Oposição faz campanha livremente, mas a mídia dominante ignora as eleições municipais cubanas, que acabam de ser realizadas. Ao lado da participação exercida diretamente pela população, elas são parte da atual democracia cubana. O povo cubano está satisfeito? O tema da participação popular e da eficácia do sistema de representação tem sido discutido nas assembleias populares. Muitos dizem que o parlamento é eleitoralmente democrático, mas os deputados têm pouca autonomia para decidir.
Por Hideyo Saito (*)
Ocupada em denunciar a suposta ditadura existente em Cuba, quase toda a mídia dominante brasileira ignorou as eleições municipais cubanas, que acabam de ser realizadas, inclusive com participação de setores dissidentes. O primeiro turno aconteceu em 25 de abril e o segundo, nas circunscrições em que ninguém obteve maioria absoluta, em 2 de maio último. Foi o 14º pleito consecutivo desde a institucionalização da revolução cubana, em 1976, quando foi aprovado, em referendo popular, o texto da Constituição Socialista, após um processo de exaustivas discussões em locais de trabalho, em escolas, em bairros e em comunidades rurais de todo o país.
Ocupada em denunciar a suposta ditadura existente em Cuba, quase toda a mídia dominante brasileira ignorou as eleições municipais cubanas, que acabam de ser realizadas, inclusive com participação de setores dissidentes. O primeiro turno aconteceu em 25 de abril e o segundo, nas circunscrições em que ninguém obteve maioria absoluta, em 2 de maio último. Foi o 14º pleito consecutivo desde a institucionalização da revolução cubana, em 1976, quando foi aprovado, em referendo popular, o texto da Constituição Socialista, após um processo de exaustivas discussões em locais de trabalho, em escolas, em bairros e em comunidades rurais de todo o país.
Importantes alterações surgiram dessa mobilização, que se estendeu por dois anos: a comissão de redação teve de alterar o preâmbulo e cerca de 60 dos 141 artigos originais do anteprojeto.Nas últimas eleições, dos 37.766 candidatos para as Assembleias dos 169 municípios do país, indicados diretamente pelos moradores em cada circunscrição (área de mais ou menos uma quadra), os negros e mulatos somavam 41,3% e as mulheres, 35,76%. Os postulantes à reeleição eram 60,9%. Três quartos deles nasceram após a vitória da revolução, em 1959, e 87,3% têm o ensino médio completo ou formação universitária. Pouco mais de 8,2 milhões de cubanos (aproximadamente 94,7% dos eleitores) participaram do primeiro turno, enquanto no segundo e no terceiro (convocado em três circunscrições, onde nem mesmo a segunda votação apontou um vencedor) compareceram às urnas 1,65 milhão (89,67% do total).
O voto é facultativo e podem exercer esse direito todos os cubanos a partir de 16 anos de idade. A presidente da Comissão Eleitoral Nacional, Ana María Mari Machado, informou que, no primeiro turno, os votos válidos superaram 91% do total, enquanto as cédulas em branco somaram 4,58% e as anuladas, 4,33% (1).
A campanha eleitoral dos dissidentes
O manto de silêncio erguido por quase todos os oligopólios da comunicação foi furado pela Agência BBC Mundo, que cobriu o processo eleitoral, não deixando de registrar a participação de setores contrários ao governo (2). Matéria assinada pelo correspondente em Havana, Fernando Ravsberg, relata que um grupo de opositores fez campanha em todo o país, com o objetivo de conquistar apoio para seus candidatos nas assembleias das circunscrições eleitorais. Um dos líderes do grupo é Silvio Benítez, que se apresenta como presidente do Partido Liberal. Ele reconhece que as organizações de oposição têm pouca penetração, mas acredita que elas podem crescer.
A reportagem da BBC acompanhou a assembleia eleitoral em que Silvio se indicou candidato, em Punta Brava, nos arredores de Havana. Segundo Ravsberg, estavam presentes cerca de 120 eleitores. Houve críticas e questionamentos tanto ao governo como ao dissidente postulante, mas sem agressões, insultos e muito menos repressão. O único guarda que o jornalista observou estava ocupado com o trânsito de veículos na rua em frente. Na assembleia, alguns moradores propuseram indicar para reeleição a atual delegada, uma médica pertencente ao Partido Comunista, enquanto Silvio se apresentou como candidato opositor. A médica obteve 50 indicações, enquanto o dissidente recebeu 20. Houve ainda 50 abstenções. Ravsberg concluiu que Benítez não conseguiu ser indicado, mas “fez com que muita gente se abstivesse”.
