sexta-feira, 5 de março de 2010

Terremoto no Chile expõe a perversidade da lógica do capital




Escrito por Marcelo Luis B. Santos
Sábado, 27 de fevereiro de 2010, 3 horas e 37 minutos da madrugada, litoral central do Chile. Parou de tremer. Depois de quase 3 minutos agachado ao pé da porta com minha mulher, cremos que o pior passou e estamos bem. Passado o susto inicial, começam as réplicas (novos tremores ao longo dos dias seguintes que correspondem ao acomodamento das placas tectônicas), mais ou menos fortes, segundo a regra, menos fortes que o tremor inicial. Era um terremoto cujo epicentro apontou 8,8 pontos na escala Richter. O epicentro, para nossa sorte, foi a cerca de 500 km da casa onde estava. Dormimos ao ar livre, admirando a lua quase cheia se pondo no mar, uma beleza natural que contrastava com a catástrofe em curso e o medo de que um tsunami escalasse a altura da casa em que estávamos, a dois quarteirões do mar encosta acima.
Catástrofes naturais podem ser lidas como grandes crises, apenas com a graça que são provocadas por forças alheias à ação direta do homem – ou ao menos assim fomos ensinados a percebê-las no ocidente. Aparte do lado trágico que todos acompanham, pessoalmente ou mediado pela televisão e demais meios de comunicação, levando muita gente a empatizar coletivamente com o sofrimento de seus semelhantes, mais ou menos próximos – depende da distância tanto quanto do conceito de próximo –, as catástrofes têm um importante lado revelador, como qualquer crise.
Em situações limítrofes, somos convidados a enfrentar o lado mais transparente das pessoas ao nosso redor, que abarca desde a solidariedade até o vandalismo, da tranqüilidade ao desespero, das formas mais desprendidas de coletividade e organização altruísta para os eventos mais macabros marcados por inaceitável egoísmo. Assim descobrimos facetas encobertas de gente que conhecemos há anos, como colegas de trabalho, amigos, parentes e até mesmo cônjuges. Mas também é a oportunidade de conhecer a reação imediata e desprovida de marketing ou de preparação das grandes corporações e organizações da sociedade, em particular e principalmente o governo de um país.
No entanto, na conjuntura atual, na maior parte das sociedades no Ocidente, os serviços e bens fundamentais para a cidadania – moradia, luz, água, alimentação, telecomunicações, saúde, transporte – não estão nas mãos dos governos, e sim subjugados à perversa lógica das concessionárias privadas. Digo ¨perversa¨ porque, ainda que sob uma (suposta) regulação do governo, as tais concessionárias têm por objeto o lucro, não o bem estar social. Em estado de paz, os dilemas e problemas não ficam tão evidentes, mas, quando há crise - por exemplo, uma crise econômica como a recente –, algumas das contradições desta ¨solução¨ contemporânea à gestão dos bens e serviços públicos rapidamente vêm à tona.
Mas não estou falando aqui de uma crise econômica ou outra com estas proporções menores. Estou falando de uma catástrofe natural: o segundo maior terremoto da história chilena (ao menos da história da história) teve repercussões até mesmo em cidades tão distantes quanto São Paulo e Buenos Aires. Para efeito de comparação, nos respectivos epicentros, o terremoto recente de 8.8 graus supera de longe a intensidade de tremor do também recente terremoto do Haiti, de ¨apenas¨ 7.0 graus.
Do radinho de pilha, já com o sol quente, dois depoimentos marcaram a jornada jornalística após o tremendo movimento sísmico: da presidente em mando e do presidente eleito. Era de se esperar: ambos representam visões de mundo altamente antagônicas, partidos com posições políticas diametralmente opostas. Enquanto Bachelet é símbolo da resistência à ditadura e do projeto socialista chileno, sufocado por Pinochet e sua maldita herança, Piñera é um dos maiores expoentes do seleto grupo conivente com a ditadura e que se aproveitou da liberalização da economia para fazer fortuna – no lugar certo, na hora certa, mas também com os amigos certos e com a disposição política conivente. Para complicar mais ainda a situação, a troca de mando está prevista para 11 de março, apenas 13 dias após a tragédia, o que fazia mais determinante e dramática a coordenação entre ambas as lideranças e respectivas equipes. Daí tanta expectativa.
Sem luz, sem água, sem telefonia celular, mas com o radinho de pilha de meu sogro, pudemos ouvir o pronunciamento inicial de ambos, suficiente para forjar a perspectiva do desenrolar das ações e, em particular, da tônica do governo que vem por aí. Piñera dirigiu-se a um encontro com os governantes para colocar sua equipe à disposição dos mesmos, mas, mais que isso, discursou como ¨representante da iniciativa privada¨, afirmando assertivamente que o papel da iniciativa privada na reconstrução do país era fundamental – tônica que nos dias seguintes se repetiu continuamente.
