sábado, 31 de dezembro de 2011

Atualizada, "lista suja" do trabalho escravo chega a 294 nomes


Cadastro de empregadores flagrados com escravos atinge número recorde e reflete impacto indesejado do avanço da monocultura e de grandes projetos

Por Bianca Pyl, Daniel Santini e Maurício Hashizume
A "lista suja" do trabalho escravo, cadastro de empregadores pegos em flagrante na exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão, nunca teve tantos nomes. Atualizada nesta semana, a relação cresceu com a entrada de 52 novos registros e chegou ao recorde de 294 nomes. Entre os que entraram estão alguns dos principais grupos usineiros do país, madeireiras, empresários e até uma empreiteira envolvida na construção da usina hidrelétrica de Jirau. A lista inclui ainda médicos, políticos, famílias poderosas e casos de exploração de trabalho infantil e de trabalho escravo urbano, que será tema de reportagem especial da Repórter Brasil nos próximos dias.
Rãs nadam em a água que era consumida pelos empregados libertados. Leia mais (Foto: SRTE/MA)
Divisão por estado dos incluídos no cadastro
1. Pará(PA)...................9
2. Mato Grosso (MT)........8 

3. Minas Gerais (MG).......8
4. Paraná(PR)................5
5. Rondônia (RO)............4

6. Maanhão (MA)............4
7. Espírito Santo (ES).......3

8. Goiás (GO)................3
9. Santa Catarina (SC).....3
10.Alagoas(AL)..............1

11.Amazonas(AM)..........1    
12.Rio de Janeiro (RJ).....1
13.SãoPaulo.................1
14.Tocantins(TO)...........1
Após serem flagrados explorando mão-de-obra escrava, todas as pessoas e empresas tiveram chance de defesa em processos administrativos. Somente depois de esgotados todos os recursos, foram incluídas no cadastro. Entre os novos registros, há casos como o de Lidenor de Freitas Façanha Júnior, cujos trabalhadores, sem opções, bebiam água infestada com rãs, e o do fazendeiro Wilson Zemann, que explorava crianças e adolescentes no cultivo de fumo.

Entre os estados com mais inclusões nesta atualização estão novamente o Pará e o Mato Grosso, com nove e nove nomes inseridos, respectivamente. A incidência do problema no chamado arco do desmatamento demonstra que a utilização de trabalho escravo na derrubada da mata para a expansão de empreendimentos agropecuários segue presente.
A inclusão na "lista suja" limita o acesso a crédito em instituições públicas e privadas, e também dificulta negociações comerciais. As empresa signatárias do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, dentre as quais estão alguns dos principais grupos empresariais do país, assumiram o compromisso de não comprar mais de fornecedores cujos nomes estejam no cadastro.
Os empregadores permanecem na lista por pelo menos dois anos, período no qual serão monitorados. Após este prazo, somente aqueles que sanarem as irregularidades, quitarem as multas e não reincidirem na exploração de escravos serão excluídos. Nesta atualização, apenas dois nomes foram retirados do cadastro (Dirceu Bottega e Francisco Antélius Sérvulo Vaz), o que pesou para que a relação chegasse a quase 300 registros.
Crianças e adolescentes trabalhavam de chinelos e até descalços na colheita de fumo (SRTE/SC)
Escravos da cana
Entre os destaques da atualização estão libertações que chamam a atenção pelo grande número de escravos resgatados em plantações de cana-de-açúcar. Só na Usina Santa Clotilde S/A, uma das principais de Alagoas, foram flagrados 401 trabalhadores em situação degradante em 2008. Este não é o único caso de falta de condições de trabalho adequadas em frentes de trabalho organizadas para o corte em latifúndios especializados em monocultivo. 
Também entra nesta atualização a Usina Paineiras, que utilizou 81 escravos em Itabapoana (RJ) em 2009. Um ano após o flagrante que resultou nesta inclusão, a empresa comprou a produção da Erbas Agropecuária, onde foram flagrados 95 trabalhadores escravizados. Em seu site, a usina afirma ter preocupação com os empregados e faz propaganda do seu "Plano de Assistência Social".
Mesmo com o aumento da preocupação social por parte das usinas, real ou apenas declarado, o setor ainda emprega mão-de-obra escrava. Recentemente, foram encontrados escravos até mesmo em colheitas mecanizadas de cana.
Além das usinas, outras empresas incluídas nesta atualização também têm o costume de apregoar ações sociais na internet. É o caso da Miguel Forte Indústria S/A, flagrada explorando 35 trabalhadores, incluindo três adolescentes, na colheita de erva-mate em Bituruna (PR). A madeireira, que mantinha o grupo em barracões de lona sob comando de "capatazes",  anuncia na sua página que "o apoio a projetos sociais que promovem a cidadania e o bem-estar, principalmente entre a população carente, mostra o comprometimento da Miguel Forte com os ideais de uma sociedade mais justa e humana". À frente da empresa, Rui Gerson Brandt, acumula o cargo de presidente do Sindicato das Indústrias de Papel e Celulose do Paraná (Sindpacel).
Hidrelétrica de JirauNão é só na monocultura ou no campo que os flagrantes acontecem. As condições degradantes em projetos bilionários do país têm sido uma constante e, nesta atualização, uma das empreiteiras envolvidas na construção de uma hidrelétrica também entrou na lista. A Construtora BS, contratada pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (Enersus), foi flagrada utilizando 38 escravos na construção da Usina Hidrelétrica de Jirau
Além de enfrentarem problemas relacionados aos alojamentos, segurança no trabalho e saúde, os empregados ainda eram submetidos a escravidão por dívida, por vezes em esquemas sofisticados que envolvem até a cobrança por meio de boletos bancários, conforme denunciado pela Repórter Brasil.
Boleto bancário utilizado em esquema de escravidão por dívidas no Rio Madeira  (Foto: Bianca Pyl
Mesmo após o flagrante, as condições de trabalho não melhoraram, segundo denúncias recentes. Em abril deste ano, um grupo de 20 trabalhadores procurou o Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Rondônia (Sticcero) alegando que a BS não havia pago o aviso prévio e eles estavam dormindo no galpão da Construtora, sem ter como voltar para casa. Uma liminar chegou a bloquear os bens da empresa em 2011.
O isolamento, aliás, continua sendo utilizado como ferramenta para escravizar pessoas. Nesta atualização da lista, foi incluído Ernoel Rodrigues Junior, cujos trabalhadores estavam em um local de tão difícil acesso que foi necessário um helicóptero para o resgate dos trabalhadores.

