Por Carlos Walter Porto-Gonçalves
Durante anos cientistas e ativistas denunciaram os males do DDT, do agente laranja e outros subprodutos da indústria militar na “guerra contra as pragas”, enfim, na “luta pela dominação da natureza”, particularmente no mundo da agricultura e da pecuária.
O argumento de que esses cientistas e ativistas era contra o progresso foi brandido ao paroxismo por um bem sucedido lobby das corporações do complexo industrial-financeiro-midiático-militar, nova forma complexa da burguesia característica de um capitalismo cada vez mais complexo (Casanova, 2005).
Basta acessarmos o site da ABAG - Associação Brasileira de Agribusiness – em particular o link dos parceiros da ABAG e lá temos a composição desse novo bloco de poder que se reproduz no Brasil com especificidades de se juntar às velhas/atuais oligarquias latifundiárias. Pois bem, a vaca ficou louca, o frango e o porco gripados colocando em risco a saúde humana em nome desse complexo de poder que se nutre desse mito da “dominação da natureza”.
Ora, a idéia de dominação da natureza é em si mesma uma profecia que não se pode cumprir na própria medida em que dominar é fazer com que alguém ou qualquer outro ser faça não aquilo que quer ou que seja, mas aquilo que outrem quer que faça. Assim, sejam os povos, etnias, classes, gêneros ou a natureza na medida em que são dominados implica que estejam sendo submetidos não ao que são, mas aquilo que querem que sejam.
No mundo contemporâneo em que a ciência e seu subproduto a tecnologia são instrumentos da busca do aumento da produtividade tendo em vista a acumulação de capital, se produz um deslocamento da “promessa iluminista” de que a razão deveria substituir a religião em nome da emancipação humana. Essa “promessa” foi partilhada também por uma corrente hegemônica no seio do pensamento de esquerda que ignorou uma das mais importantes contribuições de Marx para a análise histórica, qual seja, de que não se pode dissociar nenhum fenômeno do seu contexto, em suma, da totalidade das relações sociais (e de poder).
Assim como disse que “o direito não tem história” posto que são os homens (e mulheres) na conformação de suas relações sociais e de poder que o conformam, o mesmo se dá com o mundo técnico-científico. Marx nos deu uma bela demonstração dessa tese com sua crítica à Malthus e sua “lei geral da população” onde a produção de alimentos aumentaria numa progressão aritmética e o crescimento da população numa progressão geométrica. Assim como não há lei de população que escape às formações sociais que as engendram não há lei histórica do desenvolvimento das forças produtivas fora das relações sociais e de poder.
A ciência e a tecnologia cada vez mais são capturadas pelo mundo dos negócios, pelo mundo do capital, o que Milton Santos chamou “meio técnico-científico-informacional” para caracterizar o espaço geográfico contemporâneo. Como bem salientara o geógrafo brasileiro um objeto técnico difere de um objeto natural por ser um objeto impregnado de intencionalidade, ou seja, busca ser um objeto per+feito no sentido de um objeto previamente feito para controlar os efeitos de suas ações.
Ocorre que o mundo não é passivo e mero objeto dos desejos dos que manejam esses objetos. O aquecimento global, por exemplo, é o efeito não desejado de uma matriz energética que tal como Prometeu quis acorrentar o fogo, mas olvidou das leis da entropia. Pensou que inventar o termostato era suficiente para que o motor devidamente programado numa variação máxima e mínima de temperatura fosse suficiente para não aquecer e, assim, dissipasse energia sob a forma de calor e deixasse de trabalhar. A natureza não tem termostato!
Enfim, o paradigma científico de matriz eurocêntrica está fundado num mito que está a serviço da acumulação de capital que é o contexto em que vem se desenvolvendo cada vez mais. Num mundo onde a riqueza se acredita mensurável quantitativamente (dinheiro) os números não têm limites e assim não haveria limites para intervenção no mundo (natural e social). A idéia de crescimento, subjacente à de desenvolvimento econômico embora sempre atenuado pelos seus defensores, mostra por todo lado seus limites. Esclareça-se, antes que algum gestor bem intencionado tente dizer quais são os limites, que limite é o cerne da política, arte de definir os limites e a democracia é quando todos dele participam.
Sabemos dos esforços, muitos bem intencionados, diga-se de passagem, dos que se dedicam à segurança das plantas das usinas nucleares, das plantas das refinarias e dos poços de petróleo, dos sistemas de navegação aérea todos sistemas de alta complexidade. Uma das características mais relevantes dos sistemas de alta complexidade é sua imprevisibilidade. Assim, caminhamos num paradoxo: quanto mais introduzimos uma nova variável, que bem pode ser uma nova informação sobre um acidente aéreo, num sistema complexo mais ele se aproxima da realidade que, por sua vez, é o mundo na sua imprevisibilidade.
Só uma crença acrítica na capacidade do sistema técnico controlar o mundo pode explicar o fato de um país como o Japão, situado no cinturão de fogo de contato de inúmeras placas tectônicas, tenha nada mais nada menos que 55 reatores nucleares como se isso fosse um detalhe. E olha que a palavra tsunami inventada pelos japoneses antes da era científica e tecnológica, foi simplesmente olvidada talvez porque as águas não pudessem ser tão facilmente controladas pela engenharia. Relembremos que as primeiras notícias dos terremotos e tsunamis que recém atingiram o Japão, veiculadas pelos interessados meios de comunicação procuravam nos tranqüilizar pela tradição arquitetônica dos japoneses de construir edifícios que balançam mais não caem. Até que tivéssemos que assistir ao trágico espetáculo de mortos ou de casas e edifícios completamente destruídos e alguns inteiros boiando nas águas. E, pior, de saber que reatores, como os de Fukushima foram danificados e tantas vidas estarão ameaçadas por décadas.
Basta de “vacas loucas”, de gripe do frango, de gripe suína, de DDT e agente laranja que matam! Basta de uma ciência sem consciência! Que o conhecimento deixe de ser a caixa preta protegida pelo sigilo comercial da propriedade privada! Que se ouçam outras matrizes de conhecimento que se forjaram com a natureza e não contra a ela, como a dos camponeses, dos povos originários e não se desperdicem essas experiências! Que o sofrimento dessas famílias nos ilumine nessa direção! Hiroshima e Fukushima nunca mais!
Carlos Walter Porto-Gonçalves é professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Pesquisador do CNPq e do Clacso. Prêmio Casa de las Américas (Ensaio Hisórico-social) em 2008 e Medalha Chico Mendes em Ciência e Tecnologia 2004. É autor de vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.
Fonte: Jornal Brasil de Fato
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