Após a eleição propriamente dita, a BBC acompanhou a apuração dos votos (também realizada publicamente) no colégio eleitoral correspondente à mesma circunscrição, e constatou que houve crescimento do número de pessoas que não votaram em nenhum dos candidatos: a soma de abstenções, votos anulados e em branco chegou a 20% dos eleitores (a média nacional, como vimos acima, foi de aproximadamente 15%). Silvio Benítez diz que está disposto a fazer um trabalho “casa por casa, como os Testemunhas de Jeová”, para conquistar o apoio de pessoas que já não votam na proposta governamental (3). Em sua campanha, ele procurou “questionar as barbaridades e a manipulação do governo, as farsas e as faltas de resposta ao povo”, segundo suas inflamadas palavras.
Não há veto, mas oposição teme mostrar falta de votos
O correspondente da BBC Mundo escreveu que era a primeira vez que os dissidentes cubanos participaram de eleições oficiais no país, mas ele mesmo já havia produzido matéria relatando como, em 2007, o candidato Gerardo Sánchez, apresentando-se como dissidente, obteve apenas 5% dos votos dos moradores de sua circunscrição. Na reportagem, Gerardo criticou os grupos dissidentes por se afastarem do processo eleitoral: “Quando me dizem que a oposição está forte em algum bairro, eu pergunto se ela tem condição de apresentar candidato. Se me respondem ‘não’, concluo que não é verdade o que me estão dizendo” (4).
Ele é irmão de Elizárdo Sánchez, o presidente da Comissão Cubana de Direitos Humanos, um dos heróis mais festejados da mídia dominante, que, entretanto, jamais quis se apresentar candidato. Como vimos, não há qualquer restrição à campanha e à participação dessas pessoas. O que acontece é que a maioria prefere ficar à margem para não tornar visível a sua falta de popularidade. Eles preferem pregar o voto nulo. O presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia Nacional, José Luis Toledo, declarou à BBC: “Se eles alcançarem representatividade suficiente para que o povo os indique e depois vote neles, serão representantes. O problema é querer representar o povo sem ter seu apoio”. As eleições municipais acontecem a cada dois anos e meio, enquanto as provinciais e as nacionais, a cada cinco.
Todas são por voto popular direto. Os candidatos às assembleias municipais são indicados diretamente pelos moradores de cada circunscrição entre seus vizinhos, enquanto os das provinciais e nacionais são indicados por uma comissão de candidatura constituída por representantes das seis principais organizações de massa de caráter nacional: Comitê de Defesa da Revolução, Federação das Mulheres Cubanas, Central de Trabalhadores de Cuba, Federação Estudantil Universitária, Federação dos Estudantes do Ensino Médio e Associação Nacional dos Pequenos Agricultores.
O Partido Comunista de Cuba e a União de Jovens Comunistas não apresentam candidatos nem participam, como tal, do processo, pois não têm caráter eleitoral como nas democracias capitalistas. Também não há propaganda política, nem marqueteiros, nem dinheiro influenciando o voto popular. A única divulgação dos candidatos é feita através de folhetos preparados pela comissão eleitoral e afixados em locais públicos, com uma pequena biografia e uma foto de cada postulante, além de debates dos postulantes com os moradores.
Eleitos continuam a receber o mesmo salário, sem mordomia
Os delegados eleitos escolhem, entre seus pares, o presidente e o vice da Assembleia Municipal, órgão que tem a responsabilidade de administrar e fiscalizar os serviços públicos e as empresas industriais, comerciais e de prestação de serviços que estiverem sob jurisdição de seu município. Indicam, também dentre os eleitos, os membros do Conselho Popular, estrutura permanente para apoiar o trabalho dos delegados municipais. Todo representante cubano deve prestar contas de sua atuação, em reuniões convocadas periodicamente para essa finalidade, aos cidadãos de sua base eleitoral ou ao órgão que o indicou.