Entre os libertados estavam dois adolescentes de 15 e 17 anos e uma de 16 anos. Para chegar no local em que o grupo estava, foi necessário percorrer a partir de São Félix do Xingu (PA) por 14 horas um caminho que contava com uma ponte de madeira submersa, balsa e estradas de terra em condições tão ruins que foi necessário o uso de tratores para desatolar alguns dos veículos. De acordo com os relatos colhidos pela fiscalização, todos tinham medo de reclamar porque o fazendeiro e o segurança da propriedade andavam armados. Para que conseguisse fazer a denúncia, um trabalhador explorado conseguiu fugir e teve de caminhar durante seis dias pela mata e por estradas de terra.
Família Peralta
Outro destaque na atualização da "lista suja" neste ano é a inclusão de Fernando Jorge Peralta pela exploração de escravos na Fazenda Peralta, em Rondolândia (MT). O Grupo Peralta é um conglomerado empresarial poderoso, do qual fazem parte a rede de supermercados Paulistão, a Brasterra Empreendimentos Imobiliários, as concessionárias Estoril Renault/Nissan (em Santos, Guarujá e Praia Grande), os shoppings Litoral Plaza Shopping e Mauá Plaza Shopping (cuja construção, na época, envolveu uma denúncia de propina), a Transportadora Peralta (Transper) e a PRO-PER Publicidade e Propaganda, só para citar os principais ramos de atividade do grupo.
Os Peralta começaram os negócios na década de 1950 em Cubatão (SP). Em 2006, o escravagista Fernando Jorge foi um dos homenageados pela Câmara de Cubatão na comemoração dos 50 anos da família no Brasil. O flagrante que levou Fernando Jorge à "lista suja" aconteceu em 2010 e envolveu a libertação de 11 trabalhadores de sua fazenda. 
Inclusões e Exclusões da "Lista Suja" do Trabalho Escravo
Entraram em 31/12/2011
Agro Pastoril Novo Horizonte S/A    78.231.701/0009-86
Antônio Aprígio da Rocha    044.352.903-59
Antonio Carlos Carvalho da Silva    025.346.492-72
Antônio Erisvaldo Sousa Silva    848.437.303-78
Antonio Sabino Rodrigues    542.529.626-68
Carlos Augusto de Freitas    173.008.601-25
Carvoaria Chapadão Ltda.    11.007.755/0001-34
Clauber Almeida Lima    243.485.702-72
Cláudio Augustos Rodrigues    026.484.708-32
Clézio Oliveira Naves    841.635.001-97
Construtora BS Ltda.    00.521.472/0003-51
Construtora Talaska Ltda.    08.722.775/0001-82
Edmar Koller Heller    239.538.379-15
Ernoel Rodrigues Junior    478.378.881-20
Estrela Agroflorestal Ltda.    79.441.168/0001-92
Evanildo Nascimento de Souza    242.809.925-68
Fazenda Brasnor Agropecuária S/A    04.885.034/0001-61
Fernando Jorge Peralta e Outros    017.518.598-00
Francisco Costa da Silva    154.167.984-91
Francisco Silva Cavalcante    040.486.522-49
Gilson Afonso dos Santos    195.532.425-53
J. L. Zanetti  ME – Hotel São Marcos    07.264.587/0001-95
José Gomes dos Santos Neto    023.090.564-13
José Palmiro da Silva Filho    111.577.121-34
José Rodrigues dos Santos    598.157.285-04
Laert Bolsoni     011.886.158-15
Lidenor de Freitas Façanha Júnior    253.380.723 - 00
Luiz Carlos Brioschi    379.675.257-87
Luiz Geraldo Ferreira ME    80.031.263/0001-97
Manoel Marchetti Ind. e Com. Ltda.    84.148.436/0005-46
Manoel Roberto de Almeida Prado    048.049.701-00
Marcus Aristóteles Zilli    041.320.049-37
Marcus Aurélio Caetano    547.704.326-15
Marizete Alves Silveira Araraquara ME    03.335.501/0001-17
Miguel Forte Industrial S/A-Papéis e Madeiras  81.645.525/0005-00
Nelson Luiz Pereira    949.100.306-20
Olegário Germano Ullmann ME     73.282.154/0001-05
Osmar Brioschi  752.194.507-78
Osmar Richter    277.821.079-20Ovídio Octávio Pamplona Lobato    008.492.602-30Pedro Eustáquio Pellegrini    350.483.286-04Reniuton Souza de Moraes    248.452.561-34Rui Carlos Dias Alves da Silva    050.386.934-15Sormany Amorim de Souza    557.670.605-68Tarcio Juliano de Souza    654.016.702-49Thiago Neiva Honorato    003.308.741-52Transportes Ari Barbieri Ltda.    72.316.540/0001-90Usina Paineiras S/A    27.777.903/0001-30Usina Santa Clotilde S/A    12.607.842/0001-95Valdivino da Rocha    169.919.661-34Viderlândio Rodrigues dos Santos    307.338.122-87Wilson Zemann    791.249.419-72
Saíram em 31/12/2011
Dirceu Bottega 159.095.909-44
Francisco Antelius Servulo Vaz 080.277.733-34
Os integrantes da família Peralta não são os únicos que receberam homenagens após denúncias de uso de escravos. Luiz Carlos Brioschi e Osmar Brioschi, que também entram na lista nesta atualização, foram flagrados se aproveitando de 39 trabalhadores na colheita do café em Marechal Floriano (ES). Eles mantinham os empregados em regime de escravidão por dívidas e em condições extremamente precárias de trabalho e vida. Dois dias após a libertação ter sido divulgada, Osmar Brioschi esteve entre os homenageados com placas e diplomas na Assembleia Legislativa do Espírito Santo pelo "trabalho realizado em favor do campo capixaba", por iniciativa do deputado Atayde Armani (DEM-ES). 
Devastação ambiental
Outro aspecto reforçado pela atualização da lista é o elo entre escravidão e devastação ambiental. O uso de escravos em grandes projetos de desmatamento e em áreas com conflitos agrícolas é bastante comum. Desta vez, foi incluído na relação Tarcio Juliano de Souza, apontado como responsável pela destruição de milhares de hectares de floresta amazônica nos últimos anos.
Desmatamento avança ao longo dos rios e em pontos isolados em Lábrea (AM), onde o fazendeiro Tarcio Juliano de Souza atuava organizando frentes para derrubada da mata e abertura de pastos
Ele é considerado pela Polícia Federal (PF) responsável por montar um esquema para desmatar cerca de 5 mil hectares de floresta nativa na região de Lábrea (AM), onde mantém a Fazenda Alto da Serra. Ele já chegou a ser preso em Rio Branco (AC) pelos crimes de redução de pessoas a condições análogas à escravidão, aliciamento de trabalhadores e destruição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e foi denunciado por tentar comprar um fiscal. Na época, o superintendente regional do trabalho Dermilson Chagas declarou que Tárcio estava à frente de um "consórcio de fazendeiros" do Acre formado para transformar grandes áreas de Lábrea (AM) em pastos, com a utilização criminosa de escravos para o desmate, para criar gado bovino.
Também consta na inclusão a empresa Manoel Marchetti Indústria e Comércio Ltda, pelo uso de 15 escravos em Porto Velho (RO). Trata-se de um grupo empresarial que, no começo da década de 2000, no comando da Fazenda Ipê, em José Boiteux (SC), envolveu-se em disputa por terras com uma comunidade indígena da reserva Duque de Caxias. Na ocasião, a Funai acusou exageros por parte da Polícia Militar na expulsão dos índios do território em disputa. Mesmo após o flagrante de trabalho escravo em Porto Velho e o histórico de conflito com índios em Santa Catarina, o Senado aprovou, em novembro de 2010, outorga para a a Associação Recreativa e Esportiva Grupo Manoel Marchetti para uma rádio comunitária por dez anos em Ibirama (SC), com voto favorável do senador Flávio Arns (PSDB-PR).
Doutores em escravidão
Um ex-prefeito, um ex-secretário municipal do Meio Ambiente e dois médicos estão entre os que entraram na relação nesta atualização. O ex-prefeito Edmar Koller Heller foi flagrado em 2010 explorando mão-de-obra escrava em um garimpo na Fazenda Beira Rio, que fica em Novo Mundo (MT), a 800 km da capital mato-grossense Cuiabá (MT), próximo à divisa com o Pará. Edmar foi prefeito de Peixoto de Azevedo (MT) em 2000, pelo extinto PFL (hoje DEM). Teve seu mandato cassado após ser acusado de desvio de recursos públicos, contratação de pessoal especializado sem licitação e contratação ilegal de veículos automotores de auxiliares de confiança.
Em 2007, ele se envolveu em outro escândalo político e chegou a ser preso. Como secretário de Administração da prefeita Cleuseli Missassi Heller, sua esposa, ele foi considerado responsável por improbidade administrativa, configurada pelo favorecimento de uma única empresa em processos licitatórios do município. Em 2009, a Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso manteve a condenação.
Atualizações anteriores
Confira o histórico completo da "lista suja"*
Setembro de 2005 - Lista suja de empregadores aos olhos de todos
Novembro de 2005 - Ex-prefeito de Santos é incluído na 4ª atualização
Julho de 2006 - Senador Ribeiro e acusado de matar Stang na lista
Dezembro de 2006 - Libertação recorde está na nova "lista suja"Dezembro de 2006 - Libertação recorde foi inserida por equívoco
Julho de 2007 - Nova "lista suja" inclui pela primeira vez AM, CE e SC
Dezembro de 2007 - Atualização traz reincidentes e grandes empresas
Julho de 2008 - Pecuaristas, usineiros e carvoeiros entram na lista
Dezembro de 2008
- Juiz e proprietários em dez estados na lista
Julho de 2009 - "Lista suja" adiciona produtores da fronteira agrícola
Dezembro de 2009 - Cosan e mais 11 entram para a "lista suja"
Julho de 2010 - Governo divulga atualização da "lista suja"
Dezembro de 2010 - "Lista suja" inclui 88 novos empregadores
Julho de 2011 - Com 48 inclusões, "lista suja" chega a 251 registros
clique na data para ler a notícia
   * desde a criação do sistema de consultas da Repórter Brasil
Outro político que passa a fazer parte da lista é Evanildo Nascimento Souza, flagrado com escravos quando ainda era secretário de Meio Ambiente de Goianésia do Pará (PA). O homem que deveria zelar pela natureza foi flagrado explorando escravos justamente no corte e queima de madeira para produção de carvão. De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT), foram encontrados na Fazenda RDM (onde se localiza a Carvoaria da Mata), em julho de 2009, nove trabalhadores laborando em condições degradantes no corte de madeira, transporte, empilhamento, enchimento dos fornos, vedação do forno com barro e carbonização.
Os trabalhadores não possuíam equipamentos de proteção individual (EPIs) e estavam alojados em um barraco em péssimas condições, sujo com detritos, restos de maquinário e peças de veículos, armazenamento de combustível, sem separação para homens e mulheres, nem ventilação e iluminação.
Os médicos incluídos na relação são José Palmiro Da Silva Filho, CRM 830, flagrado com cinco escravos na Fazenda São Clemente, em Cáceres (MT), e Ovídio Octávio Pamplona Lobato, CRM 3236, flagrado com 30 escravos na  Fazenda Tartarugas, em Soure (PA). O primeiro assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) acertado com o procurador do trabalho Roberto Portela Mildner, pelo qual se comprometeu a doar R$ 20 mil para o Hospital Bom Samaritano de Cáceres. Em caso de reincidência, o acordo prevê multa de R$ 10 mil por escravo encontrado.
Faça buscas na "lista suja" em português, inglês, francês e alemão.
Fonte: http://www.reporterbrasil.org.br/

