O desembargador José Osório de Azevedo Júnior analisa o episódio do bairro Pinheirinho sob o viés jurídico e defende que casos como esse não podem ser cumpridos de forma direta, específica. “São ordens inexequíveis. Elas são juridicamente impossíveis”
Por: Graziela Wolfart e Thamiris Magalhães
O desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Civil, José Osório de Azevedo Júnior, considera que a ação que dizimou o bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos (estado de São Paulo) “foi uma ordem que não podia ser cumprida porque era inexequível. Era uma ordem insana. E os fatos comprovaram isso”. Na entrevista que aceitou conceder por telefone para a IHU On-Line, ele traz dados didáticos e informativos sobre o caso à luz do Direito. Para ele, “o sistema jurídico brasileiro foi afrontado de uma maneira grosseira e em muitos pontos” no caso Pinheirinho.
Para José Osório, a aplicação do princípio da função social da propriedade ainda não foi muito bem absorvida pelo judiciário como um todo. “Nos casos mais chocantes não se pode valorizar uma propriedade, um direito meramente patrimonial, em detrimento dos valores superiores. Isso está muito claro, é só estudar mais um pouco Direito. É elementar na ciência do direito que as normas legais, as leis, não são da mesma categoria. Essas normas legais se ajustam, se arrumam numa forma piramidal. As leis inferiores estão na base e no alto estão as leis constitucionais, as leis superiores. É evidente que no choque entre as duas, tem-se que preponderar aquelas que estão em cima. Na hora da aplicação da lei o juiz e o governador devem levar isso em conta”, defende.
Sobre o governo Dilma, José Osório considera como um grande instrumento o programa “Minha casa, Minha vida”, que merece elogio em relação à questão da posse. No entanto, ele critica o programa em relação à questão financeira.
José Osório de Azevedo Júnior é mestre em Direito Civil pela PUC-SP, onde é professor de Direito Civil desde 1973. Foi vice-presidente e presidente do 1.º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, aposentando-se em fevereiro de 2002. É ex-conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, e ex-membro da sua Comissão de Ética e Disciplina.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o senhor afirma que uma decisão judicial só deve ser obrigatoriamente cumprida para os casos corriqueiros. Que casos corriqueiros seriam esses no Brasil?
José Osório de Azevedo Jr. – São casos corriqueiros esses do dia a dia, em que um direito individual foi afrontado e a pretensão do prejudicado foi reconhecida pela justiça. Esses casos diferem dos gravíssimos, que são aqueles com enormes consequências sociais e humanas, como no Pinheirinho, cuja execução afetou a vida de mais de cinco mil pessoas indefesas, impotentes de qualquer reação. É evidente que um caso desses não pode ter o mesmo tratamento de uma pessoa que teve um objeto furtado, que teve o terreno da sua casa invadido e que quer recuperá-lo.
Para José Osório, a aplicação do princípio da função social da propriedade ainda não foi muito bem absorvida pelo judiciário como um todo. “Nos casos mais chocantes não se pode valorizar uma propriedade, um direito meramente patrimonial, em detrimento dos valores superiores. Isso está muito claro, é só estudar mais um pouco Direito. É elementar na ciência do direito que as normas legais, as leis, não são da mesma categoria. Essas normas legais se ajustam, se arrumam numa forma piramidal. As leis inferiores estão na base e no alto estão as leis constitucionais, as leis superiores. É evidente que no choque entre as duas, tem-se que preponderar aquelas que estão em cima. Na hora da aplicação da lei o juiz e o governador devem levar isso em conta”, defende.
Sobre o governo Dilma, José Osório considera como um grande instrumento o programa “Minha casa, Minha vida”, que merece elogio em relação à questão da posse. No entanto, ele critica o programa em relação à questão financeira.
José Osório de Azevedo Júnior é mestre em Direito Civil pela PUC-SP, onde é professor de Direito Civil desde 1973. Foi vice-presidente e presidente do 1.º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, aposentando-se em fevereiro de 2002. É ex-conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, e ex-membro da sua Comissão de Ética e Disciplina.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o senhor afirma que uma decisão judicial só deve ser obrigatoriamente cumprida para os casos corriqueiros. Que casos corriqueiros seriam esses no Brasil?
José Osório de Azevedo Jr. – São casos corriqueiros esses do dia a dia, em que um direito individual foi afrontado e a pretensão do prejudicado foi reconhecida pela justiça. Esses casos diferem dos gravíssimos, que são aqueles com enormes consequências sociais e humanas, como no Pinheirinho, cuja execução afetou a vida de mais de cinco mil pessoas indefesas, impotentes de qualquer reação. É evidente que um caso desses não pode ter o mesmo tratamento de uma pessoa que teve um objeto furtado, que teve o terreno da sua casa invadido e que quer recuperá-lo.
IHU On-Line – Qual é a dificuldade em se fazer cumprir a justiça para esses casos mais gravíssimos?
