segunda-feira, 17 de maio de 2010

A renda mínima como um direito à cidadania (Parte 2)

O Programa de Garantia de Renda Mínima, PGRM, ao lado da efetiva realização da reforma agrária, constitui-se num dos instrumentos de política econômica que mais eficazmente poderá ajudar o Brasil a alcançar os objetivos de estabilidade de preços, de crescimento com concomitante melhoria na distribuição de renda e, com atenção especial, de erradicação da miséria.
A proposição da garantia de uma renda mínima acompanha a história da humanidade. Encontra adeptos em extraordinário espectro de pensadores em praticamente todos os países.
Thomas More, em "Utopia", em 1516, relata o diálogo entre o viajante Rafael Hitlodeu, o cardeal arcebispo e outro personagem sobre a ineficácia da pena de morte para diminuir os roubos: "Ao invés de infligir estes horríveis castigos, seria muito melhor prover a todos algum meio de sobrevivência, de tal maneira que ninguém estaria se submetendo à terrível necessidade de se tornar primeiro um?????l?? ?U? ladrão e depois um cadáver". Com base nesta reflexão, um amigo de Thomas More, Juan Luis Vives, dez anos depois, em 1526, fez a primeira proposta de renda mínima para a cidade flamenga de Bruges, em "De Subventione Pauperum", onde ela foi implementada.
Há 200 anos, um dos principais ideólogos das revoluções americana e francesa, Thomas Paine, em "Agrarian Justice", num ensaio que enviou ao Diretório Francês, expressou que "Todo indivíduo nasce no mundo com um legítimo direito a uma certa forma de propriedade, ou sua equivalente". Paine argumentou que "todo proprietário que cultiva a terra deve à comunidade um aluguel pela mesma". ", propondo a criação de um fundo nacional, o qual produziria rendimentos que seriam pagos na forma de dividendos iguais para todos para compensar pela perda desta herança natural.
Bertrand Russel, em "Os Caminhos da Liberdade", 1918, afirmou que "o plano que estamos preconizando reduz-se essencialmente a isso: que certa renda, suficiente para as necessidades, será garantida a todos, quer trabalhem ou não, e que uma renda maior - tanto maior quanto o permita a quantidade total de bens produzidos - deverá ser proporcionada aos que estiverem dispostos a dedicar-se a algum trabalho que a comunidade reconheça como valioso".
A proposição de um dividendo social igual para todos, por formas variadas, foi defendida pelo casal E. Mabel e Dennis Milner, em 1919, por George D. H. Cole, em 1929 e 1935, pelo Prêmio Nobel de Economia de 1977, inglês James Edward Meade, em 1935, por Oskar Lange, em 1936, por Joan Robinson, em 1937 e por Abba P. Lerner, em 1944. A contribuição destes economistas está bem amadurecida sobretudo na obra recente de James E. Meade, "Liberty, Equality and Efficiency", de 1993, em que relata as características de "Agathotopia", um bom lugar para seres humanos imperfeitos, onde os principais arranjos sociais, como a flexibilidade de preços e salários, a associação entre empresários e trabalhadores e um dividendo igual para todos, significariam a maneira de compatibilizar os ideais de liberdade, igualdade e eficiência.
Da parte daqueles que defenderam com mais eloqüência o capitalismo, vários laureados com o Nobel de Economia surgiram como defensores da renda mínima e do imposto de renda negativo. Friedrich A. Von Hayek, em 1944, defendeu "a salvaguarda contra graves privações físicas, a certeza de que um mínimo de meios de sustento será garantido a todos". George Stigler, em 1946, mostrou que o imposto de renda negativo seria a melhor maneira de proteger a remuneração dos que, de outra forma, ganhariam muito pouco. Milton Friedman, popularizou a defesa do imposto de renda negativo, em 1962, como o mais eficaz instrumento para combater a pobreza.
Em 1968, John Kenneth Galbraith, James Tobin e Paul A. Samuelson lideraram um manifesto assinado por 1.200 economistas solicitando ao Congresso Norte-Americano que aprovassem um sistema nacional de suplementação e de garantia de renda, o que já havia sido a recomendação expressa da Comissão Heinemann, designada pelo presidente Lindon Johnson, para estudar as medidas que os EUA deveriam instituir para realizar a "Guerra contra a Pobreza".