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Um mundo de torturadores: a crueldade dos Estados

Um mundo de torturadores: a crueldade dos Estados

Dos 194 Estados integrantes das Nações Unidas, cem deles praticam regularmente a tortura, seja como meio para obter informações ou confissões, seja como metodologia para fazer reinar o terror. Síria, Egito, Argélia, Chile, Argentina, Brasil, Cuba, Estados Unidos, França, Espanha, China, Vietnã, índia ou Rússia: não há continente que esteja livre dessa barbárie. Esta é a vergonhosa conclusão do informe “Um mundo de torturadores”, publicado na França pela ONG Ação dos Cristãos Contra a Tortura.

O século XXI segue sendo um mundo de torturadores. Dos 194 Estados integrantes das Nações Unidas, cem deles praticam regularmente a tortura, seja como meio para obter informações ou confissões, seja como metodologia para fazer reinar o terror. Síria, Egito, Argélia, Chile, Argentina, Brasil, Cuba, Estados Unidos, França, Espanha, China, Vietnã, índia ou Rússia: não há continente que esteja livre dessa barbárie. Esta é a vergonhosa conclusão do informe “Um mundo de torturadores”, publicado na França pela organização não-governamental Ação dos Cristãos Contra a Tortura (ACAT).
As vítimas das torturas têm uma identidade comum a todos os países: jornalistas, sindicalistas, opositores políticos, advogados, blogueiros, membros de minorias étnicas ou religiosas, defensores dos direitos humanos, membros de ONGs. O retrato apresentado pela ACAT mostra que, ao invés de recuar, a tortura vem se mantendo em níveis altíssimos, apesar da “reconversão” de muitas ditaduras à democracia liberal. Jean-Etienne de Linares, delegado geral da ong ACAT França, destaca que não restam muitas zonas do mundo em relação às quais seja possível ter ilusões: “queremos acreditar que o uso da tortura é uma prática reservada aos regimes autoritários. Mas estes não têm a exclusividade desses crimes e os principais países reconhecidos como democráticos estão longe de ficar isentos de críticas nessa matéria”.
O mais assombroso reside em que essa prática degradante e assassina nem sequer conta com uma definição coerente. O informe da ACAT recorda que embora “o direito internacional forneça indicações” sobre a tortura (Artigo 16 da Convenção contra a Tortura), “é impossível estabelecer uma distinção nítida entre o que é tortura e o que pode ser considerado como penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Seja como for, o informe da ONG oferece um catálogo universal da crueldade dos Estados.
A queda de regimes como o tunisiano, o egípcio e o do Iêmen, ou as revoltas na Jordânia e Síria permitiram lançar luz sobre as formas pelas quais esses governos torturavam e torturam seus povos. O mesmo ocorre com as grandes “democracias” como a Índia, o Paquistão, o Irã ou com países com alto desenvolvimento econômico como a China: opor-se a qualquer desses poderes, em qualquer escala, significa passar pelo patíbulo da tortura. Nem sequer as revoluções democráticas se salvam desse horror. Um exemplo patético é o da Costa do Marfim, onde os dois lados, o do ditador Laurent Gbagbo e o do suposto democrata Alassame Ouattara, recorreram com igual intensidade à tortura e às execuções primárias.
No que diz respeito à América Latina, o capítulo consagrado ao Chile é um dos mais comprometedores devido ao caráter político da tortura. A investigação da ACAT observa que a mobilização social iniciada em maio de 2011 pela mão dos estudantes se chocou com uma “repressão particularmente violenta por parte das forças da ordem”. O informe assinala que, no Chile, “o fenômeno da tortura perdura contra os militantes dos movimentos de contestação e contra certos povos indígenas como os Mapuches e os Rapa Nuis”.
O Brasil também merece uma péssima menção. Apesar de o país ter adotado os principais instrumentos para prevenir a tortura, esta segue sendo “uma prática rotineira no interior das Forças de Segurança”. O texto da ACAT assegura que “as principais vítimas da tortura no Brasil são os camponeses e os membros das comunidades indígenas que reivindicam o direito á terra, os defensores dos direitos humanos e os jornalistas”. O informe diz que “a tortura segue sendo empregada com total impunidade”, tanto mais na medida em que “o sistema federal não facilita a harmonização das legislações nessa matéria”.
A ACAT destaca o fato de que os mecanismos nacionais necessários para que se aplique a Convenção contra a Tortura “ainda não foram instalados”. Segundo a ONG, os principais atores da tortura são as três polícias de Estado: “polícia civil, polícia federal e polícia militar”. O trabalho da ONG é particularmente crítico com as condições de prisão e detenção nas prisões brasileiras (muito especialmente no Estado do Espírito Santo), qualificadas como “tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”.
Peru, Colômbia e Venezuela formam um trio onde a tortura é regularmente utilizada. No Peru, camponeses, indígenas e líderes sociais são objeto de frequentes torturas. Na Colômbia, a “tortura é uma prática generalizada” enquanto que, na Venezuela, “a tortura é de uso corrente no interior dos serviços de segurança do Estado”. Honduras, Cuba e México integram outro trio denunciado pela ACAT. Segundo o informe, a derrubada do presidente Manuel Zelaya deu lugar a “um recrudescimento repentino e massivo da tortura”. Em relação a Cuba, a ACAT sustenta que, apesar das afirmações de Fidel Castro e Raúl Castro, “os maus tratos e as humilhações fazem parte dos métodos de repressão utilizados sistematicamente pelo regime cubano”. Quanto ao México, o informe diz que as primeiras vítimas da tortura são “as pessoas críticas ao governo e aqueles que denunciam os abusos da classe política”.
A Argentina não foi examinada no informe. Mas em uma nota interna, a ACAT aponta a persistência desse ato de barbárie nas mãos da polícia. A ONG escreve que embora “a democracia tenha provocado a interrupção quase total das ações contra os membros da oposição, isso não impediu que a polícia siga recorrendo de forma frequentemente rotineira à tortura como técnica de interrogatório contra os prisioneiros de direito comum”.
Após um percurso horripilante através da geografia mundial da tortura, o informe chega às margens das quatro grandes democracias: Estados Unidos, Espanha, França e Inglaterra. Sobre os EUA, a investigação da ONG recorda as violações dos direitos humanos cometidas fora das fronteiras do país em nome da guerra contra o terrorismo. No entanto, ressalta o mesmo informe, isso “não deve ocultar a situação extremamente preocupante que reina dentro do território norteamericano”. A Espanha figura no quadro pelas condições de prisão, violência contra imigrantes, expulsões com maus tratos e abusos policiais.
A França tampouco escapa: tratamentos indignos e degradantes e inclusive torturas, assim como práticas de uma violência cega contra os imigrantes ilegais foram denunciados numerosas vezes. Quanto a Inglaterra, os casos de tortura se localizam fora do território e se inscrevem no marco da já incongruente luta contra o terror. A queda do muro de Berlim e a desaparição progressiva das ditaduras da América Latina não parecem ter transmitido os ensinamentos sobre os limites do horror. A tortura sede sendo um instrumento do poder e de poder. Os carrascos conservam sempre um grau de impunidade absoluto.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/t