José Osório de Azevedo Jr. – Isso é simples, basta não cumprir. Esses casos não podem ser cumpridos de forma direta, específica, “limpando” o terreno. São ordens inexequíveis. Elas são juridicamente impossíveis. Nesses casos converte normalmente em perdas e danos. O comum, no Direito, sempre que um ato se torna juridicamente impossível, é ser convertido em perdas e danos. Porque não é possível obrigar uma pessoa a fazer certos atos que ofendem a natureza humana. E não é só o particular que invade terrenos. O poder público, com frequência, também invade terrenos para construir coisas. Acha que o processo de desapropriação vai demorar muito, então constrói um pedaço da estrada ou um edifício público num imóvel particular, sem desapropriar. O que acontece? O particular pode pedir a reintegração de posse? Não pode, pois não vai destruir a estrada para pegar de volta aquele imóvel. Há mais de 60 anos que o direito brasileiro descobriu isso. Então, o governo, o poder público vai indenizar, na chamada desapropriação indireta. Não é comum reintegrações de posse não poderem ser executadas de forma direta. Nesse caso do Pinheirinho, aparece como um dos problemas mais difíceis a questão de quem vai pagar essa indenização. Por enquanto, o que nos interessa, é isto: essa decisão não pode ser cumprida de maneira específica.
IHU On-Line – Então, nesses casos, o recomendado seria uma espécie de flexibilização no cumprimento da lei?
José Osório de Azevedo Jr. – Muito bem, é isso mesmo.
IHU On-Line – Por que o direito brasileiro não é monolítico?
José Osório de Azevedo Jr. – Não é monolítico por dois motivos: primeiro porque o direito brasileiro não é só isso que foi exibido nesse lamentabilíssimo episódio. Já existem decisões que mostram que é inviável a recuperação física da posse da favela. E também não é monolítico porque, como você disse muito bem, o direito é flexível, principalmente nas regras abertas, mais amplas como, por exemplo, quando se defende a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade e a boa fé. São regras amplas e nelas o processo de criação do direito, o processo legislativo, não se esgota com o ato do legislador. A criação do direito será completada no ato de aplicação do juiz. Daí a importância do judiciário e da força que o juiz tem hoje para contribuir para este sinal de criação do direito.
IHU On-Line – Então podemos dizer que no episódio do Pinheirinho não houve muita flexibilização?
José Osório de Azevedo Jr. – Não teve nenhuma. Foi uma ordem que não podia ser cumprida porque era inexequível. Era uma ordem insana. E os fatos comprovaram isso.
IHU On-Line – De que maneira o episódio do Pinheirinho afrontou os princípios da legislação, dos julgados e da ciência do direito?
José Osório de Azevedo Jr. – O episódio afrontou a legislação em bloco. Não foi só um artigo aqui, outro ali. O sistema jurídico brasileiro foi afrontado de uma maneira grosseira e em muitos pontos. O primeiro deles, a Constituição Federal, a maior de todas as leis, foi afrontada. E dou outros exemplos: foi afrontado também o Código de Processo Civil, que tem um artigo que diz que os atos processuais só podem ser praticados em dias úteis. No entanto, tudo ocorreu num domingo, às 6 horas da manhã. Esse mesmo artigo remete para a Constituição Federal, em um artigo que diz que a casa é o asilo inviolável do indivíduo e que ninguém pode entrar lá a não ser que o morador aceite ou então se está havendo uma prática de crime e, só nesses atos, é que o juiz pode autorizar a entrada na casa de moradia de uma pessoa, de uma família. Outros dispositivos da Constituição também foram violados, a começar pelo primeiro deles, que é o artigo primeiro, inciso 3, que diz que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República. E mais: a propriedade deve cumprir a sua função social. Depois, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra das pessoas (“Ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”). Além disso, foram violadas as leis de proteção aos animais. E aqui peço licença para ler um trecho de uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo, de 12-02-2012, intitulada “Adeus, Pinheirinho”. A matéria conta a história de uma veterinária que foi até lá com algumas companheiras e estavam horrorizadas tentando salvar centenas de gatos e cachorros famintos, abandonados, estressados. Diz a matéria: “18 dias depois daquela guerra, os gatos e cachorros estão esfomeados, assustados, desidratados, mas ainda esperam por seus donos em cima dos escombros das casas em que viviam. O grupo de voluntárias ainda andou por todo o terreno e encontrou dezenas de animais mortos. Os donos saíram ‘corridos’, muitos deixaram seus animais trancados em casa para evitar que se perdessem. Quando as retroescavadeiras entraram, derrubando tudo, três dias depois, soterraram os bichos. Um dos animais resgatados foi um cãozinho recém-nascido, localizado enquanto tentava mamar na mãe morta. Ele não resistiu”. Quer mais alguma afronta?
