidos pelo mundo do trabalho, pelo PSOL e, até algum tempo, pela ex-deputada e pelo MES. Financiando políticos, o capital compra-lhes a simpatia, a condescendência, e os favores, já que “é dando que se recebe”. Por que esse processo não funcionaria também no caso de Luciana Genro?
A ex-deputada rompe, igualmente, com o princípio da luta pela escola livre, gratuita e pública, impulsionando a suplência das carências públicas com a benevolência do capital, sempre interessada. Fere gravemente a proposta do não envolvimento do Estado, através de seus funcionários e bens, em iniciativas privadas. Ou seja, contribui para a privatização do Estado.
Sobretudo, Luciana Genro dá enorme tiro no seu próprio pé. Nenhum juiz eleitoral vai acreditar que não é favorecida, mesmo materialmente, pela posição de seu pai como governador, com ou sem o conhecimento do mesmo. Tarso Genro se afastou há muito das posições classistas e socialistas, mas jamais rompeu com o respeito republicano estrito aos bens públicos. Salvo engano, até agora, ele não se pronunciou sobre a operação empresarial de sua filha, à sombra do Estado.
Mário Maestri, 62, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net
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