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Anonymous acessam cartões de crédito milionários e fazem doações aos pobres


O grupo de hackersAnonymous atacou, nesta segunda-feira, a base de dados da agência de segurança norte-americana Stratfor e roubou os dados de, pelo menos, 4 mil cartões de crédito de grandes empresas mundiais e da Defesa dos EUA. Em seguida, numa fração de segundos, passaram a distribuir o saldo das contas milionárias a orfanatos, asilos e casas de saúde ao redor do mundo.
As doações a instituições de caridade foram acompanhadas da frase “Obrigado! Agência de Segurança Interna”.
Os piratas do cyberespaço alegaram que um dos motivos pelos quais conseguiram roubar dados da Stratfor deve-se ao fato da não encriptação (conversão ou transmissão de dados em código) da informação, o que será um grande embaraço para uma empresa que fornece análises políticas, econômicas e militares para clientes que precisam reduzir os riscos de segurança.
Entre os clientes da empresa, que fornece serviços de informação de defesa, lobby político e econômico, encontram-se algumas das 500 organizações mais lucrativas do mundo listadas na revista Fortune, como a BNP Paribas, Wester Union, American Express ou Visa, entre outras, e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
Os Anonymous anunciaram o ataque através do Twitter e justificaram a ação como uma “doação de Natal”. O grupo divulgou também, no Twitter, a lista das empresas clientes da Stratfor juntamente com os respetivos dados dos cartões de crédito, como o Departamento da Defesa norte-americano, o Exército, a Força Aérea e empresas do ramo tecnológico como a Apple ou a Microsoft.
Segundo diário norte-americano New York Times, os hackers mostraram ainda imagens de recibos de transferências feitas a partir de alguns desses cartões de crédito para instituições de caridade, acompanhadas da frase de agradecimento: “Obrigado! Agência de Segurança Interna”.
Um dos recibos divulgados estava em nome da Cruz Vermelha Norte-americana e tinha o nome de um ex-responsável do Departamento Governamental Bancário do Texas, Allen Barr. Citado pelo mesmo jornal norte-americano, Barr afirmou que foram debitados US$ 700 do seu cartão a favor de várias instituições de solidariedade.
– Foram todas instituições de caridade, Cruz Vermelha, CARE, Save The Children. Por isso, quando a empresa do cartão de crédito contactou a minha mulher ela não tinha a certeza se tinha sido eu a fazer a doação – explicou.
Fred Burton,vice-presidente da Stratfor, cujo site se encontra em manutenção, disse à agência norte-americana de notícias Associated Press que a empresa apresentou queixa às autoridades e que trabalham em conjunto na investigação.
Os Anonymous cumpriram, desta forma, a ameaça divulgada há algumas semanas de realizar um ataque a sites de grandes instituições durante o fim-de-semana de Natal. Em um e-mail aos clientes, a que a AP teve acesso, a Stratfor afirma que suspendeu o correio eletrônico e os seus servidores.
Fonte: http://candidoneto.blogspot.com

Obama eleva as apostas militares: Confrontação nas fronteiras com a China e a Rússia

por James Petras
Depois de sofrer grandes derrotas militares e políticas em campos de batalha sangrentos no Afeganistão e no Iraque, de fracassar no apoio a antigos clientes no Iémen, Egipto e Tunísia e de testemunhar a desintegração de regimes fantoches na Somália e no Sudão do Sul, o regime nada aprendeu: Ao invés disso ele voltou-se rumo a maior confrontação militar com potências globais, nomeadamente a Rússia e a China. Obama adoptou uma estratégia provocativa de ofensiva militar junto às fronteiras tanto da China como da Rússia.

Depois de andar de derrota em derrota na periferia do poder mundial e não satisfeito em incorrer em défices que arruínam o tesouro na ânsia de construir um império contra países economicamente fracos, Obama abraçou uma política de cerco e provocação contra a China, a segunda maior economia do mundo e o mais importante credor dos EUA, e a Rússia, o principal fornecedor de petróleo e gás da União Europeia e a segunda mais poderosa potência do mundo em armamento nuclear.

Este documento trata da escalada altamente irracional e ameaçadora de militarismo imperial do regime Obama. Examinamos o contexto militar global, económico e político interno que motivam estas políticas. Examinamos então os múltiplos pontos de conflito e intervenção nos quais Washington está empenhada, desde o Paquistão, Irão, Líbia, Venezuela, Cuba e para além disso. Analisaremos a seguir a lógica para a escalada militar contra a Rússia e a China como parte de uma nova ofensiva que vai além do mundo árabe (Síria, Líbia) e frente à posição económica declinante da UE e dos EUA na economia global. Depois disso esboçaremos as estratégias de um império declinante, criado em guerras perpétuas, confrontando declínio económico global, descrédito interno e uma população trabalhadora a cambalear desde o desmantelamento em grande escala dos seus programas sociais básicos.

A viragem do militarismo: Da periferia para a confrontação militar global

Novembro de 2011 é um momento de grande importância histórica: Obama declarou duas importantes posições políticas, tendo ambas tremendas consequências estratégicas que afectam potências mundiais competidoras.