A aplicação do princípio da função social da propriedade ainda não foi muito bem absorvida pelo judiciário como um todo. Nos casos mais chocantes não se pode valorizar uma propriedade, um direito meramente patrimonial, em detrimento dos valores superiores. Isso está muito claro; é só estudar mais um pouco Direito. É elementar nessa ciência que as normas legais, as leis, não são da mesma categoria. Essas normas legais se ajustam, se arrumam numa forma piramidal. As leis inferiores estão na base e no alto estão as leis constitucionais, as leis superiores. É evidente que, no choque entre as duas, precisam preponderar as que estão em cima. Na hora da aplicação da lei o juiz e o governador devem levar isso em conta.
IHU On-Line – No seu entendimento, qual foi o grande erro do Judiciário e do Executivo no caso Pinheirinho?
José Osório de Azevedo Jr. – O grande erro foi não perceber essa enorme alteração da situação de fato. Passaram-se os anos e o que era um imóvel rural passou a ser um bairro. Então, aquilo que podia ter uma motivação jurídica digna, que era a recuperação de posse imediata, deixou de ter. Tanto o tribunal como o governador não perceberam isso, ou seja, que aquela ordem, que poderia ser, em tese, digna de proteção legal naquele momento, já deixou de ser. Faltou sensibilidade para os dois chefes de poder, porque o presidente do Tribunal de São Paulo avalizou o cumprimento dessa ordem e mandou seu assessor, um juiz de direito, acompanhá-la. O governador não teve coragem suficiente para descumprir a ordem, o que ele poderia ter feito, justificando que também está submetido à Constituição.
IHU On-Line – O que o caso do Pinheirinho deixou de lição para a sociedade civil, aos estudantes de direito e profissionais da área?
José Osório de Azevedo Jr. – Ele mostra, em primeiro lugar, a insensibilidade das instituições da maior importância. O cidadão e a sociedade paulista e brasileira ficaram estarrecidos com o que aconteceu lá. Então, escancarou essa fragilidade das instituições que não souberam resolver o impasse em nenhum momento: nem antes, complicou ainda mais durante, e evidentemente que não tem arranjo para se resolver no futuro. Mostra também a necessidade de se estudar mais direito, com maior senso de realidade e de distinguir quais são os valores principais que entram em choque. O positivo foi a repercussão do caso, graças em grande parte, à imprensa, que lançou o caso ao conhecimento público.
IHU On-Line – Qual sua avaliação da política habitacional do governo Dilma?
José Osório de Azevedo Jr. – Vi no jornal uma declaração da presidente da República em que ela disse que o episódio do Pinheirinho era uma barbaridade. E foi mesmo. De todos os poderes, o que se saiu menos mal, nesse caso, foi o federal. Os poderes municipal e estadual é que foram, a rigor, os causadores de tudo o que aconteceu. É claro que o normal é a expropriação da área. O ideal seria não deixar acontecer, mas sabemos que esse fenômeno não é só nosso, é mundial, principalmente nos países em desenvolvimento. Então, o governo federal não se saiu mal. Sobrou um pouco para ele, porque um caso desses atinge todo mundo. Se estivesse bem organizado, esse imóvel já estaria desapropriado. Não vejo o governo federal com uma conta direta no caso, mesmo a indireta é difícil atribuir, só uma culpa em sentido muito amplo.
Parece-me que o governo Dilma é uma sequência, nessa linha, do governo anterior. O grande instrumento foi o programa “Minha casa, Minha vida” e a atual presidente está dando sequência a isso. Esse programa tem coisas muito interessantes. E merece elogio na parte que é mais ligada à minha área de estudo, que é a posse. Dá elementos para o poder público municipal entrar no circuito e fazer o projeto de regularização fundiária, de cadastrar os possuidores, os ocupantes dessas habitações. E daí sai um cadastro, o que parece algo de enorme importância, porque o possuidor passa a ter um título administrativo, um título de posse. Com isso ele tem garantia, tem um valor econômico, se ele quiser pode até vender. Começa-se a ficar um pouco mais legalizada a situação da posse.
Entre outras coisas, houve um erro, a meu ver, da lei, que diz que, com o registro da posse no registro de imóveis e com o passar do tempo (mais de cinco anos), o possuidor adquire a propriedade. Isso é um erro, porque a propriedade no usocapião é adquirida só com o passar do tempo. Não é a sentença do juiz e muito menos uma declaração do registro de imóveis que vai dar a propriedade.
O que achei ruim no programa é que o setor financeiro conseguiu enxertar um artigo dizendo que os juros podem ser capitalizados mensalmente. Isso é terrível, é o que transforma as dívidas em uma “bola de neve” e quando vê o devedor está surpreendido porque deve muito mais do que imagina. Aqui se vê a sucção de dinheiro da classe pobre para a classe rica. Nessa parte financeira o programa merece críticas severas. Entendemos que o governo quis seduzir o setor financeiro para investir na moradia. Para a classe média que pode pagar, tudo bem. Mas na linha da camada realmente pobre, isso não tem nenhum sentido.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/
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