Foi em 1969 que o presidente Richard Nixon, com a cooperação de Daniel Patrick Moynihan, ex-membro dos gabinetes Kennedy e Jonhson, apresentou o Plano de Assistência à Família. Segundo o "Family Assistance Plan", FAP, toda família cuja renda não atingisse pelo menos US$ 3.900 por ano teria direito a um imposto de renda negativo equivalente a 50% da diferença entre aquele patamar e a sua renda. Por duas vezes o projeto foi rejeitado pelo Senado, após ter sido aprovado na Câmara dos Deputados.
A interessante lição mostrada por Moynihan é que os "liberais", pretendendo obter mais do que Nixon havia proposto, acabaram nada obtendo. Alguns, por exemplo, queriam que a renda familiar mínima anual fosse de US$ 5.500, o que levaria a um estouro do orçamento da época. Na segunda votação no Senado, os conservadores realizaram brilhante manobra utilizando as contradições dos "liberais" para derrotar diferentes versões do FAP.
Mais adiante, por iniciativa do Senador Russell Long, democrata de Lousiana, foi criado o "Earned Income Tax Credit", EITC (Crédito Fiscal por Remuneração Recebida), uma forma de imposto de renda negativo para famílias com renda anual inferior a US$ 26.673, que se tornou lei em 1975 no Governo Geraldo Ford. Com apoio de democratas e de republicanos, o EITC foi aumentado por iniciativa dos presidentes Ronald Reagan, em 1986, George Bush, em 1990, e, mais significativamente, Bill Clinton, em 1993.
Neste ano de 1995, prevê-se que 18.425.000 famílias receberão um total de US$ 23,3 bilhões, representando um crédito fiscal, em média, de US$ 1.265 por família. Trata-se, portanto, de um programa que beneficia cerca de 45 milhões de pessoas nos EUA. O professor Albert Hirschman, por ocasião de sua visita ao Brasil para a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso, contou-me que considerava a ampliação do EITC a maior realização do presidente Clinton.
Na Europa, quase todos os países, como a Grã-Bretanha, Alemanha, Suécia, Bélgica, entre outros, proporcionam o benefício à criança até que complete seus estudos fundamentais, como um direito à cidadania. A França instituiu a Renda Mínima de Inserção, em 1988. A iniciativa do presidente François Mitterand e do primeiro ministro Michel Rocard foi aprovada consensualmente pela Assembléia ?????l?? ?U?Nacional e beneficia toda pessoa de 25 anos ou mais cuja renda mensal não atinge pelo menos 2.600 francos. Na Guiania, território ultramar da França, a RMI é vigente com valores 20% menores. Também a Espanha, a partir de 1988, com leis para cada província, instituiu a Renda Mínima de Inserção, a partir da preocupação dos sindicatos junto ao governo que algo deveria ser criado para proteger os trabalhadores menos qualificados e organizados.
Em 1986, foi criada a Rede Européia da Renda Básica, "Basic Income European Network", BIEN, com o propósito de se tornar um fórum para debater intensamente todas as experiências de renda de mínima, básica ou de cidadania, nos mais diversos países. Esta entidade tem propugnado pela instituição de uma renda pequena, porém, incondicional a todas as pessoas numa sociedade, independente de sua origem, raça, sexo, situação civil, de emprego ou econômica. Para os que desejam conhecer bem os fundamentos, é bom ler as obras de um dos principais fundadores da BIEN, Philippe Van Parijs.
Há um lugar do mundo em que se instituiu uma renda básica. Em 1976 o estado americano do Alasca passou a destinar pelo menos 25% de todos os "royalties" provenientes da exploração de minérios, como o petróleo, ao Fundo Permanente do Alasca. O patrimônio do Fundo passou de US$ 1 bilhão, em 1980, para US$ 17 bilhões, em 1995. A partir de 1982, cada habitante do Alasca, com a única condição de estar morando lá há pelo menos um an?????l?? ?U?o, vem recebendo um dividendo que, em 1995, atingiu US$ 990.
Aqui no Brasil os primeiros economistas a propor uma renda mínima através de um imposto de renda negativo foram Antonio Maria da Silveira, em 1975, e Edmar Bacha, em 1978. Mais recentemente, muitos economistas têm de alguma forma apoiado a proposta. O PGRM, tal como aprovado pelo Senado, prevê um imposto de renda negativo da ordem de 30% a 50% da diferença entre R$ 210 (novembro 1995) e a renda da pessoa de 25 anos ou mais cuja renda não atinja aquele patamar.
O PGRM está sendo aplicado regionalmente com uma variante interessante. Durante o debate havido em 1991 entre economistas do PT, José Márcio Camargo propôs que devesse ser implementado prioritariamente para as famílias que tivessem filhos em idade escolar, até 14 anos, desde que fossem efetivamente à escola pública. No Uruguai e na Argentina, há décadas foi instituída a "Asignacion Familiar", que prove uma renda às famílias para que suas crianças frequentem a escola.