Obama decidiu uma política de cerco militar da China com base no estacionamento de uma armada marítima e aérea frente à costa chinesa – uma política destinada abertamente a enfraquecer e perturbar o acesso da China a matérias-primas e ligações comerciais e financeiras na Ásia. A declaração de Obama de que a Ásia é a região prioritária para a expansão militar dos EUA, a construção de bases e alianças económicas foi dirigida contra a China, desafiando Pequim nas suas próprias traseiras. O punho de ferro da declaração política de Obama, pronunciada perante o Parlamento australiano, foi clara como cristal na definição dos objectivos imperiais estado-unidenses.

"Nossos interesses duradouros na região [Ásia Pacífico] exigem nossa presença duradoura nesta região... Os Estados Unidos são uma potência do Pacífico e estamos aqui para permanecer ... Quando finalizamos as guerras de hoje [i.é, as derrotas e retiradas do Iraque e do Afeganistão]... dirigi minha equipe de segurança nacional para que assegure uma prioridade principal à nossa presença e missões na Ásia Pacífico ... Em consequência, a redução nos gastos de defesa dos EUA não será ... às expensas da Ásia Pacífico". (CNN.com, 16/Nov/2011).

A natureza precisa do que Obama chamou de "a nossa presença e missão" foi sublinhada pelo novo acordo militar com a Austrália para despachar navios e aviões de guerra e 2500 fuzileiros navais para a cidade mais a Norte da Austrália (Darwin) destinados à China. A secretária de Estado Clinton passou a maior parte de 2011 a fazer sondagens altamente provocatórias junto a países asiáticos que têm conflitos de fronteira marítima com a China. Clinton introduziu vigorosamente os EU nestas disputas, encorajando e exacerbando as exigências do Vietname, Filipinas e Brunei no Mar do Sul da China. Ainda mais gravemente, Washington está a promover seus laços militares e de vendas com o Japão, Formosa, Singapura e Coreia do Sul, bem como a aumentar a presença de navios de guerra, submarinos nucleares e sobrevoos de aviões de guerra ao longo das águas costeiras da China. Na linha da política de cerco militar e provocação, o regime Obama-Clinton está a promover acordos comerciais multilaterais que excluem a China e privilegiam corporações multinacionais dos EUA, bem como seus banqueiros e exportadores, baptizado como "Partenariado Transpacífico" ("Trans-Pacific Partnership"). Este inclui principalmente países mais pequenos, mas Obama tem a esperança de convencer o Japão e o Canadá a aderirem ...

A presença de Obama na reunião da APEC de líderes asiáticos e sua visita à Indonésia em Novembro de 2011 envolvem esforços para assegurar hegemonia estado-unidense. Obama-Clinton esperam contrariar o declínio relativo das ligações económicas estado-unidenses face ao crescimento geométrico dos laços de comércio e investimento entre a Ásia Oriental e a China.

Um exemplo recente dos esforços ilusórios, mas destrutivos, de Obama-Clinton para deliberadamente perturbar os laços económicos da China na Ásia está a ter lugar em Myanmar (Birmânia). A visita de Clinton em Dezembro de 2011 a Myanmar foi antecedida por uma decisão do regime Thein Sein de suspender um projecto de barragem no Norte do país financiado pela China Power Investment. Segundo documentos oficiais confidenciais divulgados pela WikiLeaks as "ONGs birmanesas que organizaram e conduziram a campanha contra a barragem foram fortemente financiadas pelo governo dos EUA" ( Financial Times, 02/Dez/2011, p. 2). Isto e outras actividades provocatórias e discursos de Clinton condenando "ajuda ligada" chinesa desvanecem-se em comparação aos interesses em grande escala que ligam Myanmar à China. A China é o maior parceiro comercial e investidor de Myanmar, incluindo seis outros projectos de barragens. Companhias chinesas estão a construir novas auto-estradas e linhas ferroviárias através do país, abrindo o Sudoeste da China a produtos birmaneses e a China está a construir oleodutos e portos. Há uma poderosa dinâmica de interesses económicos mútuos que não será perturbada por uma disputa ( FT, 02/Dez/2011, p.2). A crítica de Clinton dos investimentos da China, de milhares de milhões de dólares, na infraestrutura de Myanmar é um dos mais bizarros da história mundial, vindo na sequência dos oito anos de presença militar brutal de Washington no Iraque a qual destruiu US$500 mil milhões de infraestrutura iraquiana, segundo estimativas oficiais de Bagdad. Só uma administração iludida poderia imaginar que umas flores de retórica, uma visita de três dias e o financiamento de uma ONG são um contra-peso adequado aos profundos laços económicos que ligam Myanmar à China. O mesmo posicionamento ilusório acompanha todo o repertório de políticas que informam os esforços do regime Obama para deslocar o papel predominante da China na Ásia.

Se bem que a política adoptada pelo regime Obama não apresente, em si mesma, uma ameaça imediata à paz, o impacto acumulado de todos estes pronunciamentos políticos e projecções de poder militar desenvolvem-se como um esforço abrangente total para isolar, intimida e degradar a ascensão da China como uma potência regional e global. O cerco militar e as alianças, a exclusão da China nas associações económicas regionais propostas, a intervenção com tomada de partido em disputas marítimas regionais e o posicionamento de aviões de guerra tecnologicamente avançados, estão destinados a minar a competitividade da China e a compensar a inferioridade económica dos EUA através de redes políticas e económicas fechadas.

Os movimentos militares e económicos da Casa Branca e a demagogia anti-chinesa no Congresso dos EUA são claramente destinados a enfraquecer a posição comercial da China e a obrigar seus líderes voltados para os negócios a privilegiarem interesses da banca e dos negócios dos EUA além das suas próprias empresas. Levada aos seus limites, a prioridade de Obama à grande pressão militar poderia levar a uma ruptura catastrófica nas relações económicas EUA-China. Isto resultaria em consequências calamitosas, especialmente mas não exclusivamente, na economia dos EUA e particularmente no seu sistema financeiro. A China possui mais de US$1,5 milhão de milhões de dólares em dívida americana, principalmente Títulos do Tesouro, e compra a cada ano de US$200 a US$300 mil milhões de novas emissões, uma fonte vital no financiamento do défice dos EUA. Se Obama provocar uma ameaça grave aos interesses da segurança China e Pequim for forçada a responder, a retaliação não será militar mas sim económica: a liquidação de umas poucas centenas de milhares de milhões de títulos do tesouro e a redução de novas compras de dívida estado-unidense. O défice dos EUA disparará, suas classificações de crédito descerão para a categoria "lixo" e o sistema financeiro tremerá à beira do colapso. As taxas de juro para atrair novos compradores de dívida dos EUA aproximar-se-ão dos dois dígitos. As exportações chinesas para os EUA sofrerão e verificar-se-ão perdas devido à desvalorização dos Títulos do Tesouro em mãos chinesas. A China diversificou seus mercados por todo o mundo e o seu enorme mercado provavelmente poderia absorver a maior parte do que a China perdesse no exterior no caso de um recuo do mercado estado-unidense.

Enquanto Obama vaga pelo Pacífico a anunciar suas ameaças militares à China e se esforça para isolar economicamente a China do resto da Ásia, a presença económica dos EUA está a desvanecer-se rapidamente do que costumava ser o seu "quintal". Citando um jornalista do Financial Times: "A China é o único espectáculo para a América Latina" ( Financial Times, 23/Nov/2011, p.6). A China deslocou os EUA e a UE com principal parceiro comercial da América Latina; Pequim despejou milhares de milhões em novos investimentos e proporciona empréstimos com juros baixos.

O comércio da China com a Índia, Indonésia, Japão, Paquistão e Vietname está a aumentar a uma taxa muito mais rápida do que a dos EUA. O esforço estado-unidense para construir uma aliança de segurança na Ásia centrada no império baseia-se em fundamentos económicos frágeis. Mesmo a Austrália, a âncora e fulcro do ímpeto militar dos EUA na Ásia, está pesadamente dependente de exportações minerais para a China. Qualquer interrupção militar remeteria a economia australiana para um mergulho.