Já Bachelet, serena, chegou em seu automóvel pessoal ao palácio La Moneda, sem segurança, sem escolta, definitivamente com o sentido de urgência que a situação demandava. No entanto, em seu discurso, revelou a cara do Estado chileno que os ¨socialistas¨ da centro-esquerda chilena não conseguiram – ou não quiseram – mudar nesses 20 anos de governo: pediu, usando a expressão ¨por favor¨, que as concessionárias se esmerassem em restabelecer os serviços básicos, em particular luz, água e telecomunicações. Pediu... faltou rogar.
Aos poucos, foi se revelando que, além disto, também estavam deterioradas vias de acesso, estradas e aeroportos, portos, escolas, hospitais. De favor em favor, a verdade ficou clara: Piñera tinha a mais completa razão quando ressaltava o papel fundamental da iniciativa privada na situação de catástrofe. E mais: ele insistia – e segue insistindo – em usar um fundo de emergência para estado de calamidade nacional que consiste em 2% do orçamento do Estado para cobrir os gastos. Afinal de contas, segundo a lógica da concessão de serviços, o estado é um cliente, portanto, seu papel é pagar, contratar, e não cobrar, quanto menos fazer com as próprias mãos.
O quadro final é que o país se denuncia nas entrelinhas refém hecho y derecho de empresas privadas que, mesmo em estado de catástrofe, permanecem firmes com seus discursos marketeiros, sempre defendendo o valor da marca de sua empresa. E o discurso se repete, independente do campo de atuação: energia, água, celular, telefonia fixa, internet, gás, sistema viário, transporte aéreo, marítimo e terrestre, construção civil, até mesmo sistema penitenciário, entoam em uníssono, enquanto o governo pede reiteradamente empenho, como quem estivesse pedindo algo fora de seu direito ou, mais adequado à lógica capitalista, como quem pede esmola.
Ao cabo de alguns dias, Bachelet decretou oficialmente estado de catástrofe, só que regional, em duas regiões ao sul do país: VII (Maule) e VIII (Bío Bío, onde há maior concentração de mortos até o momento), de forma que não abre o cofre dos 2% por enquanto. Isso significa, na figura jurídica do decreto, que o governador da região (intendente) tem grande autonomia e que, entre outras coisas, os direitos constitucionais podem ser violados em função do critério que ele determinar em prol de resolver a situação de exceção. Entre estes direitos que podem ser violados estão o de se reunir em grupos, o livre trânsito, a liberdade de expressão, mas está, por outro lado, o direito à propriedade privada, permitindo a apropriação, pelas forças legais coordenadas pelo intendente, de víveres, hospitais e outros imóveis, veículos e qualquer outra propriedade privada com o propósito de melhor servir à população. Resta agora torcer para que estas lideranças tenham melhor critério do que demonstraram na primeira noite em que, somente na cidade de Concepción, prenderam 55 pessoas por ¨desrespeitarem o toque de recolher¨ e mataram a um cidadão. Ainda não se sabe a justificativa, se é que há justificativa para tal ação.
A reflexão aqui não serve para o Chile no curto prazo, pois o governante que se assoma já deu o tom em recentes declarações: continuará privatizando o cobre chileno, uma das poucas áreas que ainda tem uma presença relevante do Estado, e obedecerá cabalmente às orientações do FMI e Banco Mundial, além de ser o único presidente latino-americano que não demonstrou entusiasmo com a nova organização dos estados ao sul do Rio Bravo. Pelo contrário, reiterou seu apoio – provavelmente sua subordinação – à OEA, exaltando qualidades fictícias desta organização.
Nosso Brasil, por sorte, não está sujeito, a princípio, a terremotos, furacões, maremotos. Nossas desgraças são sobretudo obra do homem, o que não impede que as chuvas, secas e outras intempéries tropicais derivem em catástrofes que podem eventualmente chegar às proporções do duro golpe que o território chileno sofreu no último sábado, inclusive por omissão em precaver-se destas. Quem sabe a desgraça de outros possa servir de lição e alerta para conscientizar a cidadania e o Estado do papel fundamental que têm determinados serviços que não podem, sob hipótese alguma, seguir a lógica do mercado e do lucro, e sim a do bem estar social. É imperativo que o povo, representado pelos governantes eleitos e não por meia dúzia de empresários, recupere as rédeas de seu Estado, inferindo sobre seu destino e seus recursos, em vez de ficar à mercê daqueles que te tratam de cliente e não de cidadão.
Marcelo Luis B. Santos, jornalista, reside atualmente no Chile.

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