terça-feira, 20 de setembro de 2011

Capitalismo financeiro: o terreno fértil da crise alimentar

fome_no_mundo
O sistema capitalista, actualmente de cariz financeiro, especulativo e global está a produzir a um ritmo nunca visto crises estruturais e sistémicas de gravidade e abrangência global: crise financeira, crise económica, crise climática, crise ambiental, crise alimentar, crise da dívida, crise social, são as diferentes faces da crise da globalização. Estas crises são fonte de grande preocupação e têm consequências gravíssimas crescentes para todas/os em múltiplos domínios da vida, mostram também, de forma cada vez mais evidente, as contradições de um sistema insustentável que rebenta por todos os lados. O desfecho será imprevisível.
Pretendemos neste texto demonstrar como o capitalismo financeiro, que alia o capital bancário ao capital industrial, tomou conta da produção dos alimentos e levou este sector vital a uma crise alimentar global que, para além da fome e da subnutrição leva ao aumento da pobreza, ao desequilíbrio demográfico campo-cidade que traz por si múltiplas consequências e ao agravamento ambiental e climático.
Como foi defendido por Marx, o modo de produção capitalista leva a fases de estagnação no sentido em que os investimentos quando saturam o mercado tendem a baixar a sua taxa de rentabilidade. O capital tem sempre de procurar novas formas de rentabilidade - a realização da sua vocação que é a realização de mais capital - e por isso adopta comportamento imperialista na procura do controlo de novos mercados e recursos, novas ou mais agressivas formas de se realizar. Ao longo dos tempos as crises do capitalismo têm sido inúmeras. A fusão do capital financeiro com o capital industrial, a transnacionalização e a concentração de investimento através de aquisições e fusões de empresas abriram novas oportunidades no fortalecimento do capital para fazer investimentos colossais e cada vez mais diversificados em múltiplas áreas e por todo o mundo.
O mercado de produção alimentar é um negócio atractivo e seguro que tem sido objecto de investimento ao longo do tempo. A crise financeira global de 2007/2008 acentuou isso fazendo com que os investidores procurassem investimentos mais seguros que activos tóxicos e outros que se têm mostrado muito instáveis. A terra, a água, a produção agrícola são seguros e, ao que parece excelente investimento, todas/os nós precisamos de nos alimentar e este mercado gera elevada rentabilidade se houver um forte controlo dos seus recursos e meios de produção, aposta na tecnologia e intensificação da produção. Várias transnacionais, muito fortalecidas pelo capital financeiro, têm apostado intensamente nesta área, com capital que vem do excedente de outros sectores e entra na agricultura com montantes outrora impossíveis. Mas, apesar de conseguir elevada rentabilidade, não ajuda a resolver as carências alimentares está a produzir o seu contrário, o aumento dos preços dos bens alimentares de base, aumento da fome, da pobreza e da desertificação. A sua função não é alimentar, mas acumular capital.
Vejamos a evolução do preço dos alimentos nos seguintes gráficos da FAO(1) (Food and Agriculture Organization of the United Nations): 
Fao_Food_Price Fao_Food_Price_2Os preços estão actualmente mais elevados que nunca, o acesso a alimentos por milhares de milhões de pessoas está cada vez mais difícil de assegurar, a fome, a subnutrição crónica são realidades. Segundo também este organismo da ONU, o número de pessoas com fome aumentou de 900 milhões para 1,2 bilhão(2). No chamado Corno de África são estimados em 12 milhões a morrer de fome, na época em que os preços dos alimentos de base estão mais elevados que nunca. O problema não é só a seca e o conflito.
Há quem tente demonstrar que este aumento será rapidamente ultrapassado pela mão invisível do mercado que, perante o aumento do preço dos produtos, aumentará a produção, acontecendo a regulação automática que os neoliberais tanto gostam, apesar desta mostrar sistematicamente que não funciona assim: outras variáveis se atravessam no caminho, as quais, curiosamente, nunca são contabilizadas por tais economistas. Desde 2008 – um pico dos preços – que esta teoria é defendida e afinal continuamos com preços muito elevados, mais do que nesse mesmo ano. Outros, tentam direccionar as causas deste fenómeno para razões apenas conjunturais como o aumento do preço do petróleo que será ultrapassado ou alterações climáticas (estas podem ser vistas como conjunturais, obra do acaso, mas para quem aceita o impacto do aquecimento climático na atmosfera compreende que temos pela frente uma maior instabilidade do tempo, com as múltiplas consequências que isso provoca); outros, avançam a perigosa teoria da sobrepopulação mundial. No entanto, estes esquecem que milhares de milhões perdem o acesso à alimentação por serem expulsos da terra de onde sempre se sustentaram e que, actualmente, se desperdiça cerca de 1/3 da produção alimentar.
Ao contrário, o que queremos demonstrar aqui é que apesar de haver causas conjunturais, as causas estruturais são as fundamentais, porque apesar da produção industrial, a fome crónica é uma realidade há décadas e a tendência de elevação dos preços não mostra querer inverter-se mesmo quando determinadas condições são ultrapassadas. As causas da crise alimentar estão ligadas ao modo de produção e de comercialização. O planeta tem capacidade para produzir alimentação para toda a humanidade se alterar o modo de produção e a forma de acesso aos alimentos. As medidas de emergência anunciadas como o aumento dos pacotes de “ajuda alimentar” ou o aumento das facilidades à importação e a plantação de mais transgénicos não são a solução, apenas aprofundam a dependência e o problema.
As condições estruturais ligadas à fome são várias e cumulativas e estão fortemente ligadas à entrada do capital financeiro internacionalizado no investimento e controlo da produção alimentar nos seus vários domínios: terra, sementes, fertilizantes, pesticidas e maquinaria, produção agrícola, processamento, transporte e distribuição, comercialização. Este controlo faz-se de várias maneiras, desde a posse dos meios de produção até à política de produção, desde a politica monetária aos tratados de comércio, aos subsídios e à legislação.