A economia dos EUA não está em condições de substituir a China como mercado para exportações de mercadorias asiáticas ou da Austrália. Os países asiáticos devem estar agudamente conscientes de que não há vantagem futura em ligarem-se a um império, altamente militarizado, em declínio. Obama e Clinton enganam-se a si próprios se pensam que podem atrair a Ásia para uma aliança a longo prazo. Os asiáticos estão simplesmente a utilizar as aberturas amistosas do regime Obama como um "dispositivo táctico", um truque negocial, para conseguirem melhores termos para assegurar fronteiras marítimas e territoriais com a China.

Washington está iludida se acredita que pode convencer a Ásia a romper laços económicos lucrativos a longo prazo e de grande escala com a China a fim de aderir a uma associação económica exclusiva com tão dúbias perspectivas. Qualquer "reorientação" da Ásia, desde a China até os EUA, exigiria mais do que a presença de força naval e aerotransportada apontada para a China. Exigiria a reestruturação tal das economias dos países asiáticos, da estrutura de classe e da elite militar. Os mais poderosos grupos empresariais da Ásia têm profundas e crescentes ligações com a China/Hong Kong, especialmente entre as dinâmicas elites de negócios transnacionais chinesas na região. Uma viragem em direcção a Washington implica uma contra-revolução maciça, que substitua "compradores" coloniais por empresários estabelecidos. Quando muito alguns oficiais militares asiáticos treinados nos EUA, economistas e antigos financeiros da Wall Street e bilionários podem procurar "equilibrar" uma presença militar estado-unidense com poder económico chinês, mas eles devem perceber que em última análise a vantagem está em desenvolver uma solução asiática.

A era dos "capitalistas compradores" asiáticos, desejosos de liquidar a indústria nacional e a soberania em troca de acesso privilegiado a mercados dos EUA, é história antiga. Qualquer que seja o ilimitado entusiasmo por consumismo de luxo e estilos de vida ocidentais, os quais os novos ricos da Ásia e da China celebram descuidadamente, qualquer que seja a aceitação das desigualdades e da exploração capitalista selvagem do trabalho, há o reconhecimento de que a história passada da dominação estado-unidense e europeia impediu o crescimento e o enriquecimento de uma burguesia e classe média indígenas. Os discursos e pronunciamentos de Obama e Clinton exalam nostalgia por um passado de supervisores neocoloniais e compradores colaboracionistas – uma ilusão tola. Suas tentativas de realismo político assumem uma feição bizarra ao imaginarem que posicionamentos militares e projecções de força armada reduzirão a China a um actor marginal na região.

A escalada da confrontação de Obama em relação à Rússia

O regime Obama lançou uma grande investida militar frontal sobre as fronteiras da Rússia. Os EUA avançaram sítios de mísseis e bases da Força Aérea na Polónia, Roménia, Turquia, Espanha, República Checa e Bulgária: complexos de mísseis anti-aéreos Patriot PAC-3 na Polónia; radar avançado AN/PPY-2 na Turquia e vários mísseis (SM-3 IA) embarcados em navios de guerra na Espanha estão entre as armas mais importantes que cercam a Rússia, a maior apenas a minutos do seu alvo estratégico. Em segundo lugar, o regime Obama fez um enorme esforço para assegurar e expandir bases militares dos EUA na Ásia Central entre antigas repúblicas soviéticas. Em terceiro, Washington, através da NATO, lançou grandes operações económicas e militares contra os principais parceiros comerciais da Rússia na África do Norte e Médio Oriente. A guerra da NATO contra a Líbia, que derrubou o regime Kadafi, paralisou ou anulou investimentos russos de milhares de milhões de dólares em petróleo e gás, vendas de armas e substituiu o antigo regime amigo da Rússia por um fantoche da NATO.

As sanções económicas ONU-NATO e a actividade terrorista clandestina EUA-Israel contra o Irão minaram o lucrativo comércio nuclear da Rússia, de milhares de milhões de dólares, e empreendimentos petrolíferos conjuntos. A NATO, incluindo a Turquia, apoiada pelas ditaduras monárquicas do Golfo, impuseram duras sanções e financiaram assaltos terroristas à Síria, o último aliado remanescente da Rússia na região e onde ela tem a sua única instalação naval (Tartus) no Mar Mediterrâneo. A anterior colaboração da Rússia com a NATO enfraquecendo a sua própria posição económica e de segurança é produto da monumental má interpretação da NATO e especialmente das políticas imperiais de Obama. O presidente russo Medvedev e seu antigo ministro dos Estrangeiros, Sergey Lavrov, assumiram erradamente (tal como Gorbachev e Yeltsin antes deles) que apoiar políticas da NATO contra parceiros comerciais da Rússia resultaria em alguma espécie de "reciprocidade". o desmantelamento americano da sua ofensiva "missile shield" nas suas fronteiras e apoio para a admissão da Rússia na Organização Mundial do Comércio. Medvedev, seguindo suas liberais ilusões pró ocidentais, entrou na linha e apoiou sanções estado-unidenses-israelenses contra o Irão, acreditando nos contos de um "programa de armas nucleares". A seguir Lavrov entrou na linha da NATO de "zonas de interdição de voo para proteger vidas de civis líbios" e votou a favor, só com um "protesto" delicado, demasiado tardio, de que a NATO estava a "exceder o seu mandato" ao bombardear a Líbia, regredi-la à Idade Média e instalar um regime fantoche pró NATO de patifes e fundamentalistas. Finalmente, quando os EUA apontaram um punhal ao coração da Rússia, fazendo um enorme esforço para instalar sítios de lançamento de mísseis a 5 minutos de Moscovo ao mesmo tempo que organizava assaltos armados à Síria, a dupla Medvedev-Lavrov acordou do seu estupor e opôs-se a sanções da ONU. Medvedev ameaçou abandonar o tratado de redução de mísseis nucleares (START) e colocar mísseis de médio alcance a 5 minutos de Berlim, Paris e Londres.

A política de consolidação e cooperação de Medvedev-Lavrov, baseada na retórica de Obama de "redefinição de relações" ("resetting relations") encoraja a agressiva construção do império: Cada capitulação levava a uma nova agressão. Em consequência, a Rússia está cercada por mísseis na sua fronteira ocidental; ela sofreu perdas entre os seus principais parceiros comerciais no Médio Oriente e enfrenta bases dos EUA no Sudoeste e na Ásia Central.

Tardiamente responsáveis russos mexeram-se para substituir o iludido Medvedev pelo realista Putin, como presidente seguinte. Esta mudança para uma política realista previsivelmente provocou uma onda de hostilidade a Putin em todos os media ocidentais. A agressiva política de Obama para isolar a Rússia através da minagem de regimes independentes não afectou, contudo, o status da Rússia como potência com armas nucleares. Ela apenas aumentou tensões na Europa e talvez tenha encerrado qualquer oportunidade futura de redução pacífica de armas nucleares ou esforços para assegurar um consenso no Conselho de Segurança da ONU sobre questões de resolução pacífica de conflitos. Washington, sob Obama-Clinton, transformou a Rússia de um cliente acomodatício num grande adversário.

Putin encara o aprofundamento e expansão de laços com o Leste, nomeadmente a China, face às ameaças do Ocidente. A combinação de tecnologia de armas avançadas e recursos energéticos russos e de dinâmica manufactureira e crescimento industrial chinês são mais do que suficientes para as economias infestadas de crise dos EUA e da UE a chafurdarem na estagnação.