Em 1995, os Governo Cristovam Buarque (PT) e José Roberto Magalhães Teixeira (PSDB), no Distrito Federal e em Campinas, iniciaram programas de renda mínima relacionados à educação. Projetos de natureza semelhante foram recentemente sancionados em Salvador, Ribeirão Preto, Sertãozinho, Londrina e Campo Grande. Out?????l?? ?U?ros projetos nesta direção estão em vias de ser aprovados nas câmaras municipais de São Paulo, São José dos Campos, Jundiaí, Piracicaba, Rio de Janeiro, Curitiba, Angra dos Reis, Ipatinga, Belo Horizonte, Goiânia, Fortaleza e nas assembléias legislativas de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Piauí, Sergipe etc.
No Senado, quando pela primeira vez apresentei o projeto, houve quem dissesse, como o senador Pedro Simon, que de início lhe parecia tratar-se de uma idéia estranha. Depois que a compreendeu, entretanto, votou com entusiasmo a favor. O próprio presidente Fernando Henrique Cardoso, então líder do PSDB no Senado, encaminhou favoravelmente a votação, qualificando o PGRM de "Uma utopia realista, com os pés no chão... tendo o Senado colocado os pingos nos iis para torná-lo factível." Em dezembro de 1991, o projeto foi aprovado por todos os partidos.
O projeto encontra-se hoje tramitando na Câmara dos Deputados, na Comissão de Finanças e Tributação, onde obteve o parecer favorável do Deputado Germano Rigotto (PMDB-RS). A sua discussão em tantos municípios brasileiros tem levado a um interesse crescente pela matéria, prevendo-se para breve a sua votação de forma bastante amadurecida e consciente. Enquanto que o Ministro da Fazenda, Pedro Malan, já expressou, no Senado, a sua simpatia pelo PGRM, o Ministro do Planejamento, José Serra, tem mostrado resistência à idéia, seja pelo que pode custar, ou por pre?????l?? ?U?ferir, segundo expressou no Congresso, programas setoriais específicos como o seguro-desemprego e o funrural. Serra poderia refletir sobre as palavras de Galbraith na décima conferência anual do "Journal of Law and Society":
"Existe, primeiro, o inescapável requerimento de que toda pessoa em uma boa, ao menos decente, sociedade deveria ter uma fonte básica de renda. E se isto não for possível através do sistema de mercado, como assim é hoje chamado, então é preciso que venha do Estado. Não vamos nos esquecer que nada determina um limite mais forte à liberdade do cidadão do que a total ausência de dinheiro".
Como será possível financiar um programa que poderá custar cerca de 3% do Produto Interno Bruto? Desde que venhamos a considerar a erradicação da miséria como um dos objetivos fundamentais da Nação, conforme expresso no Artigo 3, Inciso III da Constituição, e que estejamos dispostos a substituir programas menos eficazes do que este, certamente encontraremos meios de remanejar despesas e criar receitas nos orçamentos dos três níveis de governo, de forma coordenada, para o implementarmos em todo o país. A princípio, devemos analisar o nível de isenções e incentivos fiscais concedidos anualmente. No projeto de lei orçamentário de 1996 consta estimativa que estabelece os benefícios tributários em 3,22% do PIB.
No âmbito das ações sociais, a substituição de programas de distribuição de cestas básicas, por exemplo, pela transferência monetária diretamente às pessoas, na forma do PGRM, altera o seu caráter na direção de um direito universal à cidadania. Ao mesmo tempo, gera atividade econômica local e, portanto, uma base tributável que permitirá sua estruturação orçamentária dos municípios e a redução de sua dependência financeira.
As experiências locais do PGRM demonstram a sua viabilidade. Na medida em que o direito se universalizar, nenhum brasileiro ficará propenso a migrar de sua região por falta total de meio de subsistência. Conforme indicam estudos, os efeitos do PGRM sobre o crescimento da economia e do emprego, sobretudo para os setores de bens de consumo popular seriam altamente estimulantes. Para financiar a renda mínima como um direito à cidadania poderemos instituir um Fundo Brasil de Cidadania. Assim como o Alasca criou um fundo baseado em sua principal riqueza natural, o petróleo, poderíamos criar um fundo que se baseasse em toda a riqueza gerada no País. Para chegarmos ao Século XXI como exemplo de equidade, a garantia de renda mínima deve ser vista como imperativa.
Ata de publicação: jan/fev 1996Veículo: Revista Esquerda

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