Ele está sujeito à revogação de mandato por insuficiência de desempenho ou por conduta incompatível com a representação popular. Assim, delegados municipais podem ter seus mandatos interrompidos pelos eleitores da circunscrição; representantes provinciais e nacionais, pelas Assembleias Municipais que aprovaram suas candidaturas; presidentes e vice-presidentes das assembleias dos três níveis, pelos respectivos órgãos que os elegeram. Os membros do Conselho de Estado podem ser destituídos pela Assembleia Nacional.
Na esfera municipal, estima-se que, a cada legislatura, entre 7% e 12% dos delegados perdem suas representações dessa maneira (5). Os representantes eleitos, em todos os níveis, permanecem com o mesmo salário de seus empregos e ocupações anteriores à eleição. Além disso, continuam a desempenhar seus ofícios nos centros de trabalho a que são vinculados, enquanto exercem seus mandatos. Os únicos dispensados disso são os que devem dedicação exclusiva aos respectivos órgãos (caso dos presidentes e vice-presidentes do Poder Popular nos três níveis e também dos deputados que participam de comissões temáticas permanentes).
Quando estritamente necessário para o cumprimento de suas obrigações políticas e administrativas, utilizam veículos da frota oficial ou recebem passagem aérea específica. Ninguém possui cota de dinheiro público para gastar a bel-prazer, nem autonomia para contratar assessor ou incorrer em quaisquer despesas extras destinadas a seu gabinete (6).
Democracia ou ditadura?
Bem ou mal, esse é o sistema eleitoral que, ao lado da participação exercida diretamente pela população em diversos momentos, conforma a atual democracia cubana. Os cubanos estão satisfeitos? Em sua cobertura das eleições de 2010, a BBC Mundo ouviu diversos eleitores. Uma delas revelou que se absteve pela primeira vez, garantindo que só voltará a participar se for para eleger o secretário municipal do Partido Comunista, “que é quem pode mudar as coisas”, enquanto outros declararam haver votado para manifestar apoio à revolução e a suas lideranças. Toledo, o já mencionado presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais do parlamento, reconhece as limitações de poder dos representantes municipais, mas atribui o fato às severas restrições orçamentárias do país, uma vez que a maioria das reivindicações da população depende, para sua solução, de recursos financeiros hoje indisponíveis.
O tema da participação popular e da eficácia do sistema cubano de representação tem aparecido igualmente nos debates populares, especialmente entre intelectuais. O subdiretor da revista Casa de las Américas, sociólogo Aurelio Alonso, por exemplo, afirma que vigora em Cuba uma institucionalidade demasiado estatizada e burocratizada, com um nível limitado de participação nos âmbitos decisivos. Para ele, as próprias discussões da Assembleia Nacional deixam a desejar, pois frequentemente têm caráter apenas formal.
O parlamento é eleitoralmente democrático, mas os deputados têm pouca autonomia para decidir, em sua avaliação. Alonso entende que uma das alterações necessárias implica a redefinição do papel do próprio Partido Comunista, que não pode abranger a direção do Estado, atribuição que pertence a todo o povo. O escritor Enrique Ubieta questiona os conceitos de democracia, de direitos humanos e de liberdade usualmente manejados pela direita em sua campanha contra Cuba. “Nós temos, sim, a nossa democracia. Acontece que nosso modelo não é igual, por exemplo, ao que existe na Espanha. Mas sob muitos aspectos, é mais autenticamente democrático. Nosso sistema eleitoral não é perfeito, mas ele não elege os candidatos com mais dinheiro. É possível discutir como aperfeiçoá-lo, mas não se pode decretar que não seja democrático” (7).
Enquanto isso, na tão admirada democracia britânica ...
O breve relato acima, baseado em informações de um tradicional órgão de mídia insuspeito de ser comunista, desmente (ou, no mínimo, põe em dúvida) assertivas autoritariamente impostas pelos oligopólios da comunicação e por seus prestimosos acólitos. Uma delas sentencia que Cuba é uma ditadura. Outra reza que, naquele país, não é possível criticar o governo sem ser preso ou reprimido. Uma terceira garante que os 56 presos do julgamento de 2003 foram postos na cadeia por serem contrários ao governo. E assim por diante. Essas proclamações são olimpicamente reafirmadas a cada momento, por mais que sejam desmentidas pelos fatos. Enquanto isso, as recentes eleições britânicas deram nova demonstração de que a democracia liberal dos países capitalistas avançados não tem lá muito cabedal moral para ser imposta como modelo para o mundo, como pretendem os setores dominantes vocalizados por aquela mídia oligopólica.