A confrontação militar de Obama contra a Rússia prejudicará muito acesso da mesma a matérias-primas e impedirá definitivamente qualquer acordo estratégico de segurança a longo prazo, o qual seria útil para reduzir o défice e reviver a economia estado-unidense.

Entre realismo e ilusão: O realinhamento estratégico de Obama

O reconhecimento de Obama de que o centro presente e futuro da política e do poder económico está a mover-se inexoravelmente para a Ásia foi um lampejo de realismo político. Depois de durante uma década despejar centenas de milhares de milhões de dólares em aventuras militares nas margens e na periferia da política mundial, Washington finalmente descobriu que não é o lugar onde o destino das nações, especialmente as Grandes Potências, será decidido, excepto num sentido negativo – de sangria recursos sobre causas perdidas. O novo realismo e prioridades de Obama aparentemente estão centrados no Sudeste e Nordeste da Ásia, onde economias dinâmicas florescem, mercados estão em crescimento a uma taxa com dois dígitos, investidores preparam dezenas de milhares de milhões de actividade produtiva e o comércio expande-se três vezes mais do que o dos EUA e da UE.

Mas o "Novo realismo" de Obama é destruído por suposições totalmente ilusórias, as quais minam quaisquer esforços sérios para realinhar a política dos EUA.

Em primeiro lugar, o esforço de Obama para "entrar" na Ásia é através de uma acumulação de meios militares e não através de um aperfeiçoamento e melhoria da competitividade económica estado-unidense. O que é que os EUA produzem para os países asiáticos que promova sua fatia de mercado? Além de armas, aviões e agricultura, os EUA têm poucas indústrias competitivas. Os EUA teriam de reorientar amplamente sua economia, melhorar o trabalho qualificado e transferir milhares de milhões da "segurança" e do militarismo para a aplicação de inovações. Mas Obama trabalha dentro do actual complexo financeiro militarista-sionista. Ele não conhece qualquer outro e é incapaz de romper com ele.

Em segundo lugar, Obama-Clinton operam sob a ilusão de que os EUA podem excluir a China ou minimizar o seu papel na Ásia, uma política que é enfraquecida pelo investimento enorme e crescente, e a presença, de todas as grandes corporações multinacionais dos EUA na China, as quais utilizam-na como uma plataforma de exportação para a Ásia e o resto do mundo.

A acumulação militar dos EUA e a sua política de intimidação forçarão a China a reduzir o seu papel como credor que financia a dívida estado-unidense, uma política que a China pode realizar porque o mercado dos EUA, se bem que ainda importante, está em declínio, pois a China expande a sua presença no seu mercado interno e nos da Ásia, América Latina e Europa.

O que antes parecia ser Novo realismo revela-se agora ser a reciclagem de Velhas ilusões. A noção de que os EUA podem voltar a ser a Potência suprema no Pacífico era do pós Segunda Guerra Mundial. As tentativas dos EUA sob Obama-Clinton para retornar à dominação do Pacífico, com uma economia avariada, com o fardo de uma economia super-militarizada e com grandes desvantagens estratégicas: Ao longo da última década a política externa dos Estados Unidos esteve nas mãos da quinta coluna de Israel (o "lobby" israelense). Toda a classe política estado-unidense é destituída de senso comum, prático e projecto nacional. Eles estão imersos em debates trogloditas sobre "detenções indefinidas" e "expulsões em massa de imigrantes". Pior: estão todos nas folhas de pagamento de corporações privadas que vendem nos EUA e investem na China.

Por que Obama renunciaria a guerras custosas na periferia não lucrativa e a seguir promoveria a mesma metafísica militar no centro dinâmico do universo económico mundial? Será que Barack Obama e seus conselheiros acreditam que ele é o Segundo Advento do Almirante Perry, cujos navios de guerra no século XIX através de bloqueios obrigaram a Ásia a abrir-se ao comércio ocidental? Acreditará ele que alianças militares serão a primeira etapa para um período subsequente de presença económica privilegiada?

Acreditará Obama que o seu regime pode bloquear a China, tal como Washington fez com o Japão nos dias que precederam a Segunda Guerra Mundial? É demasiado tarde. A China é muito mais central para a economia do mundo, demasiado vital mesmo para o financiamento da dívida dos EUA, demasiado soldada às corporações multinacionais do Forbes 500. Provocar a China, mesmo fantasiar acerca da "exclusão" económica para deitar abaixo a China, é perseguir políticas que abalarão totalmente a economia mundial, em primeiro lugar e acima de tudo a economia dos EUA!

Conclusão

O "realismo de pacotilha" de Obama, sua comutação das guerra no mundo muçulmano para a confrontação militar na Ásia, não tem valor intrínseco e coloca custos extrínsecos extraordinários. Os métodos militares e os objectivos económicos são totalmente incompatíveis e para além da capacidade dos EUA, como estão actualmente constituídos. As políticas de Washington não "enfraquecerão" a Rússia ou a China, muito menos a intimidarão. Ao invés disso, irá encorajar ambos a adoptarem posições mais adversas, tornando menos provável que ajudem as guerras sequenciais de Obama em proveito de Israel. A Rússia já enviou navios de guerra ao seu porto na Síria, recusou-se a apoiar um embargo de armas contra a Síria e o Irão e (em retrospectiva) criticou a guerra da NATO contra a Líbia. A China e a Rússia têm demasiados laços estratégicos com a economia do mundo para sofrerem quaisquer grandes perdas de uma série de postos avançados militares dos EUA e de alianças "exclusivas". A Rússia pode apontar tantos mísseis nucleares para o ocidente quanto os EUA podem montá-los nas suas bases na Europa do Leste.

Por outras palavras, a escalada militar de Obama não mudará o equilíbrio de poder nuclear, mas levará a Rússia e a China para uma relação mais estreita e aliança mais profunda. Ultrapassados estão os dias da estratégia "divida e conquista" de Kissinger-Nixon contrapondo acordos comerciais EUA-China contra armas russas. Washington exagerou totalmente a significância das actuais querelas marítimas entre a China e seus vizinhos. O que os une em termos económicos é muito mais importante no médio e longo prazo. As ligações económicas asiáticas da China desgastarão quaisquer ténues ligações militares aos EUA.

O "realismo de pacotilha" de Obama vê o mercado mundial através de lentes militares. A arrogância militar em relação à Ásia levou à ruptura com o Paquistão, seu regime cliente mais dócil na Ásia. A NATO deliberadamente chacinou 24 soldados paquistaneses e esfregou-os no nariz dos generais paquistaneses, ao passo que a China e a Rússia condenaram o ataque e ganharam influência.

No final das contas, o posicionamento militar e excludente da China fracassará. Washington exagerou a sua mão e afugentou da sua anterior orientação para os negócios os parceiros asiáticos, os quais só querem utilizar a presença militar dos EUA para ganharem vantagem económica táctica. Eles certamente não querem uma nova "Guerra fria" instigada pelos EUA que divida e enfraqueça o dinâmico comércio e investimento intra-asiático. Obama e os seus apaniguados aprenderão rapidamente que os actuais líderes da Ásia não têm aliados permanentes – apenas interesses permanentes. Na análise final, a China apresenta-se de forma destacada na configuração de uma nova economia mundial centro-asiáticas. Washington pode afirmar ter uma "presença permanente no Pacífico" mas até que demonstre que pode cuidar do seu "negócio básico em casa", como reparar as suas próprias finanças e equilibrar seus défices de transacções correntes, o comando naval dos EUA pode acabar por arrendar suas instalações marítimas a exportadores transportadores asiáticos, que transportam bens para eles, e protegendo-os perseguindo piratas, contrabandistas e narco-traficantes.