A “dolarização” da economia, os tratados de livre comércio e as políticas do FMI e Banco Mundial, assim como a prática de subsídios à produção nos países ricos têm promovido de forma sistemática a entrada das grandes empresas e dos seus produtos nas economias mais fracas a preços demasiado competitivos, destruindo o seu mercado de produção interna e promovendo o abandono dos campos de inúmeros camponeses. Quer seja através de condições favoráveis de câmbio, quer seja através da liberalização dos mercados e suprimento de taxas de importação, os produtos locais deixam de ter capacidade de competir com o que vem de fora, subsidiado e produzido de forma altamente mecanizada e industrial. Esse é um primeiro passo para a dependência que não acaba aqui. A aposta forte do capital em investigação e tecnologia aliada à produção promove o domínio e controlo total dos mecanismos industriais de produção que acabam por ser impostos ao resto da produção que agora fica dependente deste modo. Simultaneamente, as políticas públicas de apoio à agricultura local e nacional são reduzidas, ficando restringida ao apoio do modo de produção capitalista. A produção industrial é altamente dependente do petróleo e de alguns outros nutrientes, quer seja para a maquinaria, quer seja para os aditivos químicos, assim, a vulnerabilidade dos preços relativamente a estes insumos aumenta. A pressão para políticas de privatização dos bens públicos como a terra, a água, ou as sementes é cada vez maior, sendo o seu comércio concentrado nas mãos de umas tantas empresas, a par dos outros meios de produção. A crise do petróleo tem levado o capital financeiro a apostar recentemente nos agrocombustíveis desviando grandes quantidades de terra e plantas oleaginosas e açucareiras para esta produção. A produção de carne para um mercado estimulado a consumir este produto em excesso é também uma aposta forte que consome quantidades colossais de cereais e de terra. Os países do sul têm servido como banco de recursos como a terra e a água, e onde a produção já não é controlada suficientemente por estes estando direccionada sobretudo para exportação de determinadas culturas, de acordo com a necessidade dos países ricos, ficando a segurança e a soberania alimentar desses mesmos países altamente comprometidas.
O investimento aposta num modelo agrícola industrial que, aparentemente, parece ter maior capacidade de produção, mas tem contradições importantes: expulsa os camponeses do campo que se transformam em exército de desempregados em cidades insustentáveis, com desertificação do interior; esgota os solos; uniformiza a produção e o consumo tornando-a mais dependente de insumos e do petróleo; torna a alimentação menos saudável; promove o aquecimento climático; retira à agricultura a sua multifuncionalidade: além da função económica, também a função de fixar pessoas no campo, a função social e cultural de manter comunidades e modos de vida diversos, a função de alimentar(!) e a função ambiental de manutenção da biodiversidade, importante chave da vida.
Existem vários estudos que mostram que a produção não industrial consegue uma elevada taxa de produção, muitas vezes maior produção por ano, por unidade de área que a produção industrial, mas que, como não é homogeneizada e não explora milhares de milhões de hectares não tem a mesma rentabilidade financeira. No entanto, o que deveria estar em causa é a produção de alimentos saudáveis e o direito à alimentação, ou não?
De acordo com a Via Campesina(3), estima-se que o domínio do capital financeiro sobre a produção agrícola ao longo de cerca de três décadas concentrou uma importante parte da produção e comercialização mundial de alimentos em 30 grandes empresas transnacionais. Por exemplo, os supermercados, altamente fortalecidos pelo capital financeiro, actualmente reduzidos a meia dúzia de grandes cadeias que controlam o grande quinhão do mercado mundial, têm a capacidade de comercializar impondo aos produtores os produtos, os preços, as quantidades e prazos de pagamento (às vezes a seis meses ou um ano, como se de um banco se tratasse) aniquilando a produção local, diversificada, ou independente.
A dependência foi assim crescendo continuamente, através de vários mecanismos e da perda de capacidade produtiva de milhares de milhões de camponeses e pequenas empresas, perda de soberania dos Estados, migração constante de pobres para a cidade e aumento da quantidade de desempregados e desenraizados nas cidades, altamente dependentes do preço da alimentação para a sua parca sobrevivência. Chegados a este ponto temos o monopólio de grandes empresas de toda a cadeia produtiva por um lado, e a dependência extrema das pessoas, por outro. A partir daqui a especulação tem terreno livre de actuação e os preços médios dos produtos já não têm muito que ver com os seus custos de produção, jogados entre dumping e a especulação. A especulação está nos produtos do supermercado, no preço das sementes, passando pelo mercado de futuros nas bolsas em que se aposta no preço dos cereais a 50 anos, ou nos fundos de investimento que actualmente compram milhares de milhões de hectares de terra a milhares de Kms de distância.
Não há dúvida que esta realidade vai deixando estalar contradições que podem vir a alterar o estado das coisas: a falta de credibilidade dos produtos que actualmente comemos em termos de saúde; o aumento exponencial das cidades, das suas periferias e do exército de pobres, desempregados e subnutridos; a fome que alastra. Exemplo disso são os motins de 2008 em vários países e a Primavera Árabe, conflitos que se iniciaram devido à subida do preço dos alimentos... Nunca se pensou que as consequências fossem aquelas.
Rita Silva
(2) Ledislau Dowbor, Carta Maior
(3) http://viacampesina.org/en/, rede global de movimentos sociais que se batem pela agricultura familiar e camponesa e pela soberania alimentar dos povos
Fonte: http://acomuna.net/

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