O colunista do The Guardin, Gary Younge, por exemplo, interpretou o voto do povo britânico como uma manifestação contra a claudicante democracia naquele país, permanentemente frustrada pelo poder econômico. “Em última instância, são eles [os banqueiros e demais representantes do capital) que decidirão o quão rápidos e brutais serão os cortes iminentes das despesas públicas. Além do que, é seu endosso – não o do eleitorado – que os políticos buscam (...)
Essa contradição entre democracia e capitalismo não é nova. Mas, durante este período de crise financeira e econômica na Europa, ela ficou particularmente aguda”, fulminou Younge, para completar: “Assim, o setor que nós salvamos com dinheiro público, administrado por pessoas incompetentes que novamente estão se pagando grandes bonificações, agora ameaça desestabilizar o próximo governo, caso ele não demita milhares de trabalhadores mal pagos, reduza seus salários e acabe com os serviços que presta a milhões de pessoas pobres” (8).
Onde está mesmo o poder do povo, isto é, a democracia, nesse tão incensado regime de Sua Majestade? Aliás, os exaltados inimigos de Cuba, convictos de atuar em nome da democracia, devem tomar cuidado em sua cruzada, para não se igualarem demasiado a seus companheiros de trincheira de Miami, cuja convicção democrática não parece ser tão profunda, como exemplifica o artigo “Mi valiente y sensible coronel”, publicado por Mirta Ojito em El Nuevo Herald, porta-voz dos exilados cubanos (9). A autora pede, nada mais, nada menos, que os militares dêem um golpe de estado em Cuba, já que as manifestações populares (em Nova York e em Miami) e os artigos de jornais (como o dela) não têm conseguido derrubar o regime de Havana.
(*) O autor é jornalista, com passagem pela Rádio Havana. Tem concluídos os originais de um livro que relata a situação atual do país, sob o título provisório de “Cuba sem bloqueio: a revolução cubana sem as manipulações impostas pela mídia dominante”, com a colaboração de Antonio Gabriel Haddad.
NOTAS(1) Os números são de reportagens publicadas no jornal Granma de 27/04/2010 e de 04/05/2010.
(2) Fernando Ravsberg. Disidentes cubanos en campaña electoral. BBC Mundo, 13/03/2010. http://www.bbc.co.uk/mundo/america_latina/2010/03/100312_0021_cuba_disidentes_elecciones_gz.shtml.(3) Idem. Cubanos votaron, no se esperan cambios. BBC Mundo, 26/04/2010. http://www.bbc.co.uk/mundo/america_latina/2010/04/100425_cuba_elecciones_municipales_resultado_jaw.shtml. (4) Fernando Ravsberg. Cuba: elecciones municipales. BBC Mundo, 20/10/2007 (http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/latin_america/newsid_7052000/7052517.stm, acesso em 19/04/2009).
(6) Após uma solenidade no Palácio das Convenções de Havana, em dezembro de 2006, vimos o presidente da Assembleia Nacional, Ricardo Alarcón, ser recolhido por uma viatura daquele órgão. Quando o carro (um automóvel da montadora russa Lada, da década de 1980) chegou, ele abriu a porta, cumprimentou o motorista familiarmente e entrou. Nenhum séquito de cortesãos e de guarda-costas, nenhuma pompa, nenhum luxo. Tratava-se de uma das maiores autoridades do governo cubano, que não se diferenciava de um cidadão comum.
(7) "Esquerda não pode aceitar definição da direita para democracia". Portal Vermelho, 28/04/2010. http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=128383&id_secao=7.
(8) Gary Younge (The Guardian). Não vamos permitir que os mercados atropelem as urnas. O Estado de S. Paulo, 11/05/2010.
Fonte: Blog Mundo nas Minhas Maos
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