Se chegar a pensar acerca disto, Obama pode reduzir o défice comercial dos EUA com a Ásia pelo arrendamento da Sétima Frota a fim de patrulhar estreitos, ao invés de desperdiçar o dinheiro do contribuinte estado-unidense a intimidar potências económicas asiáticas.
O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=28144

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

As milícias no campo miram em direção aos movimentos sociais

Por Jorge Américo,
Seguranças privados agridem indígenas e apoiadores
para garantir invasão de construtora em terra de
ocupação tradicional - Foto: ABr
O campo de atuação das empresas de segurança privada não está restrito às cidades. É cada vez mais comum, no meio rural, a presença de grupos armados contratados por fazendeiros. Em 27 de julho de 2011, foi realizado em Curitiba (PR) o Tribunal de Júri que puniu pela primeira vez um caso de milícia privada no campo.
Os jurados consideraram Jair Firmino Borracha culpado pelo assassinato do agricultor Eduardo Anghinoni, irmão de uma das principais lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná. O réu foi condenado a 15 anos de prisão. O crime ocorreu em 1999, no município de Querência do Norte (PR). As provas e os depoimentos apresentados no julgamento reforçaram a hipótese da existência de uma organização criminosa que atuava contra militantes de movimentos sociais na região.
Um caso semelhante permanece sem solução. Após uma ação articulada pela empresa NF Segurança, o trabalhador rural Valmir Mota de Oliveira, mais conhecido como Keno, foi morto por um funcionário que prestava serviços para a transnacional Syngenta. Outros cinco trabalhadores ficaram gravemente feridos. Ambos participavam do acampamento Terra Livre, em Santa Tereza do Oeste (PR), área na qual a empresa promovia experimentos ilegais de sementes de milho transgênico. Embora o crime tenha ocorrido no final de 2007, o processo se encontra na fase inicial de consulta das testemunhas.
O advogado da ONG Terra de Direitos, Fernando Priospe, demonstra preocupação com a atuação de milícias privadas na região. “Basicamente não houve alteração na situação no que diz respeito às milícias privadas. Por exemplo, a NF Segurança continua atuando na região de Cascavel clandestinamente”. A Syngenta acusa os trabalhadores rurais de serem responsáveis pelo assassinato de Keno e de um pistoleiro. O Ministério Público do Paraná, que acatou a denúncia, alega que o fato de ocupar uma propriedade rural significa assumir o risco de provocar o assassinato das próprias pessoas que ocuparam a área.

Indígenas, ditadura e escravidão
A privatização do setor de segurança tem mais implicações negativas do que se supõe, segundo o presidente do Conselho Estadual da Defesa da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe), Ivan Seixas. “Elas [empresas de segurança], além dos serviços tradicionais, fazem arapongagem particular, espionagem eletrônica, industrial, militar, política. Isso tudo faz com que o Estado brasileiro esteja refém dessa gente”.
Nem mesmo os povos indígenas escaparam desse aparelho repressivo descrito por Ivan, que é ex-preso político da ditadura civil-militar (1964-1985). Em outubro, um grupo de homens armados – contratados por donos de construtoras – avançaram contra as comunidades instaladas no local conhecido como Santuário dos Pajés, no Setor Noroeste, em Brasília (DF). Estavam em disputa 50 hectares de terras tradicionais, onde vivem cerca de 30 pessoas das etnias tuxá, fulniô, kariri xocó e tupinambá. Na ação, foram registrados espancamentos, uso de spray de pimenta e arma de choque elétrico.
A consolidação do setor da segurança privada nos últimos anos e a exacerbação de seu poder deve-se muito à presença de militares ainda em atividade ou aposentados. A conduta repressiva contra cidadãos, de acordo com Ivan, é sintoma do autoritarismo herdado do período ditatorial. Para ele, “há uma ligação direta entre ditadura e empresas de segurança porque vários torturadores, civis e militares, são donos dessas empresas”.

Racismo
O professor de história e integrante da UNEafro-Brasil Douglas Belchior vê na escravidão as raízes dos excessos que são cometidos hoje. Para ele, as empresas de segurança não substituem as forças militares do Estado, mas atuam de forma complementar. “Os capitães do mato foram a primeira polícia da história. Eles tinham a função de correr atrás dos negros rebelados. Essa lógica se repetiu ao longo dos anos e, quando os policiais migraram para a segurança privada, levaram consigo essas práticas abomináveis. Daí a razão de os negros serem as principais vítimas da truculência, ao lado dos camponeses e indígenas.”
Para Marcelo Braga Edmundo, coordenador da Central de Movimentos Populares e do Comitê Social da Copa 2014 e dos Jogos Olímpicos, a segurança privada está tão estruturada que consegue obter vantagens de todos os lados. Isso se dá ou por meio da repressão ou por meio da extorsão. “Recentemente, isso aconteceu no Jardim Botânico [no Rio de Janeiro]. Algumas pessoas se recusaram a pagar os seguranças e de repente começou a ter assaltos na rua, o que claramente se configurou como uma forma de pressão”. Braga afirma que o processo de coação é parecido. “Estigmatizam a população mais pobre da zona oeste, dominada pela milícia, enquanto a classe média que vive nas áreas mais abastadas há muito tempo aceita a ação delas passivamente, as paga e fica por isso mesmo”.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/

Fogo não é o maior problema de uma favela

Por Leonardo SakamotoSobre a disputa entre a Prefeitura de São Paulo e os moradores da favela do Moinho, que pegou fogo nesta quinta (22), trouxe uma informação que ajuda entender porque a Paulicéia é desvairada.

Há cinco anos, a empresa proprietária do terreno onde fica essa comunidade demonstrou interesse em doá-lo aos moradores. Mas a administração municipal não aceitou sob argumento de que não era possível alojar famílias no local. No mesmo ano, Gilberto Kassab emitiu decreto para desapropriar a área. Como a própria Prefeitura disse que a região não serve para residência, então tem outros usos para ela, como finalidades comerciais ou de lazer.
Fascinante. Não é possível alojar moradores, mas provavelmente deve ser plausível receber bancos, salas de concertos e de exposições, teatros, sedes de multinacionais, escritórios da administração pública, restaurantes. Ah, e é claro, apartamentos – desde que de pessoas que tenham dinheiro para pagar para morar em uma região com toda a infra-estrutura de transportes, saneamento, energia.
E a gente de lá, com todas as suas redes de amizades e relações profissionais, que se estabeleceram ao longo de 30 anos? Ao invés de urbanizar o local, garantindo a manutenção de pelo menos parte das mais de 500 famílias que hoje vivem na favela, dando mais vida ao Centro de São Paulo, o governo quer sacá-los. Talvez porque não se encaixem no plano de desenvolvimento para o Centro da cidade, que está ganhando investimentos públicos e privados. Sabe como é, né? Aquele bando de gente pobre só ia jogar o preço do metro quadrado para embaixo e afastar os “homens de bem” de perto.
A área central de São Paulo é alvo prioritário dos movimentos por moradia porque já tem tudo – transporte, cultura, lazer, proximidade com o trabalho. Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que têm menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais – com exceção das Alphabolhas da vida.
Cortiços e pequenas favelas em regiões retratadas no passado por Alcântara Machado no livro “Brás, Bexiga e Barra Funda” e também nos antes requintados Campos Elísios abrigam dezenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz. A maioria dos moradores desses locais prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados.
Tem sido função da Prefeitura tornar a vida desse pessoal um inferno até que eles saiam. E a desse pessoal, resistir. Feito o Cerco a Viena, de 1529, pelo Império Otomano. Naquela ocasião, o exército inimigo era numericamente superior, enquanto a elite paulistana é um mísero grão de areia frente ao restante da população pobre. Que aqui existe para servir.
Torço para que o fim seja o mesmo, com o Moinho resistindo a líderes que não sabem planejar.